No 150º aniversário da morte de Galois
João Filipe Queiró
Contacto n.º 7, p. 1 and 6, July 1982.




No passado dia 31 de Maio completaram-se 150 anos sobre a morte de Évariste Galois.


Galois morreu aos 20 anos mas na sua curta vida teve tempo para fazer contribuições importantes para a Matemática. Dessas contribuições destaca-se, como a mais notável, o esclarecimento das condições exactas em que as raízes de um polinómio de qualquer grau se podem obter, por operações algébricas elementares, a partir dos seus coeficientes. Ficou assim definitivamente solucionado o problema da resolubilidade (por meio de “fórmulas resolventes”) das equações algébricas.


Tal como acontece sempre que alguém com capacidades invulgares morre muito cedo, também perante o desaparecimento prematuro de Galois ficam interrogações difusas sobre o que ele poderia ter feito, ou onde teria chegado, se..., se... Os especialistas do condicional estão aqui em terreno fértil.


O caso de Galois presta-se a isso tanto mais que ele morreu em circunstâncias rocambolescas, num duelo de carácter passional. E isto depois de uma vida acidentada: participação em revoluções, estadias na prisão, etc.


Mas não se vai contar aqui, pela milésima vez, a história da vida de Galois. Essa história, sobretudo no que se refere aos seus episódios mais espectaculares, é sobejamente conhecida. Não, o que se pretende com esta nota é chamar a atenção para dois artigos, recentemente vindos a público em duas prestigiadas revistas, e que questionam a versão vulgarmente aceite sobre certos aspectos da vida de Galois.


Vejamos:


O principal responsável pela grande difusão da biografia do jovem matemático francês como ela é conhecida foi sem dúvida o americano Eric Temple Bell, com o seu excelente livro “Men of Mathematics” (na tradução francesa “Les Grands Mathématiciens”). Este livro é uma colecção de biografias de matemáticos, desde Zenão (séc. V a. C.) até Cantor (1845-1918). O seu 20º capítulo, dedicado a Galois, intitula-se “Génio e estupidez”. É um verdadeiro romance, com momentos dramáticos e com o já referido fim trágico. Quem o leia não pode deixar de ficar impressionado com as incompreensões, se não mesmo as perseguições, de que terá sido vitima, por parte do establishment científico da época, um jovem idealista e generoso que tinha, completamente sozinho, solucionado um dos mais importantes e difíceis problemas matemáticos então em aberto. Na mesma linha, e com interesse para o público de língua portuguesa, temos a conferência de Bento de Jesus Caraça “A vida e a obra de Evaristo Galois” (reproduzida em Conferências e Outros Escritos, daquele autor).


Contada como está por estes dois autores, a vida de Galois é o sonho de qualquer biógrafo. Eles fazem surgir o jovem matemático como vítima de uma conspiração permanente: ele é reprovado em sucessivos exames, ele vê os seus trabalhos perdidos ou rejeitados, ele é preso sem razão, ele sofre injustiças de todos os géneros. Simplesmente, a realidade não foi talvez tão nitidamente recortada, tão “fotogénica”, digamos.


Em “Genius and biographers: the fictionalization of Évariste Galois” (American Mathematical Monthly, Fevereiro 1982) e, mais resumidamente, em “The Short life of Évariste Galois” (Scientific American, Abril 1982), um matemático americano, Tony Rothman, reexamina a biografia de Galois à luz de documentos inéditos recentemente descobertos e também de textos e testemunhos conhecidos há muito tempo mas geralmente ignorados. A sua análise convence pela exaustão, rigor e seriedade com que é levada a cabo. Rothman disseca o texto de Bell de fio a pavio, confrontando-o com inúmeras outras fontes, incluindo o trabalho clássico de Paul Dupuy em que Bell (tal como Caraça) afirma basear a sua biografia, e também textos do próprio Galois.


É-nos impossível listar todos os desvios e omissões (uns mais desculpáveis, outros menos) que Rothman detecta no trabalho de Bell. Não têm todos a mesma importância; alguns serão irrelevantes, outros contribuíram para o aparecimento de verdadeiras lendas (como o que se refere à noite anterior ao duelo, durante a qual Galois teria passado a escrito, resumidamente e à pressa, o essencial das suas descobertas matemáticas – Rothman mostra ser isto pura ficção). Aqui vamos apenas referir-nos ao que é talvez o aspecto mais chocante da versão de Bell sobre a vida de Galois: o desprezo ou desinteresse manifestados, relativamente aos seus trabalhos, por alguns dos mais conceituados cientistas franceses da época e mesmo de sempre: Cauchy, Fourier e Poisson.


Não se trata, no que se segue, de “tomar partido” por este contra aquele. Isso terá talvez piada. Mas não é fazer história.


Galois submeteu, em meados de 1829 (com 17 anos!), dois artigos à Academia das Ciências de Paris. Esses artigos continham os resultados das suas primeiras investigações sobre a resolubilidade das equações. Segundo Bell, Cauchy, que tinha sido nomeado para apreciar os trabalhos e sobre eles elaborar um relatório, esqueceu-se de o fazer, tendo mesmo perdido os manuscritos.


Ora, afirma Rothman, uma carta de Cauchy recentemente “desenterrada” dos arquivos da Academia prova que, seis meses depois de os ter recebido, Cauchy ainda estava de posse dos artigos de Galois, tinha-os lido e tinha a intenção de sobre eles apresentar um relatório à Academia (o que na realidade nunca fez). E há indicios de que Cauchy se apercebeu da importância daqueles primeiros trabalhos de Galois e de que o teria mesmo encorajado a prosseguir, nomeadamente (mas isto já só é uma conjectura) reunindo as suas investigações numa memória com a qual concorresse ao Grande Premio de Matemática da Academia.


Galois de facto concorreu a esse Prémio logo a seguir, tendo depositado um trabalho nas mãos de Fourier, Secretário da Academia. Fourier morreu dias depois, e o artigo de Galois nunca mais foi encontrado. Os factos foram estes, e não parece legítimo, do ponto de vista do rigor histórico, extrair deles qualquer conclusão especial.


Finalmente, o “caso Poisson”. Em princípios de 1831, Poisson convidou Galois a submeter uma nova versão do seu artigo à consideração da Academia. Galois assim fez. O trabalho entregue contém os seus resultados mais importantes sobre a resolubilidade das equações, incluindo a introdução e o estudo do que hoje se chama o grupo de Galois de um polinómio.


Algum tempo depois, Poisson dá um parecer negativo sobre o artigo. Segundo Bell, o famoso matemático e físico terá secamente qualificado o trabalho de Galois de “incompreensível”. Não é isso o que se pode ler no relatório original enviado a Galois e que é citado por Rothman. Algumas frases desse relatório: “Fizemos todos os esforços para compreender as demonstrações do Sr. Galois. A sua argumentação não é suficientemente clara nem está suficientemente desenvolvida para nos permitir ajuizar da sua correcção. (...) Para formar uma opinião definitiva deve aguardar-se que o autor publique o seu trabalho numa versão mais completa”. O manuscrito foi devolvido a Galois mas, como se vê, não é exacto nem justo dizer-se que Poisson o rejeitou com a indicação de que o achava “incompreensível”. Aliás, de acordo com um matemático inglês citado por Rothman, estas e outras críticas de Poisson são perfeitamente correctas e justificadas: Galois, segundo ele, apresentava os seus raciocínios de forma extremamente concisa e difícil de seguir, e mesmo com alguns erros.


Claro que Galois não levou nada disto a bem. E aqui entramos noutro aspecto do texto de Bell que Rothman procura esclarecer. Segundo Bell, a rejeição e a incompreensão do seu génio por parte dos que o rodeavam transformaram Galois num ser amargurado e levaram-no a envolver-se em actividades políticas radicais que acabaram por o conduzir à prisão. Rothman mostra que só uma entorse à cronologia dos acontecimentos permite sustentar esta tese. Na verdade, vários incidentes mostram que as opções políticas de Galois vêm mais de trás. O que o destino dos seus trabalhos submetidos à Academia desencadeou com certeza em Galois foi um grande azedume em relação àquela instituição, azedume esse que Rothman chega a classificar como paranóico. De facto, há provas de que um dos passatempos de Galois (ainda antes do relatório de Poisson) era ir para a Academia insultar os oradores. E isto seria apenas um exemplo, entre outros, ilustrativo de que Galois não era exactamente a figura inocente e passiva retratada por Bell (e por Caraça).


Hoje em dia é pacífico que a História não é uma ciência objectiva. Ela é escrita conforme, por um lado, as informações e os documentos existentes em cada época, e, por outro, os gostos, as tendências e mesmo as conveniências de cada autor particular. “Quem conta um conto acrescenta um ponto”, diz o ditado. Bell acrescentou alguns pontos, suprimiu outros, e o resultado foi a imagem familiar que temos do Galois-génio-perseguido. Surge agora, com os contornos ainda imprecisos, uma imagem de Galois-génio-turbulento-com-azar. O Galois-mito vai dando lugar ao Galois-homem, e estará bem assim. Os mitos são importantes, sem dúvida, mas, para quem não é apreciador de mitos, aí está o que é talvez uma melhor aproximação da verdade sobre a vida de Galois. Dizemos “talvez” porque nos limitámos a expor as opiniões de outrem. E isto mesmo de que estivemos a falar deve ser suficiente para nos convencer dos perigos que há em fazer História em segunda mão.