História da Matemática no ensino da Matemática

adaptação de artigo de Jean Paul Guichard


Ao despir a Matemática das suas longas tradições para a vestir com conjuntos e estruturas, muitos assuntos perderam todo o encanto e atracção.. Talvez não tenhamos despejado o bébé juntamente com a água da banheira ao retirar às matemáticas o conjunto dos assuntos e dos capítulos mais antigos e menos coerentes, mas perdemos concerteza o sabão: sabemos como é fácil encontrar estudantes que pensam que as matemáticas cheiram mal.

C.V. Jones


Que pensar do primeiro contacto de um aluno com o Teorema de Thales sob a seguinte forma:

"Enunciamos o teorema seguinte, conhecido pelo nome de Teorema de Thales: Teorema 1. Sejam A e B dois pontos diferentes e M um ponto qualquer de uma recta D; os pontos A', B' e M' sendo as imagens dos pontos A, B e M por uma projecção não constante p da recta D sobre uma recta D', o ponto M' tem a mesma abcissa no referencial (A', B') que o ponto M no referencial (A, B)" ? Este é o texto de uma manual de ensino francês, correspondente ao programa de 1978 que está longe de ser uma excepção. Todo o capítulo sobre o teorema de Thales tem esse espírito. E onde é que está Thales em tudo isso? Pode haver manuais inserindo uma nota histórica sobre Thales, mas em nenhum se encontrará qualquer referência ao teorema estudado. Que atracção pode exercer sobre um estudante uma tal apresentação? Onde está a problematização? Para que pode servir tal teorema? Não nos podemos espantar se ouvirmos reflexões do tipo: "Melhor seria se Thales não tivesse existido!..." e da boca de estudantes que pensam que Thales viveu há algumas dezenas de anos.

Ora, voltemos às fontes para dar a palavra a Diogenes Laèrce (III AC): "Hyéronime diz que Thales mediu as pirâmides a partir da sua sombra tendo observado o momento em que a nossa própria sombra é igual à nossa altura". E a Michel Serres para comentar: "A Geometria é astúcia, faz rodeios, pega uma via indirecta para chegar ao que ultrapassa a prática imediata. A astúcia, aqui, está no modelo: construir por redução de razão constante um esqueleto da pirâmide. De facto, Thales não descobriu outra coisa além da possibilidade da redução, a ideia de razão, a noção de modelo. Para uma pirâmide inacessível, Thales inventa a escala". Thales não descobriu senão isso… mas os nossos estudantes, durante a sua escolaridade, terão descoberto ao menos isso? As experiências que pude realizar em várias turmas mostram que não. E, no entanto, partindo do problema de Thales ( medir a pirâmide) desemboca-se no coração de uma problemática motivadora que mobiliza o interesse e a reflexão dos estudantes, em que se modela o real, em que se sente a utilidade prática que pode ter a matemática, na qual se vêm fundir outros conhecimentos como a proporcionalidade. Estamos em presença, pois, da criação de uma situação didáctica rica em consequências.

Por este exemplo, podemos entrever toda a complexidade do problema e o papel central que nele joga a história da matemática. Uma formação neste domínio permite realizar um recuo relativamente ao que se ensina, descolar da apresentação do manual, mas permite também a criação de novas situações didácticas pelo material que ela fornece e dar elementos para analisar estas novas situações assim como aquelas que as precederam. A utilização que se pode fazer da história da matemática permite analisar as nossas práticas de ensino.


História da Matemática e transposição didáctica.


Os conhecimentos em História da Matemática permitem compreender melhor como chegámos aos conhecimentos actuais, porque é que se ensina este ou aquele capítulo. Com efeito, sem a perspectiva crítica que a história nos dá, a matemática ensinada transforma-se pouco a pouco no seu próprio objecto, e os objectos matemáticos ficam desnaturados: já não são mais do que objectos de ensino. Aprendem-se os casos notáveis para eles mesmos, a noção de distancia para ela mesma: está-se então em presença do fenómeno da transposição didáctica em que o objecto de ensino é o resultado de uma descontextualização, está separado da problemática que lhe deu origem e que faz viver a noção como saber.

Tal fenómeno poupa o esforço de saber quando apareceu a noção e porquê, que tipo de problemas ela permitia e permite resolver. O processo de "desistorização", de "despersonalização" do saber é característico da transposição didáctica. "O saber toma o aspecto de uma realidade anti-histórica, intemporal, que se impõe por si mesma e que, sem produtor, aparecendo livre em relação a qualquer processo de produção, não se lhe pode contestar a origem, a utilidade, a pertinência… Matemática e sentido.

Começa a haver uma reacção para reencontrar o sentido do que se ensina e entre os remédios figura a história da matemática. Convém notar que apresentar o contexto no qual nos situamos, explicar o sentido do que se faz, colocar as questões numa perspectiva histórica, tudo isso não é uma preocupação estranha aos matemáticos. Por exemplo o tratado do Marquês de L'Hospital "Analyse des infiniments petits pour l'intelligence des lignes courbes" começa por um prefácio de quinze páginas a explicar o assunto tratado, o seu interesse, e colocando as novas técnicas no contexto histórico de Arquimedes a Leibniz.

Mesmo ao nível das notações, a história da matemática permite recuperar sentido, pois o símbolo não é tão arbitrário como por vezes se quer fazer crer. Ele é frequentemente um apanhado mnemónico da noção que guarda em si mesmo o traço das origens e a história do conceito que visa.

O sinal (sigma maíusculo), devido a Euler, é, em grego, a primeira letra da palavra soma. De igual modo o sinal (de integral) utilizado por Leibniz é também a inicial de soma e o d de dx, também imposto por Leibniz, é a inicial de diferença: estas notações lembram a origem dos conceitos que designam. O facto de eles terem sido adoptados e conservados não se deve ao acaso. Eis o que dizia Leibniz a respeito do dx: "Se o nosso adversário (Newton) tivesse tido conhecimento desta relação (entre as potências e as diferenças) não teria utilizado, para indicar os diversos tipos de diferenças, as letras (y) que não são apropriadas à designação do grau geral de uma diferença, mas teria conservado a notação "d" que o nosso jovem (Leibniz, quando jovem) tinha imposto, ou outra similar, porque assim "d" pode exprimir uma diferença de grau indeterminado". Na sua obra "As investigações aritméticas", Gauss explica-se sobre a notação das congruências: "De agora em diante, designaremos a congruência de dois números pelo sinal (de identidade) , a ele se acrescentando quando necessário, o módulo entre parêntesis; assim -16=9 (mod 5), -7=15(mod 11). Este símbolo foi adoptado por haver uma grande analogia entre a igualdade e a congruência. Foi pela mesma razão que Legendre empregou o próprio sinal da igualdade para designar a congruência. Só preferimos o sinal (de identidade) para prevenir a ambiguidade.


História da Matemática e Erro


Saber como pouco a pouco foram sendo forjados os conceitos e as notações matemáticas, serve também compreender melhor certos erros dos nossos alunos e poder pôr em prática situações didácticas mais adequadas para uma apropriação progressiva de certos conceitos. Porque é que tantos alunos chamam recta a um segmento quando um professor faz tanto empenho em distinguir uma coisa da outra? Pode atribuir-se esse erro a uma simples confusão de palavras, a uma falta de atenção, quando sabemos que até há pouco tempo a palavra recta designava exactamente o que nós hoje designamos por segmento? Abramos por exemplo o já citado tratado do Marquês de L'Hospital; desde a segunda página, é preciso traduzir: linha = recta, recta = segmento (ou o seu comprimento), segmento = porção de área compreendida entre um arco de curva e a corda, linha curva = curva, arco = arco (ou o seu comprimento). Esta palavra "recta" que primeiro veio à ideia dos matemáticas para designar o nosso segmento actual é também aquela que frequente e naturalmente aparece aos nossos alunos. Será portanto necessário ter isso em conta no nosso ensino e não esperar ingenuamente que o simples facto de dizer: "isto é uma recta, isto é um segmento" chegue para obter dos alunos a terminologia esperada; o terreno em que plantamos nunca é virgem.

A propósito do erro corrente "x>x' implicar que o quadrado de x maior que o quadrado de x' (em que x e x' podem ser números negativos) sabe-se que em 1830 um grande matemático como L. Carnot, membro da Academia Francesa de Ciências, tinha problemas a este propósito. Eis o que ele escrevia então: "-3 ser menor que 2, enquanto que o quadrado de (-3) ser maior que o quadrado de 2, isto é, entre duas quantidades diferentes o quadrado da maior ser menor que o quadrado da mais pequena é coisa que choca todas as ideias claras que se possam ter sobre a quantidade".


Epistemologia genética


O exemplo que acabámos de citar bem como outros conhecimentos que, no presente, são claros para nós, levaram muito tempo a ser assimilados, apreendidos em todos os seus aspectos e nas suas consequências, até pelos grandes matemáticos. É preciso tempo, uma certa familiaridade com os objectos que se estudam, para os poder dominar e trabalhar com eles. Curto-circuitar o tempo de aquisição de um conhecimento, não é um ludíbrio? Estudos d e psicologia genética , devidos a Piaget, põem em destaque o paralelismo existente entre a génese dos conhecimentos na criança e a génese dos conhecimentos ao nível da história das ciências. Por exemplo, a propósito das novas formas de explicação na criança dos 7 aos 12 anos, Piaget faz notar: "É chocante constatar que, entre as primeiras a aparecer, há algumas que se assemelham em tudo a certas formas que são atribuídas aos Gregos precisamente na época do declínio das explicações propriamente mitológicas". Podemos ainda reportar-nos a um artigo recente de uma revista científica que mostra que muitas pessoas, mesmo depois de terem estudado a mecânica newtoniana. utilizam espontaneamente para prever a queda dos corpos uma teoria introduzida no século VI e formulada no séc. X por Jean Buridam. Isso não quer dizer que seja preciso fazer cada indivíduo percorrer na sua aprendizagem por todos os meandros da história, mas significa que há etapas obrigatórias, ou pelo menos que o conhecimento das etapas do pensamento científico permite compreender melhor as reacções dos nossos alunos face aos conhecimentos que nós pretendemos fazê-los adquirir, quer se trate de erros, bloqueios ou dúvidas: Recentemente um aluno do 7º ano, enquanto trabalhávamos com quadriláteros, perguntou-me se a área de um quadrado é sempre maior que o seu perímetro. Eu fiquei chocado pela semelhança entre as suas preocupações e as dos matemáticos antigos, como Anatólio (III A.C.) que, a propósito do número 4, dizia: "O quaternário é chamado de Justiça, porque o quadrado que dele provém tem uma área igual ao seu perímetro, enquanto que, para os números que o precedem, o perímetro do quadrado é superior à área, e para os que o seguem, o perímetro do quadrado é inferior à área".


História e Pedagogia.


As dificuldades encontradas pelos alunos levam a que nos interroguemos, e a história pode permitir-nos imaginar outras estratégias de ensino. Eis o que nos dizia Clairaut a respeito das dificuldades encontradas pelos principiantes em Geometria, quando se faziam debutar, no estilo euclidiano, pelas definições, postulados, axiomas, princípios: "Algumas reflexões que fiz sobre as origens da Geometria, fizeram-me ter a esperança de evitar estes inconvenientes, reunindo vantagens para interessar e esclarecer os principiantes. Pensei que esta ciência, como todas as outras, deve ter-se formado degrau a degrau; que possivelmente houve alguma necessidade de dar os primeiros passos e que estes primeiros passos não podiam estar fora do alcance dos principiantes, dado que tinham sido principiantes os primeiros a dá-los. Prevenido com esta ideia, propus-me remontar àquilo que podia ter dado origem à Geometria; e dediquei-me à tarefa de desenvolver os princípios, por um método tão natural que pudesse supor ser o mesmo que os primeiros inventores utilizaram e evitando sempre que possível todas as falsas tentativas que eles tiveram necessariamente de fazer". Não será esta uma atitude mais razoável para abordar, pela primeira vez, o Teorema de Thales?

Os nossos alunos reagem face à nossa maneira de expor a matemática. Durante os anos 70, em presença de uma apresentação demasiado formal, em que as fórmulas e as suas demonstrações precediam os exemplos numéricos, os alunos pediam frequentemente explicações com números, não com letras. Para compreender, eles tinham necessidade de ver funcionar primeiramente os exemplos numéricos para em seguida chegar à regra. Ora este tipo de apresentação encontra-se frequentemente nos escritos antigos.. Por exemplo, no parágrafo das Métricas que trata da fórmula que tem o seu nome, Héron procede da forma seguinte; primeiro apresenta o problema: "Há um método geral para determinar, sem perpendicular, a superfície de um triângulo qualquer do qual os três lados são dados". Em seguida, ele toma um exemplo numérico (um triângulo cujos lados medem 7, 8 e 9) e mostra sobre este exemplo como se calcula a área. O que dá raíz quadrada de 720. depois ele explica como se calculam sucessivos valores aproximados de raíz quadrada de720 calculando somente o primeiro valor e mostrando como prosseguir. Vem em seguida a demonstração geométrica que é fechada por um novo exemplo numérico (triângulo cujos lados medem 13, 14 e 15). A leitura de tais textos indica que devemos modificar certas práticas de ensino, indica-nos que devemos questionar as nossas práticas. Qual é o papel dos exemplos, da demonstração no ensino da matemática? Que lugar lhe dedicamos e porquê?

Qual é a nossa prioridade: a exposição ou a aquisição de conhecimentos?

Durante um estágio de formação contínua sobre a aprendizagem da demonstração a nível do 8º ano, pôs-se o problema da redacção de um exercício de geometria pelos estudantes. As primeiras páginas dos Elementos de Euclides fornecidas aos participantes mostraram-lhes que Euclides não satisfazia a todas as suas exigências!


História da Matemática e situações didácticas


Conhecer a história da matemática permite tentativas de pôr de pé situações didácticas mais pertinentes para conseguir aprendizagens, graças ao conhecimento que se pode ter sobre a origem da noção a ensinar, sobre o tipo de problema que ela visava resolver, as dificuldades que surgiram e o modo como foram superadas. Vamos dar dois exemplos:

A primeira vez em que a noção de valor absoluto aparece nos programas franceses de matemática de 1981 é no 7º ano e não no 6º como poderiam fazer acreditar certas definições de da soma de dois relativos que aparecem nos manuais do 6º ano. Esta noção não aparece nos programas do 8º e do 9º. Que quer isso dizer? Que tipo de aprendizagem é que se pretende? Trata-se de uma forma cómoda de designar um número relativo sem o seu sinal (que é o que os alunos pensam), como a própria expressão valor absoluto sugere, a fim de enunciar de forma simples a regra da adição d e dois relativos? Porque não figura então já nos programas do 6º ano? E já que ela lá não figura, não podemos passar sem ela como faz Cauchy no seu curso da Escola Politécnica e como o fazem todos os matemáticos até ao século XIX? E se só se tratar disso, quando e como se operará a passagem a sup(a, -a) ou a |a| = a se a>0 ou a=0 e |a| = -a se a<0? Alguns elementos de resposta podem ser encontrados vendo como no século XIX se operou esta passagem e permitindo lançar um olhar crítico sobre os exercícios com valores absolutos e o seu interesse.

O segundo exemplo é o da regra dos sinais nas aulas do 7º ano. O conhecimento dos problemas que se colocaram a esta regra no decurso da história da matemática e do seu ensino, permite também encarar múltiplas situações de aprendizagem ou de desbloqueio. Talvez que a justificação dada por Euler para esta regra satisfaça a maioria; depois de ter explicado b.(-a) = -ab pela multiplicação de uma dívida, (-a).b = -ab pela comutatividade, resta só saber o que acontece a (-a).(-b). Para ele (e a experiência mostra que se passa o mesmo para os alunos) não há dúvida que a resposta só pode ser uma de duas -ab ou +ab; ora (-a).b já vale -ab donde (-a).(-b) só pode valer +ab. Por outro lado, logo que se sabe que a única explicação desta regra reside no prolongamento aos negativos da multiplicação com respeito pela distributividade, para tentar justificar esta regra ao nível do 7º ano será preciso em primeiro lugar familiarizar os alunos com a distributividade e fazer uma demonstração com um exemplo numérico e geométrico como fazia Stevin na sua Aritmética publicada em 1625.

E podemos, como Laplace fez, desenvolver de duas maneiras o produto -a,(b-b) para aqueles que como ele, não fiquem convencidos pelo argumento de Euler. na história temos muito material para criar situações didácticas e para as analisar.


Problemáticas


Se entre prática e teoria há uma distância, isso deve-se a que uma e outra têm problemáticas próprias; a da teoria sendo essencialmente uma problemática intelectual de justificação ou de reorganização do saber. A matemática moderna essencialmente teorizante criou tendência a fazer-nos esquecer o papel prático da matemática: a maior parte dos conceitos matemáticos foram criados para resolver problemas. Ao perder de vista esses problemas, a matemática perdeu o seu sentido. O interesse da fórmula de Héron dando a área de um triângulo a partir dos comprimentos dos seus três lados só pode conceber-se se pensarmos no problema prático dos agrimensores que queriam avaliar a área das parcelas de terreno com forma de polígono, decomponível em triângulos dos quais é fácil medir os lados mas para os quais seria bem mais problemático medir uma altura.. O lado prático da Geometria resolvendo problemas concretos era mencionado em todas as obras antigas. Mas não será também interessantes ver como Clairaut, no fim do seu prefácio, levantava toda uma outra problemática da Geometria de Euclides: " que Euclides se tenha dado ao trabalho de demonstrar que dois círculos que se cortam não têm o mesmo centro, que um triângulo metido dentro de um outro tem a soma dos seus lados mais pequena que a do triângulo em que está metido, não é surpreendente. Este geómetra tinha de convencer sofistas obstinados, que faziam a sua glória na recusa das verdades mais evidentes: era preciso então que a geometria tivesse, como a lógica, o socorro dos raciocínios em forma, para tapar a boca à chicana." Onde estão os sofistas hoje? Pelo contrário, seguindo a via preconizada por Clairaut "os principiantes apercebem-se a cada passo que foi preciso dar, a razão que determina o inventor, e por essa via, podem adquirir mais facilmente o espírito da invenção." para uma mesma matéria, um mesmo capítulo, a problemáticas diferentes correspondem vias de acesso e de apresentação diferentes.

A teoria torna-se necessária e torna-se a via fundamental, como nos mostra Viète a propósito da álgebra de que é inventor, quando os problemas se multiplicam e a sua resolução é laboriosa.


O implícito e o explícito


São problemáticas estranhas às preocupações dos alunos que conduziram a matemática ao que ela é hoje. E pode perguntar-se a que nível e até onde se podem importar os novos conceitos e as novas ferramentas. Com efeito, o progresso da matemática caminha frequentemente no sentido de explicações cada vez mais fortes: a evidência de ontem é coisa para ser demonstrada hoje. Mas para quem? Porquê? Tomemos o exemplo de N. Propriedades como 2+2=4 eram consideradas como evidentes. Entretanto, por pura especulação, alguns tentaram construir uma demonstração, por exemplo Leibniz:

"Definições:

1) Dois é um e um.

2) Três é dois e um.

3) Quatro é três e um.

Axioma: Substituindo coisas por coisas iguais, a igualdade mantém-se

Demonstração:

2 e 2 é 2 e 1 e 1 (def 1)

2 e 1 e 1 é 3 e 1 (def 2)

3 e 1 é 4 (def 3)

Por conseguinte (pelo axioma) 2 e 2 é 4".

Mas 180 anos mais tarde, o lógico Frege mostra que a prova de Leibniz comporta uma lacuna devida à omissão de parêntesis; utilizou, sem o dizer , a associatividade da adição! Alguns anos mais tarde, a evidencia recuará ainda e o primeiro teorema de Peano para a aritmética será "2 é um inteiro". Isto é importante e exige que nos interroguemos: teremos necessidade de por em evidência a associatividade ao nível da aprendizagem da adição? E se sim, em que momento, a que nível? É necessário insistir nela? Que propriedades devem ser explicitadas? Quando e porquê?


A dimensão humana


Enfim, para a formação dos professores, bem como par a formação dos alunos, é bom desmistificar a matemática mostrando que ela é uma obra humana, feita por homens em tempos historicamente datados , em evolução constante mesmo hoje e não, como tudo leva crer, uma obra do espírito humano numa eternidade mítica. Para isso o primeiro passo a dar é atribuir os nomes e as datas às noções e aos teoremas estudados: utilização do Teorema conhecido por Teorema de Pitágoras : 3500 anos, a sua demonstração por Pitágoras: 2500 anos; uso dos decimais: 200 anos; a sua origem: 400 anos; MDC: 2500 anos; vectores: 100 anos;… O nosso ensino não teria muito a ganhar se colocasse as noções no seu contexto e na sua problemática para que elas ganhem sentido? E já que não se pode percorrer todo o caminho do pensamento humano, que não se omitam ao menos as etapas essenciais. Deixemo-nos questionar por este texto de Jean Macé: "A longa formação do espírito humano recomeça em cada criança… O primeiro calculador não começou pelas regras abstractas que se encontram nos livros de escola. É por demais evidente que ele se deve ter encarado problemas práticos de que não se conseguiu livrar a não ser pela utilização de todos os recursos da sua inteligência para criar a regra, e que ele não fez arte pela arte. Iniciar a criança pela regra abstracta, e pôr-lhe a seguir problemas para ela resolver, é caminhar ao arrepio da marcha do espírito humano, a ela que está ao mesmo nível da infância da espécie. O que é que pode acontecer? A sua inteligência assim provocada, pode recusar-se à abstracção que lhe é apresentada antes de tempo, a sua memória entra em jogo para se carregar contrariada das palavras e das práticas cujo sentido lhe escapa. O verdadeiro método consiste em colocarmo-nos nas condições do princípio e de fazê-lo assistir, de algum modo, à criação da aritmética."

É preciso que o interesse pela história da matemática seja mais do que uma moda, ou um cosia artificial, um novo conteúdo a conhecer e a aprender. Em Marrocos, um ensino de história da matemática está previsto desde 1983 no quadro da pedagogia especial. Em França, nos programas de 82 do 11º e 12º anos literários insiste-se sobre o aspecto histórico das questões, sobre uma perspectiva histórica no quadro de "uma formação cultural global" que seja "um terreno de investimento de uma cultura filosófica". Mas como podem reagir os professores? Pode improvisar-se uma tal reconversão? Que formação receberam ou recebem os professores para fazer face a estas novas exigências? Que meios documentais foram postos à sua disposição? É mais fácil encontrar um livro de Bourbaki do que a Geometria de Descartes de que a única versão esteve disponível no mercado em 84 era uma edição bilingue americana! É justamente devido à falta de formação dos professores de Matemática que a maior parte das tentativas de integração de história da matemática no ensino tiveram vida curta: Esta formação revela -se cada vez mais necessária para o campo da didáctica, quer se trate da transposição didáctica, da análise dos obstáculos didácticos ou dos erros dos nossos alunos, quer se trate da análise das nossas próprias práticas pedagógicas.


Adaptação livre de Arsélio Martins de artigo de Jean Paul Guichard -. IREM de Lyon in Bouvier, A. (coord), Didactique des Mathématiques, Cedic/Nathan, 1986
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