Um bom modelo que não devia existir!

A existência de uma prova modelo para um exame da importância do Exame Nacional do Ensino Secundário é uma anomalia para um Sistema de Ensino que funcione normalmente. Se toda a gente sabe exactamente o que o sistema de avaliação espera delas as provas modelo não são necessárias e podem até ser contraproducentes. Contudo, já o ano passado defendi a necessidade da existência de uma prova modelo, assim como, em tempos, defendi o mesmo quando pertenci a um júri das provas específicas. E isto porque houve mudanças no sistema que não foram preparadas com a devida antecedência (nem com o devido cuidado). No ano passado houve uma mudança substancial do sistema de avaliação que produziu resultados mais desastrosos do que seria de esperar. Não se compreende que o programa do exame seja conhecido apenas depois do início do ano lectivo (e somente no último ano do ciclo de ensino a que diz respeito) ou que a prova modelo seja conhecida apenas poucos meses antes do exame. Este ano foram tomadas medidas importantes como a criação de um organismo que se responsabilize directamente e de uma forma profissional e permanente pelas provas de avaliação nacionais, e há assim condições para que a situação melhore. Faço votos para que no próximo ano já não seja necessária uma prova modelo e que as provas deste ano sejam o verdadeiro modelo para os próximos anos.

A prova de Matemática deste ano merece todos os elogios em relação à sua concepção. É uma prova que contém perguntas de grau de dificuldade muito equilibrado, contemplando de forma adequada os aspectos de cálculo, conhecimento e raciocínio algébrico e geométrico. O que é testado está totalmente de acordo com as orientações definidas pelos programas oficiais e pelas orientações oficiais de gestão do programa da disciplina de Matemática.
As perguntas de escolha múltipla estão muito bem concebidas. Várias pessoas já me referiram negativamente o facto de este ano haver 9 questões de escolha múltipla ao contrário das 5 do ano transacto; mas as questões apresentadas este ano exigem apenas um raciocínio elementar e são exactamente aquelas que podem ser testadas adequadamente sob a forma de escolha múltipla. Só se lamenta que não esteja ainda montado um sistema de tratamento informatizado das respostas (que além do mais forneceria de forma automática informações estatísticas preciosas relativamente ao desempenho dos alunos).
Dentre as questões de escolha múltipla devo destacar como especialmente bem concebidas as duas primeiras, a quarta e a quinta; nestas questões o aluno precisa de recorrer a conhecimentos muito elementares de geometria e funções, mas mostrando que compreendeu esses conhecimentos (e não está simplesmente a repetir factos de forma acrítica). As duas últimas questões de escolha múltipla são aparentemente mais difíceis, mas um momento de reflexão sobre os conhecimentos de probabilidades e combinatória adquiridos deve permitir obter, a um aluno que tenha realmente assimilado esses conhecimentos, a resposta de forma imediata (a última questão pode ser resolvida aplicando uma propriedade do Triângulo de Pascal, mas se um aluno for realizar cálculos "à bruta" também poderá obter o resultado embora demore mais tempo e corra o risco de se enganar nas contas).
O grupo II, contendo questões de grau de dificuldade variado, testa as importantíssimas capacidades de aplicar a matemática em situações concretas e de resolver problemas não padronizados, sem esquecer a utilização de conceitos básicos, as capacidades de cálculo e a utilização adequada da calculadora científica (se o aluno utilizar valores aproximados demasiado cedo poderá obter erros de arredondamento que produzirão resultados inaceitáveis).
A primeira pergunta do grupo III é a mais difícil da prova, mas é natural que uma prova de exame contenha algumas perguntas mais difíceis. O resto das questões do grupo III está dentro daquilo que se espera que um aluno médio seja capaz de fazer em Geometria.

Um aspecto muito importante das provas deste ano é virem acompanhadas de critérios de correcção que contemplam os diversos processos de resolução das questões do exame (na parte das questões abertas). É fundamental que, para uma maior equidade de classificação, sejam uniformizadas as variantes que se podem prever, e aqui mais uma vez se verifica que o Ministério da Educação aprendeu com erros de anos anteriores. Para se ter uma equidade ainda maior das classificações seria contudo necessário encontrar modos de classificação uniforme para respostas parcialmente erradas ou incompletas; isto é muito mais difícil, mas pode ser atenuado se forem criadas sessões de preparação para os professores que corrigirão as provas de exame.

Um aluno que obtenha aprovação nesta prova de Matemática estará bem preparado para entrar no Ensino Superior? Resalvo aqui o facto de um aluno actualmente poder entrar no ensino superior com uma nota consideravelmente inferior à obtida no exame (não defendo que se tome como nota de aprovação uma nota rígida de 10 valores, até porque os 10 valores -- metade -- estão longe de poder ser objectivamente testados de forma rigorosa numa prova de tempo limitado, ainda por cima de apenas 90 minutos). Sem entrar em discussões muito técnicas, a minha resposta à pergunta anterior é, em termos gerais, sim. Mas para que tal tenha consequências positivas, é preciso que o Ensino Superior conheça exactamente o que os alunos sabem no fim do Ensino Secundário; infelizmente isso raramente acontece por uma clara e infeliz descoordenação entre os dois ciclos de ensino. Além do mais, o Ensino Superior espera que os alunos saibam invariavelmente mais do que o programa oficial da disciplina de Matemática preconiza. Se noutros países, de estrutura social semelhante à nossa, os alunos aprendem efectivamente mais, não poderão aprender também mais em Portugal? Porque é que os alunos portugueses não entram no Ensino Superior a saber mais? Quanto a mim existem três razões fundamentais:

a) Apesar de a sociedade portuguesa declarar que valoriza muito o conhecimento e as capacidades matemáticas, na realidade não apoia a disciplina de modo a que os professores possam desempenhar cabalmente a sua missão. Por exemplo, na última Reforma Educativa a carga horária da disciplina de Matemática foi incompreensivelmente reduzida para apenas 4 horas por semana, quando já nos anos 60 o Prof. Sebastião e Silva preconizava o aumento de 5 para 6 horas semanais em função da importância que então era reconhecida a áreas da Matemática como as Probabilidades, a Estatística e os métodos de Aproximação Numérica. As primeiras áreas citadas estão actualmente presentes no ensino (não a última), mas a carga horária foi reduzida! A consequência óbvia é que os alunos aprendem muito menos em certas áreas que não deixaram de ser importantes (apesar do aparecimento de poderosas máquinas de cálculo automático) e não aprendem o que poderiam aprender noutras áreas cuja importância se acentuou recentemente (como, por exemplo, a teoria dos números inteiros fundamental na obtenção de códigos secretos, a teoria de grafos que permite comparar caminhos diferentes em mapas, ou os sistemas dinâmicos ligados à teoria do caos). Se a sociedade portuguesa pretende que os alunos entrem no ensino superior com uma boa preparação matemática, então, pelo menos para os alunos das áreas cientifico - tecnológicas não poderá deixar de se aumentar a carga horária para seis horas por semana (em França existem cargas horárias que vão até 8 horas por semana)!

b) Existe uma enorme pressão para obter "boas notas" por causa do acesso ao ensino superior. Na realidade, pais e alunos pressionam de tal modo os professores para dar notas altas que muitos bons professores deixam de querer leccionar o 12º ano ou até o ensino secundário por se recusarem a pactuar com uma situação que não permite trabalho sério. São preocupantemente frequentes processos contra professores exigentes (e não ouvi alguma vez falar de processos contra professores que dão notas escandalosamente altas!). A preparação obtida pelos alunos ressente-se com este facto (sendo ele também parcialmentre responsável pela enorme discrepância entre as notas de frequência e as notas de exame).

c) Não existe, em geral, qualquer processo de recuperação ou apoio aos alunos com dificuldades na disciplina de Matemática. A figura oficialmente designada como "Apoio Pedagógico Acrescido" não tem conseguido resolver os problemas existentes, por uma série de razões que não cabe agora discutir aqui. Não defendo que as reprovações se transformem em método pedagógico (as estatísticas dos anos 40 ou 50 mostram que não é assim que deixa de haver reprovações no fim do Ensino Secundário ou no Acesso ao Ensino Superior), mas sim que, aprovados à tangente ou reprovados, os alunos que revelam dificuldades sejam devidamente acompanhados (aulas especiais, tutorato, salas de estudo, entre outros, são de considerar). Se assim não for também não se evitarão os 9000 zeros a Matemática, como aconteceu no ano passado, por melhor que as provas sejam elaboradas, ou por melhor que todo o processo de exames seja conduzido.

Em resumo, entendo que estamos no bom caminho, faltando ainda muito para fazer. Se não se pretenderem resultados instantâneos será, estou certo disso, possível realizar um trabalho sério.

Jaime Carvalho e Silva


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