Notas sobre o Ensino Superior

João Filipe Queiró

"Governar com a troika - Políticas públicas em tempo de austeridade" (Maria de Lurdes Rodrigues, Pedro Adão e Silva, orgs.)
Actas do Forum das Políticas Públicas - ISCTE-IUL, 18 a 20 de Março 2014
Almedina, Coimbra, 2015, p. 729-733.




É difícil ter hoje um discurso unívoco sobre o Ensino Superior. Este já não existe como objecto homogéneo de reflexão. A enorme expansão do Ensino Superior transformou-o numa realidade multifacetada, muito diversa e heterogénea, no plano das missões, no plano institucional, no seu próprio conteúdo, na relação com a investigação e a economia, no financiamento, na autonomia, na qualidade.

Mas há ainda a convicção, que partilho, de que o Ensino Superior, após a “base mínima da cidadania” em que se transformou o Ensino Secundário, é uma área crucial para a igualdade de oportunidades, para a empregabilidade, para a mobilidade social e para o desenvolvimento cultural, científico e económico. É um sector estratégico para o país, para além de nele residir muita da esperança de que tanto precisamos como colectividade.

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O Memorando de Entendimento assinado pelo governo português em Maio de 2011 não continha praticamente nenhuma referência ao Ensino Superior. (Creio que a única referência explícita era a medida 7.22 – curiosamente, mal traduzida na versão portuguesa – que prescrevia a eliminação de uma excepção ao Código dos Contratos Públicos para as universidades de regime fundacional – um regime de autonomia reforçada – no quadro de uma eliminação geral de excepções ao referido código.)

Sendo assim, não há lugar, em matéria de Ensino Superior, a uma avaliação de impactos específicos do Memorando de Entendimento, a não ser – e já não seria pouco – os resultantes da má situação orçamental geral que todos conhecemos.

Neste quadro, e seguindo a orientação prevista para as intervenções neste Forum, concentro-me numa óptica prospectiva, necessariamente parcelar, quanto ao papel do Ensino Superior no desenvolvimento de Portugal nos próximos anos.

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Dois “factos pesados”, entre outros, nos últimos anos são, por um lado,  a queda global da procura do Ensino Superior, medida pelos Concursos Nacionais de Acesso, e, por outro, o aumento da escolaridade obrigatória para 18 anos.

Este último facto compensa de alguma forma a queda demográfica, fazendo aumentar progressivamente o número de cidadãos portugueses com o Ensino Secundário completo, nas suas diversas vias, incluindo o Ensino Profissional.

Quanto à queda da procura do Ensino Superior (refiro-me ao público) tem já vários anos. De 2012 para 2013, a queda foi de cerca de 6%. No Concurso Nacional de Acesso de 2013 (considerando as três fases), ficaram 9620 vagas por preencher.

Além do Concurso Nacional de Acesso há vários concursos especiais, nomeadamente o concurso para maiores de 23 anos, mas os números do concurso nacional são os mais reveladores.

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Podemos desagregar o número de vagas por preencher de várias maneiras. Por subsectores, temos 2080 vagas por preencher no universitário e 7540 no politécnico. No primeiro caso, 6,8% do total, no segundo, 35,5% do total.

Geograficamente, a tendência é a esperada: sem estar a especificar caso a caso, observamos mais vagas por preencher nas instituições do interior e menos no litoral.

Por áreas de formação, mais de um terço das vagas por preencher (3358) pertence às áreas das Engenharias e Técnicas Afins e Arquitectura e Construção. Há outros números muito elevados. Uma área que impressiona não só em absoluto mas também em percentagem das vagas oferecidas é a da Agricultura, Silvicultura e Pescas: 580 vagas por preencher, mais de 77% das vagas iniciais.

No que se refere à área das Engenharias, há dois elementos a considerar na queda da procura. O primeiro diz respeito ao caso específico da Engenharia Civil. Já foi muitas vezes observado que a opinião pública, nestas matérias, reage rapidamente às notícias sobre a evolução das áreas de trabalho. Aconteceu no passado com outras, acontece agora com a Engenharia Civil, dada a queda generalizada das actividades da construção nos últimos anos.

Outro elemento, de natureza muito diferente, é o seguinte. A partir do ano lectivo 2012/2013, deixou de ser possível aceder a cursos de Engenharia (com algumas excepções) sem ter as disciplinas de Matemática e Física-Química. Isto decorre da Portaria n.º 1031/2009, de 10 de Setembro, que produziu efeitos três anos depois. A portaria está correcta, e pôs fim a muitos anos de situações de laxismo que não honravam ninguém. Simplesmente, isso fez diminuir de modo brusco o número de candidatos aos cursos de Engenharia, que são cursos normalmente com bons níveis de emprego e com boas contribuições para a Economia.

O que se observa é que o país não “produz” jovens em número suficiente que tenham aproveitamento em Matemática e Física-Química no Secundário. Como desejo manter-me fiel à restrição de só falar de Ensino Superior, não farei mais comentários sobre este assunto, a não ser para dizer que já há quem fale em relaxar de novo a exigência no acesso, remetendo para os primeiros anos dos cursos o colmatar das deficiências de preparação dos estudantes.

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Voltando à queda global dos números, há estudos recentes sobre explicações possíveis.  A explicação mais frequentemente citada tem que ver com a crise económica: muitas famílias não têm possibilidades de pagar os estudos superiores dos jovens que terminam o Secundário.

Note-se que, apesar de o desemprego de diplomados do Ensino Superior estar a aumentar, é ainda claramente inferior ao dos grupos com menos qualificações académicas. Esta consideração leva à conclusão de que, em termos estritamente de emprego, prosseguir estudos vale a pena. Ela, no entanto, não é suficiente, em muitos casos, para levar as famílias ao investimento associado ao prosseguimento de estudos. Mais preciso ou menos preciso, o raciocínio é o de que o investimento de hoje não é compensado pelo possível retorno de amanhã.

Mas a este dado junta-se um outro: as estatísticas mais recentes mostram que, com a dificuldade de emprego para os jovens apenas com o Secundário, aumentou substancialmente o número de jovens que não estudam nem trabalham, o que é um grave problema social e económico.

Não devemos ter ilusões: sempre houve pessoas que não prosseguiram estudos por motivos económicos, preferindo entrar mais cedo no mercado de trabalho. O que é novo é a dimensão do problema e a queda no número de oportunidades de emprego para os que têm apenas o Secundário (e, por maioria de razão, o Básico). O número dos cidadãos em Portugal com menos de 30 anos de idade que não estudam nem trabalham é hoje muito grande.

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Que políticas públicas conceber para a situação actual do país em matéria de Ensino Superior, nomeadamente nos aspectos referidos?

Um tema de que todos nos lembramos imediatamente é o da Acção Social Directa, o das bolsas de estudo. Não vou entrar em análises de pormenor sobre isto. Direi apenas que é uma área que, nos últimos anos, não tem sofrido cortes. A despesa, ano após ano, tem andado por volta dos 120 milhões de euros, o que não é um valor baixo em termos comparados. Esta despesa vai subir no presente ano lectivo. Actualmente, cerca de 2/3 do referido montante são assegurados por verbas europeias. A sustentabilidade do sistema é uma questão que suscita constantes preocupações e que deve merecer a maior atenção. Foi introduzida uma exigência crescente em termos de aproveitamento escolar e essa pode ser uma via a prosseguir, para não prejudicar, e mesmo eventualmente alargar, o apoio a quem dele mais precisa.

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Quanto a políticas públicas no Ensino Superior que favoreçam o emprego dos diplomados, podemos pensar em várias. Uma é a divulgação, iniciada em 2012, no portal da Direcção-Geral do Ensino Superior, da empregabilidade de todos os pares estabelecimento/curso.

Outra é a consideração da empregabilidade como factor na fixação das vagas dos cursos dos estabelecimentos públicos.

Conheço os argumentos, de várias naturezas, contra tal consideração. Em particular, conheço a observação de que o Ensino Superior – neste caso é mais frequentemente citado o Ensino Universitário – não deve ter uma ligação demasiado estreita à questão do emprego, até porque ninguém sabe exactamente como vai ser o mercado de trabalho no futuro. Mas há também quem pense que as instituições de ensino superior têm a responsabilidade de não ignorar as condições do mercado de trabalho que os seus diplomados vão encontrar.

Não é uma questão de preto-e-branco. A Educação, e em especial o Ensino Superior, interpela-nos, talvez mais do que outras áreas, sobre o tipo de sociedade que queremos ser.

Já tive muitas oportunidades de citar uma carta do 2.º Presidente dos EUA, John Adams, à mulher, em 1780.  Mas não resisto a recordá-la mais uma vez:

«Tenho de estudar a política e a guerra, para que os meus filhos tenham a liberdade de estudar matemática e filosofia. Os meus filhos deverão estudar matemática e filosofia, geografia, história natural, construção naval, navegação, comércio e agricultura de modo a dar aos seus filhos o direito a estudar pintura, poesia, música, arquitectura, escultura, tapeçaria e cerâmica.»

Muitos dirão que isto é lirismo, mas não há dúvida de que o funcionamento do Ensino Superior público em Portugal tenta fazer um compromisso entre os gostos, vocações e interesses dos jovens e a realidade da economia, do mercado de trabalho e do desemprego.

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Uma iniciativa que poderá ter um grande impacto em matéria de desenvolvimento, emprego e equilíbrio regional é a criação de novos cursos superiores curtos nos institutos politécnicos, sobre os quais têm circulado opiniões díspares.

Não é possível aqui entrar em pormenores. Direi apenas o seguinte. Primeiro, os interessados no assunto deverão ir reler o relatório da OCDE de 2007 sobre o Ensino Superior português (“Tertiary Education in Portugal”), onde o assunto é tratado e se recomenda esta via. Segundo, tem interesse ver o que se tem passado, em matéria de ciclos curtos, na Europa, onde existem em muitos países. Terceiro, não há conflito com os Cursos de Especialização Tecnológica, que na sua grande maioria funcionam nos politécnicos, onde deverão ser progressivamente descontinuados.

Os novos cursos terão um ano e meio em ambiente politécnico e meio ano em ambiente profissional, cujo bom funcionamento depende de acordos celebrados com os empregadores como condição para a própria criação dos cursos. A expectativa, e a intenção da sua criação, é que estes cursos, criados numa lógica de proximidade – fundamental no cálculo dos custos que os estudantes têm –, levem ao aumento da frequência do Ensino Superior e favoreçam o emprego e o desenvolvimento económico regional.

Estes ciclos curtos serão parte importante do cumprimento pelo Ensino Politécnico da sua missão específica, ao reforçarem uma diversificação da oferta que poderá trazer novos públicos para o Ensino Superior, diminuindo o número dos jovens que actualmente não estudam nem trabalham e proporcionando oportunidades de formação qualificada a cidadãos desempregados.

Sem obviamente vedarem o prosseguimento de estudos (possibilidade acautelada pelo decreto de Bolonha revisto, Decreto-Lei n.º 115/2013, de 7 de Agosto), estes cursos deverão ter uma identidade própria, não se resumindo a uma via alternativa de acesso às licenciaturas. Se bem sucedidos, poderão ser um poderoso instrumento de qualificação dos portugueses, de crescimento do emprego, de desenvolvimento económico e de equilíbrio do território.

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Outros pontos importantes para o futuro do Ensino Superior são a estabilidade das leis fundamentais (com as alterações pontuais que as circunstâncias imponham, como foi o caso com o decreto de Bolonha), a importância crucial da manutenção dos mecanismos de garantia de qualidade, tão atacados em 2011, e a resistência à erosão do princípio autonómico associada ao habitual protagonismo do Ministério das Finanças em situações de crise financeira.

Esta erosão é sobretudo um fenómeno anual associado às Leis do Orçamento. Uma boa notícia é que a Assembleia da República, em 2013, repristinou o artigo 94.º da Lei de Enquadramento Orçamental (caído no pico da crise, em Abril de 2011), que acautela um regime especial de autonomia administrativa e financeira para as instituições de ensino superior: veja-se a Lei n.º 37/2013, de 14 de Junho.