Jaime Carvalho e Silva
Departamento de Matemática
Universidade de Coimbra, Portugal
Cada vez mais se ouve falar mais de História da Matemática associada ao ensino da Matemática. No ensino superior parece-me inquestionável que não deve haver formação que não inclua história da matemática. Miguel de Guzmán afirma a propósito dos cursos de ensino superior:
A História da Matemática aparece desde há alguns anos nos textos oficiais portugueses que tratam dos programas do Ensino Básico e Secundário. Contudo, aparecem de uma forma bastante desconexa, o mesmo acontecendo a outros tópicos inovadores como a ëresolução de problemasí, as ëcalculadorasí e os ëcomputadoresí ou as ëaplicações da matemáticaí. Infelizmente pouco ou nada é feito para que estes tópicos inovadores possam ser levadas à prática. No caso da História da Matemática isso é particularmente evidente. A bibliografia que deveria suportar actividades de História da Matemática é extremamente reduzida e as instituições responsáveis pouco fizeram para alterar esta situação.
Eis o que afirmam os Novos Programas de Matemática portugueses para o 3º ciclo (para os outros ciclos aparecem referências semelhantes pelo que não as vou referir aqui) nas suas considerações gerais:
"Se oportuno, os alunos poderão fazer um pequeno trabalho em grupo sobre a resolução de equações na História da Matemática (resolução de equações particulares na antiguidade, Pedro Nunes e a resolução de equações, a escrita simbólica e o seu contributo para o avanço na resolução de equações e sua utilização, etc.)."
"Aspectos da História da Matemática relacionados com a trigonometria - como apareceu, qual o seu contributo, curiosidades interessantes (como Eratóstenes determinou o raio da Terra, por exemplo), etc., poderão ser objecto de trabalhos dos alunos ao longo ou depois do estudo desta unidade."
"Um pequeno trabalho sobre a geometria na História
da Matemática poderá contribuir para um outro tipo de reflexão
[sobre axiomas, teoremas, demonstração,...]"
Significará isto que a História da Matemática nunca poderá passar para dentro da sala de aula? Ou que não tem a relevância que estes novos programas lhe querem dar? Não penso isso! Na realidade penso que a História da Matemática tem um papel muito relevante a desempenhar na melhoria do Ensino da Matemática, correndo-se o risco grave de ser esquecida daqui a uns anos por ter sido introduzida nos textos oficiais de forma inconsequente.
Começo por distinguir dois aspectos: a História do Ensino da Matemática e a História da Evolução da Ciência Matemática. A primeira é extremamente útil aos professores, pois dá-lhes uma maior distanciação e uma maior capacidade crítica em relação à situação presente. Permite ver como é que a Matemática era ensinada noutros tempos, quais os problemas que os professores enfrentaram, porque é que outras reformas do ensino triunfaram ou fracassaram. Quanto à segunda, podemos resumir, dizendo com André Weil que perguntar "Porquê a História da Matemática?" é o mesmo que perguntar "Porquê a Matemática?", ou seja, a História da Matemática está indissoluvelmente ligada à sua própria História. Nessa conferência cita Leibniz:
ii- o estudo dos autores clássicos pode oferecer grande satisfação em si, mas também pode servir de guia no trabalho matemático;
iii- ajuda a compreender a nossa herança cultural, não só através das aplicações que a matemática teve e ainda tem à astronomia, física e outras ciências, mas também através da relação que teve e ainda tem com campos tão variados como a arte, a religião, a filosofia e os ofícios;
iv - oferece um campo de discussão comum com estudantes e professores de outras áreas.
v - fornece um pano de fundo para se compreenderem as tendências no Ensino da Matemática no passado e no presente.
vi - Pode-se temperar o ensino com conversas e anedotas.
Muito ficou já dito, mas não me parece ainda claro o ëcomoí. Como introduzir a História da Matemática no Ensino? Penso que aqui ainda há lugar para muita investigação e muitas experiências. Aquilo que vou dizer a seguir não passam de meras sugestões e opiniões pessoais.
Um primeiro aspecto diz respeito à própria ordenação das matérias. Por exemplo, Sebastião e Silva, no seu Compêndio de Matemática introduzia os números complexos da seguinte forma:
Equações do 3º grau -> Fórmula
de Tartaglia -> Necessidade das "quantidades silvestres" de Bombelli com
A>0 para que a fórmula de Tartaglia forneça todas as raízes
reais -> "PROBLEMA. Construir um corpo C que verifique as 3 seguintes condições:
(...)" (Compêndio de Matemática, 1º vol-2º tomo,
pg.
136-152, ed. GEP)
Num artigo intitulado ëThe changing concept of change: The derivative from Fermat to Weierstrassí a autora, Judith Grabiner, chama a atenção para o facto de o conceito de derivada ter sido primeiro usado, depois descoberto explorado e desenvolvido e só no fim definido; e interroga-se se o ensino do conceito de derivada não estará errado por começar logo com a definição de derivada. É caso para pensar.
Outra abordagem possível consiste na utilização de pequenos pedaços da História da Matemática na sala de aula. Em anexo encontram-se excertos ou adaptações de vários textos de diferentes épocas que me parece poderem ser utilizados com proveito na sala de aula em alturas variadas (por exemplo, para motivar a introdução de um conceito, para fornecer mais uma perspectiva sobre um conceito, para ajudar a sedimentar um conceito, para servir como aula de exercícios - para não serem só exercícios rotineiros a cumprir esta função). Fazem parte de uma série de textos que tenho usado em sessões com professores e que espero poderem vir a ser editados um dia em forma de livro.
Existem já várias colectâneas de textos matemáticos originais ou adaptados, com apenas alguns comentários ou com análises detalhadas e até exercícios complementares. Por exemplo:
ï I.R.E.M. Mathématiques au fil des âges. Paris: Gauthier-Villars, 1987.
ï Fauvel, John and Jeremy Gray, ed. The History of Mathematics - A Reader. London: MacMillan Press/The Open University, 1987.
ï I.R.E.M. Histoires de Problèmes-Histoire des Mathématiques. Paris: Ellipses-Ed. Marketing, 1993.
Infelizmente não existe nenhuma tradução portuguesa!
Para terminar apresento um breve comentário sobre cada um dos excertos propostos em anexo:
Aristarco de Samos e as divisões
Nem só a Matemática exacta é importante, e noutras épocas já havia a preocupação de encontrar resultados que, embora não totalmente exactos pudessem ser mais manejáveis na prática e pudessem mais facilmente ser compreendidos.
Números figurados
Os platonistas tinham uma visão muito peculiar do mundo. Dizia Filolaus(séc IV a.C.): "Todas as coisas que podem ser conhecidas têm número; pois não é possível que sem número qualquer coisa possa ser concebida ou conhecida". E nesse sentido procuravam descrever tudo com a ajuda do número. Os números figurados dos platonistas são uma excelente ocasião para integrar filosofia, álgebra e geometria.
Euler e o crescimento populacional
O livro "Introductio in Analysin Infinitorum"
de Euler é um dos seus livros de texto mais importantes por onde
gerações inteiras aprenderam o princípio da análise
(estando o cálculo diferencial e integral em dois outros livros),
e onde muita da notação actual foi introduzida ou estabilizada.
Os dois exemplos transcritos mostram como os exemplos eram interessantes
e não discutiam só aspectos formalistas, mas também
se preocupavam com o significado do que se fazia, como por exemplo o mostra
a seguinte frase: ëEste número de habitantes é tão
considerável, que toda a terra não teria sido suficiente
para os alimentarí Esta frase é aliás um excelente ponto
de partida para um trabalho com os alunos que os leve pelos caminhos das
Aplicações da Matemática e da Modelação
Matemática.
APÊNDICE
Aristarco de Samos e as divisões
Aristarco de Samos foi um astrónomo grego (séc. III a.C.); calculou a distância da Terra ao Sol, e apresentou pela primeira vez a teoria heliocêntrica.
No decurso dos seus cálculos de astronomia pretendia apresentar um valor aproximado da divisão de 71 755 875 por 61 735 500. Ele afirmou que era aproximadamente igual à divisão de 43 por 37, por defeito.
Questão:
Verifica a precisão da aproximação. O erro é grande? (O que é 'grande'?)
Aristarco não indica o modo como fez os cálculos, mas provavelmente usou o algoritmo de Euclides. Eis como funciona
71 755 875 = 61 735 500 + 10 020 375
61 735 500 = 6 ¥ 10 020 375 + 1 613 250
10 020 375 = 6 ¥ 1 613 250 + 340 875
Como 340 875 é muito pequeno em relação aos números em jogo, podemos desprezá-lo e assim
71 755 875 = 61 735 500 + 10 020 375
= (6 ¥ 10 020 375 + 1 613 250) + 10 020 375
= (6 ¥ (6 ¥ 1 613 250 + 340 875) + 1 613 250) +
+ (6 ¥ 1 613 250 + 340 875)
ª (6 ¥ (6 ¥ 1 613 250) + 1 613 250) + 6 ¥ 1 613 250
ª 43 ¥ 1 613 250
61 735 500 = 6 ¥ 10 020 375 + 1 613 250
= 6 ¥ (6 ¥ 1 613 250 + 340 875) + 1 613 250
ª (6 ¥ (6 ¥ 1 613 250)) + 1 613 250
ª 37 ¥ 1 613 250
Logo, dividir 71 755 875 por 61 735 500 é aproximadamente igual a dividir 43 por 37. Porquê por defeito?
1. Aristarco também afirma que 7921 a dividir por 4050 é aproximadamente igual a 88 a dividir por 45. Será verdade? Verifica.
2. Escolhe dois números grandes e aplica-lhe o processo de Aristarco para obter dois números cuja divisão dê aproximadamente o mesmo resultado que a dos números iniciais.
Números figurados
Extractos da obra "Introdução aritmética" do neoplatónico Nicómaco de Gerase (séc. II d.C.):
´ 1. É portanto triângulo o número que, na sua resolução em unidades, configure em triângulo a posição equilateral no plano das suas partes; tem por exemplos: 3, 6, 10, 15, 21, 28, e o seguimento; porque as suas configurações bem ordenadas serão triângulos e equilaterais, e progredindo deste modo até onde tu quiseres, encontrarás formado um triângulo, e arrumando antes de tudo o mais elementar, o que nasce da unidade, para que a própria unidade apareça em triângulo em potência, mas o primeiro triângulo em acto é o 3.
2. Os lados aumentar-se-ão do número seguinte, porque o lado do primeiro número triângulo em potência é a unidade, o lado do primeiro em acto, o 3, é a díade, o lado do segundo em acto, o 6, é a tríade, o lado do terceiro é a tétrade, o do quarto a pêntade, o do quinto a héxade, e assim sempre.
3. Gera-se quando o número natural é exposto em linha e que, sempre desde o início, os números sucessivos são adicionados um a um, porque os triângulos bem ordenados realizam-se em cada adição e empilhamento; por exemplo a partir desta linha natural:
1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,
tomando o primeiro número, tenho o primeiro
triângulo em potência, a unidade, em seguida, empilhando em
cima dele o seguinte, tenho o primeiro triângulo em acto,
porque 3 é 2 e 1, e na representação figurada, ele
constitui-se assim: sob a primeira unidade apomos duas unidades lado a
lado, e o número é triangulado; a seguir 3, que é
o número seguinte, empilhado sobre este, espalhado em unidades e
reunido, produz 6, segundo número triângulo em acto,
e dá-lhe também uma configuração; e por seu
turno, o número que segue naturalmente 4, empilhado sobre estes
e notado em unidades, dá o número 10, bem ordenado a seguir
aos que acabámos de falar, e toma uma configuração
triangular; e 5 depois dele, depois 6, depois 7, e todos os seguintes,
de modo que os lados de cada um contarão harmoniosamente tantas
unidades quantos os números da linha natural reunidos para a sua
constituição.
4. É tetrágono o número que vem depois deste e que dá, não mais três ângulos como o precedente, mas quatro ângulos na representação figurada, no entanto também uma configuração equilateral, como:
1,4,9,16,25,36,49,64,81,100,
porque os seus traçados equilaterais tornam-se
tetrágonos
do modo seguinte:
e assim de seguida até onde tu quiseres.
5. Acontece a estes números, como aos que o precedem, que a progressão dos lados segue o número natural; porque no primeiro em potência um, a unidade é o lado, no primeiro em acto, 4, a díade é lado, no segundo em acto, 9, a tríade é lado, no seguinte, o terceirto em acto, 16, a tétrade é lado, no quarto, a pêntade, no quinto, a héxade, e dum modo geral assim de seguida para todos os seguintes.
6. Este gera-se também quando o número natural que se estende pela unidade é exposto em linha, empilhando não mais os seguintes sobtre os seguintes, como foi mostrado, mas todos aqueles que são distantes de um uns dos outros, quer dizer os ímpares ; porque o primeiro é 1, primeiro tetrágono em potência, o segundo 1 e 3, primeiro tetrágono em acto, o terceiro 1,3,5, segundo tetrágono em acto, o quarto 1,3,5 e 7, terceiro tetrágono em acto, e o seguinte nasce do empilhamento de 9 sobre os precedentes, e aquele que vem depois dele, do de 11, e assim sempre.
7. Acontece a estes números que o lado de cada um comporta tantas unidades quantos números estão empilhados para a sua geração. ª
Questões:
1. Indique o sexto e o sétimo números triângulo .
2. Indique o sexto e o sétimo números tetrágono .
3. Que igualdade sugere a geração dos tetrágonos na alínea 6?
4. Que igualdade sugere a seguinte disposição
("tête-bêche") de pares de triângulos?
5. Seguindo a mesma regra construa os primeiros 5 números pentagonais e os primeiros 5 números hexagonais.
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Euler e o crescimento populacional
Extractos de "Introductio in Analysin Infinitorum"(2 vols, Lausanne, 1748) de Leonhard Euler (1701-1783), traduzidos a partir de uma versão francesa:
Exemplo II
Suponhamos que o número de habitantes de uma província cresce todos os anos um trinta avos, e que haja no começa 100000 habitantes; queremos saber quantos haverá ao fim de 100 anos. Seja, para abreviar, o número dado de habitantes=n, de modo que n=100000; ao cabo de um ano o número dos habitantes será=(1+1/30) n = 31/30 n ; ao cabo de dois anos=(31/30)2n; ao cabo de três=(31/30)3n; e enfim ao cabo de 100 anos=(31/30)100n=(31/30)100100000. O logaritmo deste último número=100 L 31/30 +L 100000. Ora L 31/30=L31-L30= 0,014240439; logo 100 L 31/30=1,4240439, juntando L100000=5, o logaritmo do número procurado dos habitantes=6,4240439, ao qual responde o número=2654874. Portanto, ao cabo de cem anos o número de habitantes será mais de vinte e duas vezes mais considerável.
Exemplo III
A terra tendo sido repovoada depois do dilúvio por seis homens; suponhamos que ao cabo de duzentos anos o número de homens se tenha elevado a 1000000, pergunta-se de que parte teve que aumentar todos os anos. Suponhamos que durante este tempo o número de homens tenha aumentado todos os anos de 1/x, o número de homens durante duzentos anos terá necessariamente subido a ((1+x)/x)2006=1000000, donde se tira (1+x)/x=(1000000/6)1/200 . Donde L(1+x)/x= 1/200 L= 1/200 5,2218487 = 0,0261092; por consequência (1+x)/x = 1061963/1000000 e 1000000 = 61963 x. Portanto x=16 aproximadamente. Assim, para uma tão grande população, teria sido necessário que o género humano tivesse aumentado todos os anos um dezasseis avos; o que a duração da vida dos primeiros homens torna verosímil. Se o mesmo aumento tivesse continuado a ter lugar durante 400 anos, o número de homens teria subido a 1000000. 1000000/6 = 166666666666. Este número de habitantes é tão considerável, que toda a terra não teria sido suficiente para os alimentar.
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