Seis mais seis

João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra

Público, 28 de Julho de 2004, p. 8.


A Lei de Bases da Educação recentemente devolvida ao Parlamento pelo Presidente da República contém uma reforma de que se tem falado pouco mas que é de grande importância. Trata-se da reorganização dos ensinos básico e secundário. A Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986 instituiu um ensino básico de nove anos e um ensino secundário de três anos. A Lei de Bases da Educação de 2004 substitui essa sequência 9+3 pela sequência 6+6, isto é, o ensino básico passa de nove para seis anos e o secundário de três para seis anos.

À primeira vista, dir-se-ia que esta alteração é irrelevante. Mas não é assim. Se acompanhada dos necessários ajustes noutros planos, a mudança da lógica 9+3 pela 6+6 poderá contribuir muito para a melhoria da educação em Portugal. Muitos dos actuais problemas educativos do país estão associados ao erro cometido até agora com a organização do ensino básico.

O que é que está em causa? Sem preocupações com a ordem, eis algumas das questões principais.

O argumento usado para o ensino básico ter nove anos consistiu em associá-lo à escolaridade obrigatória, que passou também para nove anos com a Lei de 1986. Essa associação é artificial. Em muitos outros países a escolaridade obrigatória é mais longa - e a lei em discussão também propõe o seu alargamento para Portugal - e ninguém se lembra de defender que sobre 10, 11 ou 12 anos deva existir unicidade integral de percursos escolares, que é a ideia associada à palavra "básico". A escolaridade obrigatória pode ser de nove anos ou mais sem os conteúdos serem 100 por cento iguais para todos no 3º ciclo. A experiência vem mostrando que a unicidade de percursos no 3º ciclo levanta problemas graves, aos quais se procura responder com artifícios do tipo "flexibilidade curricular", "currículos alternativos", "aprendizagens mínimas", etc., que traduzem a confissão de um falhanço. A possibilidade legal de adaptação dos percursos escolares aos alunos poderia ter um efeito muito benéfico no combate ao insucesso e ao abandono escolar, que são de resto outros grandes problemas com a actual concepção do ensino básico. Para prevenir efeitos indesejáveis de opções prematuras, deve haver permeabilidade total entre percursos.

Devido às pressões a que está submetido, o actual 3º ciclo constitui um elo muito frágil da nossa cadeia escolar, com graves problemas de qualidade, sendo essencial repensar o seu posicionamento e aproximá-lo do chamado secundário. Esta aproximação, praticada na maioria dos países da União Europeia, corresponde aliás de forma conveniente aos níveis de desenvolvimento etário naturais (6-12, 13-18).

Uma forma essencial de proceder a essa aproximação é na rede escolar. Os jornais referem-se com frequência ao esvaziamento das escolas do 1º ciclo e das escolas secundárias. No caso do 1º ciclo, assistimos ao fim de um modelo muito descentralizado de rede de escolas, com muitas escolas pequenas e dispersas. No caso do secundário, o esvaziamento proveio de um facto simples: as escolas secundárias foram dimensionadas para terem alunos dos 13 aos 18 anos, se não dos 11 aos 18, e são hoje frequentadas apenas pelos alunos dos 10º, 11º e 12º anos.

Entre estes dois tipos de escolas foram criadas as chamadas escolas básicas 2+3, onde coexistem os alunos dos 2º e 3º ciclos. Estas escolas - que estão tudo menos vazias! - são um erro. É bastante evidente que o ambiente dominante numa escola é determinado pelos alunos mais velhos que a frequentam. Nas escolas 2+3, esses alunos têm 14 ou 15 anos, idade difícil, imatura e turbulenta, idade de transição, de exteriorização, de fuga à tutela familiar. Por alguma razão os mais graves problemas de agitação, indisciplina e violência ocorrem nas escolas 2+3 e são invariavelmente provocados por alunos do 3º ciclo. Manter estes jovens junto de crianças, em posição de definir o clima dominante da escola, não parece grande ideia, e contribui para a infantilização do próprio 3º ciclo e para a crise das aprendizagens. Aproximá-los dos mais velhos - eventualmente também já com alguma flexibilidade de percursos - poderia ajudar à sua motivação e crescimento mais equilibrado.

Por outro lado, juntar nas escolas o 3º ciclo ao 4º facilitará o aumento da frequência deste último, e portanto o cumprimento do desígnio de aumentar a escolaridade obrigatória para 12 anos. Actualmente, a transição do 3º ciclo para o secundário - onde pela primeira vez surgem no horizonte provas nacionais de avaliação - é um momento delicado, que causa grandes dificuldades a muitos jovens, propiciadoras de insucesso e abandono.

Todas estas razões sugerem que uma rede escolar coerente deveria ter escolas 1+2, ou básicas, e escolas 3+4, ou secundárias. Claro que também poderia haver, como já há, escolas integradas com os 12 anos de escolaridade. Um desafio que se coloca, neste contexto, é a concepção de mecanismos que articulem uma tal rede com as existentes escolas profissionais.

Um outro importante plano na aproximação do 3º ciclo ao secundário é o da formação de professores. Também aqui a proposta de Lei de Bases da Educação aponta no caminho certo, ao reservar aos estabelecimentos de ensino universitário, como a exigência das matérias naturalmente impõe, a formação de professores do (novo) ensino secundário de seis anos. Claro que isto não basta: os modelos de formação e contratação de professores são hoje problemas gravíssimos em Portugal, exigindo mecanismos urgentes de garantias de qualidade.

Uma política alternativa de educação em Portugal bem poderia começar por instituir uma lógica diferente, a lógica 6+6, no ensino não superior. Todos os factos e argumentos sugerem que seria uma solução bem melhor que a actual.