Posição do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra relativamente ao projecto de portaria sobre habilitações para a docência

30/9/96

1. Análise geral

O presente projecto de portaria tem aspectos positivos e aspectos negativos. Analisaremos alguns deles adiante, mas há uma apreciação crítica a fazer logo de início, sobre um defeito muito grave: trata-se da equiparação integral dos perfis de formação dos professores dos 2(o) e 3(o) ciclos do ensino básico, nivelando o 3(o) pelo 2(o), com a consequente degradação da qualidade científica da formação dos professores do 3(o) ciclo, nomeadamente, e de forma bastante clara, dos professores de Matemática.

Nada justifica a opção por este rumo, e ele está mesmo em contradição nítida com a Lei de Bases do Sistema Educativo e com o Decreto-Lei n(o) 344/89, que institui o ordenamento jurídico da formação de professores. De facto, a Lei de Bases do Sistema Educativo distingue claramente, nos seus artigos 8(o) e 31(o), o 2(o) do 3(o) ciclo do Ensino Básico, seja nos objectivos específicos, seja no perfil de qualificações exigido aos respectivos professores. Também o Decreto-Lei n(o) 344/89 é inequívoco na distinção entre o 2(o) e o 3(o) ciclos, nomeadamente nos seus artigos 4(o) e 18(o)-n(o)1.

A anulação desta distinção pelo presente projecto de portaria não é um problema formal. O que aqui está em causa é a verdadeira natureza do 3(o) ciclo, que corresponde a níveis etários já muito avançados e onde os jovens encontram uma situação escolar diferente, mais exigente e específica, tal como de resto prescreve sem margem para dúvidas o artigo 8(o) da Lei de Bases do Sistema Educativo. É essencial defender o 3(o) ciclo de qualquer tentativa de desqualificação científica, que seria gravíssima para o futuro do nosso sistema educativo e para a qualidade da educação dos jovens portugueses.

No que se refere ao 3(o) ciclo, este projecto de portaria reflecte no essencial o mesmo impulso que presidiu às recentes propostas de alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo, que mereceram muitas críticas, nomeadamente dos departamentos de matemática das universidades públicas portuguesas (ver documento anexo). Insistimos em que este rumo é errado, e que o que está em causa é um sério problema de qualidade e coerência do sistema educativo português.

Um ponto de vista diferente deste, e essencialmente favorável ao abaixamento da exigência científica na formação dos professores dos vários ciclos, tem sido defendido por personalidades ligadas às Escolas Superiores de Educação e às chamadas Ciências da Educação. Não se vai aqui repetir o que já se disse no documento colectivo acima referido. Mas há um facto adicional, de que todos os dias ouvimos falar, que é relevante para a análise desta questão: é a falta de professores do 1(o) ciclo em Portugal, tanto mais impressionante quanto é conhecida a compressão demográfica no respectivo escalão etário. Cabe assim a pergunta: Quem forma os professores do 1(o) ciclo? Ou, de outra forma, quem deixou de os formar, e passa o melhor do seu tempo a tentar obter por vias indirectas e administrativas e não pelo mérito científico do seu corpo docente e dos seus planos de estudo o "direito" a formar professores para ciclos que exigem uma preparação científica específica que essas instituições não têm quaisquer possibilidades de proporcionar (em muitos casos mesmo para o 2(o) ciclo)?

Seria ridículo colocar a questão em termos de "competição" entre instituições. A questão de fundo é demasiado séria. O que parece óbvio é que não se resolvem os problemas de deficiente preparação dos jovens portugueses deixando de lhes ensinar as matérias, e entregando a responsabilidade do ensino a docentes eles próprios sem preparação científica. Se este projecto de portaria passasse à prática, teríamos por exemplo a ensinar no 3(o) ciclo docentes de Matemática com cerca de metade da formação científica até aqui exigida aos professores desse ciclo. O Ministério da Educação, que possui controlo administrativo integral sobre o mercado de emprego dos professores, deve portanto falar claro: ou escolhe a via da qualidade e da exigência, ou opta por um rumo que significaria uma inaceitável desistência perante a obrigação de preparar solidamente os jovens portugueses para o futuro.

2. A contracção da exigência científica na formação dos professores do 3(o) ciclo

O nivelamento que o projecto de portaria faz do perfil de formação dos professores do 3(o) ciclo pelo do 2(o) ciclo é um nivelamento por baixo, trazendo portanto como inevitável consequência uma substancial retracção dos créditos exigidos nas áreas científicas. Reduzida a formação científica a cerca de metade do que até agora era exigido aos professores do 3(o) ciclo, como atrás se disse, o projecto de portaria prossegue delimitando cuidadosamente um "território reservado" no 3(o) ciclo. De facto, um professor habilitado para a docência no Secundário não poderia, segundo o projecto, ensinar no 3(o) ciclo, pois, embora tenha formação científica superior, os créditos que possui nas "Ciências da Educação" seriam insuficientes para isso. Isto é completamente inaceitável.

Curiosamente, as diferentes disciplinas não sofreram um tratamento homogéneo. A Matemática (como também o Português) é especialmente mal tratada no projecto de portaria. O que é que pode justificar que, no Ensino Básico, o total de unidades de crédito mínimas obrigatórias para a formação profissional de um docente seja de 46 em Matemática (e em Português) contra 56,5 em cada uma das Línguas, 57 em Geografia, 60 em Ciências, 68 em Físico-Química e 80 em História? Isto toca as raias do absurdo: as disciplinas de Português e Matemática são centrais no Ensino Básico, e o projecto de portaria afirma que um futuro docente de Português ou Matemática precisa de estudar muito menos a sua área científica específica do que um futuro docente de outras áreas!

3. Comentários e propostas

a) Considera-se positiva a autonomização do grupo de docência de Matemática (e respectivo perfil de formação) no 2(o) ciclo.

b) Considera-se positiva a fixação de requisitos científicos mínimos para a docência da disciplina de Matemática nos vários ciclos. Esses requisitos científicos mínimos devem ser diferentes e progressivos de ciclo para ciclo, de forma a ajustar-se ao perfil mínimo adequado para cada ciclo. Em Matemática, esses requisitos científicos mínimos nunca deverão ser inferiores a:

64 u.c. para o 2(o) ciclo
80
u.c. para o 3(o) ciclo
96
u.c. para o Secundário.

c) Quanto à recomendação da desagregação dos requisitos científicos mínimos por áreas, levanta problemas taxonómicos que são claros no projecto de portaria, pelo menos nos anexos relativos à Matemática (EB08 e ES08). A intenção evitar formações sem qualidade, por cientificamente desequilibradas é positiva, mas talvez baste a referência às áreas obrigatórias.

d) Um professor habilitado para a docência no Secundário deve possuir habilitação automática para a docência no 3(o) ciclo, tal como um professor habilitado para a docência no 3(o) ciclo deve possuir habilitação automática para a docência no 2(o) ciclo. Esta "compatibilidade descendente" está de resto, salvo erro, prevista no Estatuto da Carreira Docente do Ensino Não-Superior.

e) Nas instituições que em Portugal fazem formação de professores, a responsabilidade pela docência de disciplinas científicas deve ser obrigatoriamente reservada a docentes especialistas nas respectivas áreas, o que significa que devem possuir o doutoramento, ou no mínimo possuirem o mestrado nessas áreas específicas e estarem a preparar o doutoramento nas mesmas áreas. O Ministério da Educação, como entidade empregadora dos futuros professores, tem o direito, e o dever, de explicitar esta exigência.

f) Deve ser estudada a viabilidade de o acesso à docência nos Ensinos Básico e Secundário depender de aprovação em exame nacional de aferição de competências científicas mínimas. A classificação neste exame deveria entrar na fórmula de cálculo da classificação profissional.

Coimbra, 30/9/96


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