No
passado dia 31 de Maio completaram-se 150 anos sobre a morte de
Évariste Galois.
Galois
morreu aos 20 anos mas na sua curta vida teve tempo para fazer
contribuições importantes para a Matemática. Dessas
contribuições destaca-se, como a mais notável, o esclarecimento
das condições exactas em que as raízes de um polinómio de
qualquer grau se podem obter, por operações algébricas
elementares, a partir dos seus coeficientes. Ficou assim
definitivamente solucionado o problema da resolubilidade (por
meio de “fórmulas resolventes”) das equações algébricas.
Tal
como acontece sempre que alguém com capacidades invulgares morre
muito cedo, também perante o desaparecimento prematuro de Galois
ficam interrogações difusas sobre o que ele poderia ter feito,
ou onde teria chegado, se..., se... Os especialistas do
condicional estão aqui em terreno fértil.
O
caso de Galois presta-se a isso tanto mais que ele morreu em
circunstâncias rocambolescas, num duelo de carácter passional. E
isto depois de uma vida acidentada: participação em revoluções,
estadias na prisão, etc.
Mas
não se vai contar aqui, pela milésima vez, a história da vida de
Galois. Essa história, sobretudo no que se refere aos seus
episódios mais espectaculares, é sobejamente conhecida. Não, o
que se pretende com esta nota é chamar a atenção para dois
artigos, recentemente vindos a público em duas prestigiadas
revistas, e que questionam a versão vulgarmente aceite sobre
certos aspectos da vida de Galois.
Vejamos:
O
principal responsável pela grande difusão da biografia do jovem
matemático francês como ela é conhecida foi sem dúvida o
americano Eric Temple Bell, com o seu excelente livro “Men of
Mathematics” (na tradução francesa “Les Grands Mathématiciens”).
Este livro é uma colecção de biografias de matemáticos, desde
Zenão (séc. V a. C.) até Cantor (1845-1918). O seu 20º capítulo,
dedicado a Galois, intitula-se “Génio e estupidez”. É um
verdadeiro romance, com momentos dramáticos e com o já referido
fim trágico. Quem o leia não pode deixar de ficar impressionado
com as incompreensões, se não mesmo as perseguições, de que terá
sido vitima, por parte do establishment científico da época, um
jovem idealista e generoso que tinha, completamente sozinho,
solucionado um dos mais importantes e difíceis problemas
matemáticos então
Contada
como está por estes dois autores, a vida de Galois é o sonho de
qualquer biógrafo. Eles fazem surgir o jovem matemático como
vítima de uma conspiração permanente: ele é reprovado em
sucessivos exames, ele vê os seus trabalhos perdidos ou
rejeitados, ele é preso sem razão, ele sofre injustiças de todos
os géneros. Simplesmente, a realidade não foi talvez tão
nitidamente recortada, tão “fotogénica”, digamos.
Em
“Genius and biographers: the fictionalization of Évariste
Galois” (American Mathematical Monthly, Fevereiro 1982) e, mais
resumidamente, em “The Short life of Évariste Galois”
(Scientific American, Abril 1982), um matemático americano, Tony
Rothman, reexamina a biografia de Galois à luz de documentos
inéditos recentemente descobertos e também de textos e
testemunhos conhecidos há muito tempo mas geralmente ignorados.
A sua análise convence pela exaustão, rigor e seriedade com que
é levada a cabo. Rothman disseca o texto de Bell de fio a pavio,
confrontando-o com inúmeras outras fontes, incluindo o trabalho
clássico de Paul Dupuy
É-nos
impossível listar todos os desvios e omissões (uns mais
desculpáveis, outros menos) que Rothman detecta no trabalho de
Bell. Não têm todos a mesma importância; alguns serão
irrelevantes, outros contribuíram para o aparecimento de
verdadeiras lendas (como o que se refere à noite anterior ao
duelo, durante a qual Galois teria passado a escrito,
resumidamente e à pressa, o essencial das suas descobertas
matemáticas – Rothman mostra ser isto pura ficção). Aqui vamos
apenas referir-nos ao que é talvez o aspecto mais chocante da
versão de Bell sobre a vida de Galois: o desprezo ou
desinteresse manifestados, relativamente aos seus trabalhos, por
alguns dos mais conceituados cientistas franceses da época e
mesmo de sempre: Cauchy, Fourier e Poisson.
Não
se trata, no que se segue, de “tomar partido” por este contra
aquele. Isso terá talvez piada. Mas não é fazer história.
Galois submeteu, em meados de
1829 (com 17 anos!), dois artigos à Academia das Ciências de
Paris. Esses artigos continham os resultados das suas primeiras
investigações sobre a resolubilidade das equações. Segundo Bell,
Cauchy, que tinha sido nomeado para apreciar os trabalhos e
sobre eles elaborar um relatório, esqueceu-se de o fazer, tendo
mesmo perdido os manuscritos.
Ora,
afirma Rothman, uma carta de Cauchy recentemente “desenterrada”
dos arquivos da Academia prova que, seis meses depois de os ter
recebido, Cauchy ainda estava de posse dos artigos de Galois,
tinha-os lido e tinha a intenção de sobre eles apresentar um
relatório à Academia (o que na realidade nunca fez). E há
indicios de que Cauchy se apercebeu da importância daqueles
primeiros trabalhos de Galois e de que o teria mesmo encorajado
a prosseguir, nomeadamente (mas isto já só é uma conjectura)
reunindo as suas investigações numa memória com a qual
concorresse ao Grande Premio de Matemática da Academia.
Galois
de facto concorreu a esse Prémio logo a seguir, tendo depositado
um trabalho nas mãos de Fourier, Secretário da Academia. Fourier
morreu dias depois, e o artigo de Galois nunca mais foi
encontrado. Os factos foram estes, e não parece legítimo, do
ponto de vista do rigor histórico, extrair deles qualquer
conclusão especial.
Finalmente,
o “caso Poisson”. Em princípios de 1831, Poisson convidou Galois
a submeter uma nova versão do seu artigo à consideração da
Academia. Galois assim fez. O trabalho entregue contém os seus
resultados mais importantes sobre a resolubilidade das equações,
incluindo a introdução e o estudo do que hoje se chama o grupo
de Galois de um polinómio.
Algum
tempo depois, Poisson dá um parecer negativo sobre o artigo.
Segundo Bell, o famoso matemático e físico terá secamente
qualificado o trabalho de Galois de “incompreensível”. Não é
isso o que se pode ler no relatório original enviado a Galois e
que é citado por Rothman. Algumas frases desse relatório:
“Fizemos todos os esforços para compreender as demonstrações do
Sr. Galois. A sua argumentação não é suficientemente clara nem
está suficientemente desenvolvida para nos permitir ajuizar da
sua correcção. (...) Para formar uma opinião definitiva deve
aguardar-se que o autor publique o seu trabalho numa versão mais
completa”. O manuscrito foi devolvido a Galois mas, como se vê,
não é exacto nem justo dizer-se que Poisson o rejeitou com a
indicação de que o achava “incompreensível”. Aliás, de acordo
com um matemático inglês citado por Rothman, estas e outras
críticas de Poisson são perfeitamente correctas e justificadas:
Galois, segundo ele, apresentava os seus raciocínios de forma
extremamente concisa e difícil de seguir, e mesmo com alguns
erros.
Claro
que Galois não levou nada disto a bem. E aqui entramos noutro
aspecto do texto de Bell que Rothman procura esclarecer. Segundo
Bell, a rejeição e a incompreensão do seu génio por parte dos
que o rodeavam transformaram Galois num ser amargurado e
levaram-no a envolver-se em actividades políticas radicais que
acabaram por o conduzir à prisão. Rothman mostra que só uma
entorse à cronologia dos acontecimentos permite sustentar esta
tese. Na verdade, vários incidentes mostram que as opções
políticas de Galois vêm mais de trás. O que o destino dos seus
trabalhos submetidos à Academia desencadeou com certeza em
Galois foi um grande azedume em relação àquela instituição,
azedume esse que Rothman chega a classificar como paranóico. De
facto, há provas de que um dos passatempos de Galois (ainda
antes do relatório de Poisson) era ir para a Academia insultar
os oradores. E isto seria apenas um exemplo, entre outros,
ilustrativo de que Galois não era exactamente a figura inocente
e passiva retratada por Bell (e por Caraça).
Hoje
em dia é pacífico que a História não é uma ciência objectiva.
Ela é escrita conforme, por um lado, as informações e os
documentos existentes em cada época, e, por outro, os gostos, as
tendências e mesmo as conveniências de cada autor particular.
“Quem conta um conto acrescenta um ponto”, diz o ditado. Bell
acrescentou alguns pontos, suprimiu outros, e o resultado foi a
imagem familiar que temos do Galois-génio-perseguido. Surge
agora, com os contornos ainda imprecisos, uma imagem de
Galois-génio-turbulento-com-azar. O Galois-mito vai dando lugar
ao Galois-homem, e estará bem assim. Os mitos são importantes,
sem dúvida, mas, para quem não é apreciador de mitos, aí está o
que é talvez uma melhor aproximação da verdade sobre a vida de
Galois. Dizemos “talvez” porque nos limitámos a expor as
opiniões de outrem. E isto mesmo de que estivemos a falar deve
ser suficiente para nos convencer dos perigos que há