Formação e contratação de professores

João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra

Actas do Seminário "O Ensino da Matemática: Situação e Perspectivas"
Conselho Nacional de Educação, Lisboa, 2003, pp. 131-140




Introdução

A questão da formação de professores é um dos mais importantes reveladores dos erros cometidos pelo Estado português – pelos sucessivos governos e parlamentos – em matéria de ensino superior nos últimos 15-20 anos.

Entre esses erros, o primeiro e o mais grave é a ausência de uma política de qualidade. O Estado e os seus sucessivos representantes desinteressaram-se do ensino superior, em particular do universitário, ao ponto de perderem de vista a sua natureza profunda, que é a de ser a estrutura que em Portugal se dedica continuadamente ao estudo, investigação e docência de alto nível. Estas actividades são a prazo gravemente comprometidas por políticas públicas que abrem caminho a arremedos, simulações e desperdícios.

O desinteresse estatal revelou-se e manifestou-se de muitas formas. Em primeiro lugar, uma política liberal de “autonomias”, com as instituições deixadas quase “independentes” e com a consagração de modelos de governo muito inadequados à missão científica do ensino superior.

Esta política é acompanhada da ausência de reais controlos de qualidade das instituições, e da pior das regulações, que é o estrangulamento financeiro indiscriminado quando há problemas orçamentais. Assiste-se também à culpabilização das instituições por opções tomadas no exercício dessa mal concebida “autonomia”.

Há ausência de planeamento nacional, gestão irracional de recursos, criação errática de instituições sem corpo docente qualificado próprio, multiplicação descontrolada de cursos, tudo dominado por perspectivas de curto prazo. A juntar a isto, o Estado propiciou uma “concorrência” (falsa e desleal) entre instituições pertencentes a subsistemas de ensino superior com objectivos distintos.
 

Problemas da formação de professores

Mais especificamente, no que se refere à formação de professores, há ausência de regulação de cursos com uma componente profissionalizante numa área estratégica, prolongada indecisão quanto ao que constitui a qualidade das instituições e dos planos de formação, autorização de acesso descontrolado à profissão sem exigência de habilitações (sobretudo para as disciplinas de Matemática e Português, que nos discursos de ocasião são sempre apontadas como prioritárias). Em suma, assistimos a um completo “baixar da guarda” em matéria de qualidade na formação e da contratação de profissionais numa área a que, no plano do discurso, sempre se atribuiu a máxima prioridade.

A agravar tudo isto, o Ministério da Educação usa a simples nota de licenciatura para ordenar os candidatos aos concursos de professores. Não é preciso ser um génio para perceber que este sistema induz toda a sorte de sentidos de oportunidade por parte de instituições de formação de professores, que, frequentemente, inflacionam tanto mais as notas dos seus estudantes quanto menos qualidade elas próprias, instituições, têm.

É assim possível que um estudante entre para uma instituição desqualificada de ensino superior com, digamos, 5 no exame nacional de Matemática e se licencie com 18 ou 19, obtendo colocação como professor de Matemática. Ao mesmo tempo, outro estudante pode entrar com 17 no exame nacional, vindo a licenciar-se, numa instituição exigente, com 14 ou 15, o que o conduz directamente ao desemprego.

É esta situação aceitável? Podem as coisas continuar a passar-se assim? Deve o sistema de contratação punir e recompensar as instituições da forma descrita? E que consequências tem este sistema de contratação na qualidade dos ensinos básico e secundário? Pode melhorar-se o ensino com tal “política” de contratação?

A situação que se vive a este respeito configura uma verdadeira “batota institucional”, que afecta a qualidade do ensino da Matemática, e prejudica todos os esforços para melhorar a formação inicial de professores. Juntamente com a revogação dos “despachos de habilitações” (regime especial de emergência que já nada justifica), conviria pôr cobro a tal situação com a maior rapidez. Nenhuma política de melhoria do ensino da Matemática em Portugal poderá ser levada a sério se isso não for feito.

Apenas para comparação, observe-se o contraste com os cursos de formação de profissionais de saúde e a enorme atenção com que estes são regulados e acompanhados. A comparação revela-se útil para perceber o real cuidado que tem sido posto na formação de professores, profissionais numa área que, repete-se, merece aparente empenho nos discursos políticos. É pena que a opinião pública não acompanhe estes assuntos com suficiente espírito crítico.

As dificuldades na concepção e concretização de políticas adequadas nestas matérias vêm do facto de que os efeitos dos erros sentem-se anos ou décadas depois, o que facilita a irresponsabilidade dos agentes envolvidos. E a opinião pública está indefesa perante discursos espessos e rebuscados de pretensos “especialistas”.

Há necessidade permanente de controlo da qualidade do sistema educativo por análise objectiva de resultados. Portugal não pode hesitar em matéria de qualificação da população, por mais teoricamente colorida que essa hesitação se apresente.
 

O caso da Matemática

No resto deste curto texto, alinho algumas propostas a respeito da formação e contratação de professores. O modelo de formação e o sistema de contratação são duas faces de uma mesma moeda, não sendo fácil dizer se a recente separação dos ministérios responsáveis por um e por outro facilita ou dificulta a resolução dos problemas existentes.

As propostas incidem mais nos 3º e 4º ciclos da escolaridade (hoje chamados 3º ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário), não só porque são os níveis que conheço melhor mas porque devem claramente ser tratados em conjunto. O actual 3º ciclo deveria estar, neste como noutros planos (incluindo a rede de escolas, os grupos de docência e a avaliação), próximo do Secundário. A anunciada alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo nesse sentido é uma boa notícia, que além do mais nos aproxima da maioria dos nossos parceiros da União Europeia.

Penso também, conforme o tema deste Seminário, sobretudo nos professores de Matemática, embora muitas observações sejam comuns a outras áreas e disciplinas. Ouvimos muitas vezes tratar a Matemática como uma disciplina à parte, que levanta problemas únicos e reclama medidas próprias e excepcionais, devido aos resultados médios desanimadores em avaliações nacionais e estudos internacionais. É preciso ter algum cuidado com a caracterização desse lugar à parte.

Tratar a Matemática como um caso especial dizendo que à Matemática só podem ter acesso alguns eleitos, e que para a Matemática é preciso ter um cérebro especial, tem um grave inconveniente, que é obscurecer o facto essencial de que a primeira condição para “entrar” na Matemática é estar disponível para fazer algum esforço. Creio que a Matemática é impiedosa perante a preguiça. É esta coisa simples que explica a famosíssima “dificuldade” da Matemática, uma disciplina em que não dá resultado o estudo ocasional e superficial. E é isso que leva aos problemas, tão falados, dos “maus resultados” em Matemática no nosso país. A progressiva desvalorização e relativização do esforço e do trabalho no ambiente social que rodeia a escola portuguesa – sem esquecer a prestimosa ajuda de certos ideólogos – têm como primeira vítima o estudo e a aprendizagem da Matemática, uma disciplina muito sensível ao afrouxar do esforço continuado.

A Matemática é assim uma espécie de “passarinho do mineiro”. O mineiro leva um passarinho na gaiola para a mina de carvão, para detectar a tempo as infiltrações de grisu. Quando o passarinho cai na gaiola, o mineiro sabe que existe um problema e há que descobrir e combater a infiltração de gás (ou então fugir da mina).

A Matemática funciona como revelador de uma crise mais vasta, que é a crise da escola, do estudo e do esforço sério e continuado como valores que a sociedade aceita e promove como indispensáveis para a qualificação intelectual e cultural dos portugueses. Esta crise não é exclusiva de Portugal, mas infelizmente apanha o nosso país numa fase muito mais incipiente do desenvolvimento cultural e educativo relativamente a outros países da Europa.
 

Propostas para a formação de professores

Um dos princípios básicos que fundamentam a organização de um curso de formação de professores é a ideia de que deve haver separação clara entre a componente de formação na especialidade e as restantes componentes de formação. Em particular, são de recusar modelos em que a componente de introdução à prática profissional (incluindo já formação pedagógico-didáctica) tem início logo nos primeiros anos. O argumento de que isso se faz noutros cursos profissionalizantes como medicina não é válido, porque – com a possível excepção dos cursos de formação para o pré-escolar e 1º ciclo – as duas situações não são comparáveis. Os estudantes acabaram de sair da escola, não necessitando portanto de contactos introdutórios com a realidade escolar. Por outro lado, os primeiros anos de formação são o momento por excelência da formação na especialidade, sendo importante não desvalorizar esta nem perturbá-la com confusões prematuras de áreas de estudo.

Recorde-se também a conveniência de não estreitar excessivamente a formação. Este é um argumento não directamente relacionado com a lógica interna de um curso de formação de professores, mas de facto não parece prudente encerrar os estudantes desde os primeiros anos num percurso que só tem uma saída profissional (ainda por cima numa altura em que o mercado de emprego para os professores atravessa uma fase tão difícil). É esse de resto o espírito que enforma as grandes orientações europeias sobre o ensino superior.

Quanto à extensão da componente de formação na especialidade, ela não deve ser inferior a três anos. No caso de um curso de formação de professores de Matemática para os níveis que aqui nos interessam, é preciso recordar a variedade de temas que têm de ser estudados com o necessário rigor e profundidade: os grandes temas da Análise e suas aplicações, incluindo aspectos algorítmicos e aproximados; as várias abordagens à Geometria; os números inteiros e a análise combinatória; as disciplinas algébricas nas suas aplicações concretas e em alguns dos seus desenvolvimentos abstractos mais relevantes e centrais; a introdução às Probabilidades e à Estatística; a aquisição de competências informáticas e de programação. O estudo destes tópicos – que são de resto os que devem estar presentes na formação de qualquer estudante de Matemática, seja qual for o seu percurso posterior – não se pode abreviar ou comprimir, substituindo-o por exposições vagas ou conjuntos de receitas sem qualquer valor formativo. E tal estudo deve ser levado a cabo tendo em mente que se pretende a formação de um espírito matemático rigoroso e flexível, capaz de integrar e relacionar conhecimentos, e treinado na resolução de problemas em áreas variadas.

A clareza na definição da componente de formação na especialidade não significa que não deve haver uma fase de “integração” de conhecimentos da especialidade como parte da componente pedagógico-didáctica, tendo em vista exclusivamente a preparação profissional do futuro docente.

O modelo preferível para um curso formação de professores de Matemática para os 3º e 4º ciclos consiste assim em: a) três anos de formação na especialidade, larga e sólida, seguidos de b) um ano de formação pedagógico-didáctica, com integração de conhecimentos na perspectiva do ensino, psicologia da adolescência e introdução à realidade escolar, e finalmente c) um indispensável ano de prática profissional supervisionada.

Outras propostas no plano de organização do sistema nacional de formação são as seguintes:

1) Fim da possibilidade de instituições pertencentes a subsistemas de ensino superior distintos formarem para as mesmas habilitações.

Não faz sentido, e é um factor de irracionalidade num sistema que se pretende regulado, autorizar, para as mesmas saídas, cursos em instituições com objectivos e estatutos de carreira docente diferentes, ainda por cima em mercado de emprego com as condições de funcionamento do actual, em que há completa cegueira em relação à qualidade. Para além deste argumento – que pode parecer formal – há a realidade material de que as escolas superiores de educação (as escolas politécnicas de formação de professores) não possuem condições científicas para formar professores de Matemática do 3º ciclo. Deve portanto ser revista a Lei de Bases do Sistema Educativo, no sentido de separar claramente os níveis para que podem formar universidades e politécnicos: 3º ciclo e secundário para as universidades, pré-escolar e 1º ciclo para os politécnicos; tenho dúvidas quanto ao 2º ciclo. Essa revisão pode ser feita sem prejuízo da actividade das instituições, dado que as alterações de 1997 não foram ainda regulamentadas.

2) Proibição de admissão a cursos de formação de professores de estudantes com nota negativa nas provas nacionais de acesso.

Isto deveria ser completamente óbvio. Se não faz sentido admitir estudantes com nota negativa em nenhum curso do ensino superior, é completamente irresponsável fazê-lo para cursos que pretendem formar os futuros professores das escolas portuguesas.

3) Controlo próximo da qualidade das instituições: corpo docente próprio, ambiente científico e cultural, instalações, bibliotecas, outros recursos.

O INAFOP (Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores) tinha precisamente este objectivo. Mas o INAFOP acaba de ser extinto, ainda antes de ter começado a sua actividade de acreditação. Independentemente de se saber se o INAFOP ia corresponder às expectativas iniciais que rodearam a sua criação (na sequência da alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo em 1997) – e houve quem manifestasse alguns receios a esse propósito – mantém-se a necessidade de um mecanismo ou estrutura que vigie e fiscalize as instituições e os cursos de formação de professores. Sobre isto o silêncio do actual governo é total, o que é inquietante.

4) Uniformização do funcionamento dos cursos de formação de professores.

Em conexão com os pontos anteriores, justifica-se a fixação de regras gerais prévias sobre as instituições e os cursos de formação de professores, incidindo nomeadamente sobre as qualificações do corpo docente e os planos de estudo, incluindo as fórmulas de cálculo das notas finais.
 

Propostas para o sistema de contratação

Em ligação estreita com a questão da formação temos o sistema de contratação de professores. Este tem uma dupla influência na qualidade do ensino. Por um lado, como é óbvio, na qualidade dos professores que chegam às escolas. Por outro lado, tende a influenciar as condições da própria formação.

Um sistema de contratação cuja única preocupação seja procurar a qualidade dos professores – como é obrigação do Estado – deverá ser enformado pelos seguintes princípios e contemplar as seguintes medidas:

1) Não reconhecimento ou acreditação, para efeitos de formação de professores, das instituições sem corpo docente próprio com elevados níveis de qualificação.

A este respeito não deveria ser necessário alinhar argumentos. Não há ensino superior digno desse nome numa instituição sem corpo docente próprio altamente qualificado.

2) Fim da ordenação dos candidatos à docência pela sua nota de licenciatura.

Face à multiplicação do número de instituições que o Estado reconhece para o efeito de formar professores, não é possível continuar a atribuir-lhes da mesma forma a capacidade certificadora, de enorme responsabilidade social, que antes era reconhecida a um número muito reduzido de instituições. A nota de licenciatura não é hoje um indicador com a fiabilidade necessária para ser usada como instrumento de ordenação dos candidatos num concurso nacional de professores. A manutenção de tal sistema está a provocar situações que não honram ninguém, muito menos o Estado que tem a obrigação de defender o interesse público.

3) Criação de um exame nacional de graduação incidindo sobre as áreas de especialidade de docência.

A classificação obtida neste exame seria usada para a graduação nos concursos de acesso à docência. Poderiam apresentar-se a tal exame os licenciados, por instituição reconhecida, em curso contendo as componentes profissionalizantes finais. O exame não incidiria sobre estas, bastando para elas o reconhecimento por instituição credível.

4) Revogação imediata dos despachos de habilitações que permitem o acesso à profissionalização de docentes sem as necessárias qualificações científicas.

Estes despachos ministeriais, com versões cada vez mais permissivas a partir de 1998, são uma verdadeira legislação de emergência, para situações de falta aflitiva de professores. Não fazem nenhum sentido hoje (como não faziam já em 1998), quando o mercado de emprego para os professores está saturado. Mas continuam em vigor, e ao seu abrigo vai aumentando a percentagem, já elevada, de docentes sem as necessárias qualificações.

5) Possível reexame das habilitações dos professores que obtiveram a profissionalização nos últimos anos.

Esta medida foi já sugerida em recente relatório da comissão de avaliação das licenciaturas de Português, e é justificada pela necessidade de corrigir os efeitos dos despachos de habilitações anteriormente referidos.

Como comentário final, direi que não se deve esquecer que na área da educação não há um mercado “livre” de emprego, em que a qualidade dos candidatos se imponha por si. A actual situação, em que há dezenas de instituições de formação de professores funcionando cada uma quase como quer, não permite a manutenção de um sistema de contratação como o que actualmente existe. Nenhuma política de melhoria do ensino, e do ensino da matemática em particular, poderá, repete-se, ser levada a sério se esta situação não for radicalmente modificada.