A MATEMÁTICA (1537-1771)

João Filipe Queiró
(Julho 1993)

Publicado em:
História da Universidade em Portugal – Sec. 5, Cap. V - O saber: dos aspectos aos resultados (ed. A. Ferrer Correia, L. A. Oliveira Ramos, Joel Serrão, A. Oliveira),
vol. I, Part II (1537-1771), Univ. Coimbra - Fund. Gulbenkian, 1997.


 
            Os séculos XVI, XVII e XVIII foram um período fulcral na História da Matemática. Neles se processou a transição entre a Antiguidade e a Modernidade. No início do século XVI, pesem as contribuições de chineses, indianos e árabes e de alguns autores europeus medievais, a Matemática conhecida era ainda, essencialmente, a Matemática dos antigos gregos. Em finais do século XVIII, os conteúdos e formalismos são já praticamente do nosso tempo, podendo mesmo dizer-se que parte apreciável dos tópicos cobertos em certas disciplinas básicas das licenciaturas em Matemática de hoje são conhecidos, de uma forma ou de outra, há pelo menos 200 anos.

            O primeiro grande momento deste período de renovação pode, no que diz respeito à chamada Matemática Pura, ser facilmente identificado: é a descoberta da fórmula para as soluções das equações do 3º grau por matemáticos da península itálica (del Ferro (c.1465-1526), Tartaglia (c.1506-1557), Cardano (1501-1576)). Primeiro grande progresso sobre as realizações da Antiguidade, causou no seu tempo funda impressão, constituindo estímulo para novas pesquisas. Estas não se fizeram esperar, havendo a registar, logo a seguir, a resolução das equações do 4º grau (Ferrari (1522-1565)) e o início da manipulação das raízes quadradas de números negativos (Bombelli (c.1526-c.1572)).

            Deve referir-se que a Álgebra, domínio em que se deram estes avanços, estava, na época, completamente permeada pela linguagem e pelos métodos da Geometria. Era essa a tradição grega, nomeadamente dos Elementos de Euclides (séc. III a.C.), obra em que se encontram muitas proposições correspondentes a factos algébricos simples enunciadas em linguagem puramente geométrica. Este facto (relevante pela extraordinária influência do livro de Euclides ao longo dos tempos, até aos nossos dias) tem suscitado debates sobre as suas causas e significado. Sem entrar em tais controvérsias, pode dizer-se que para a génese dessa atitude são em geral apontadas as dificuldades dos gregos com as quantidades irracionais, que emergem da aplicação do Teorema de Pitágoras (séc. VI a.C.): naturais portanto do ponto de vista geométrico, os números irracionais terão levantado problemas filosóficos que adiaram por séculos o progresso da Álgebra.

            A partir dos fins do século XVI, a Álgebra inicia um processo de gradual autonomização relativamente à Geometria, com a progressiva introdução de simbologia mais concisa, o uso de letras para denotar coeficientes e incógnitas e o abandono do princípio geométrico da homogeneidade dimensional. Os principais nomes nesta "libertação" da Álgebra são Viète (1540-1603), Descartes (1596-1650), Fermat (1601-1665) e Wallis (1616-1703), mas o processo continuou até bem dentro do século XVIII. Com Descartes e Fermat aparecem as primeiras aplicações sistemáticas do "método das coordenadas" (a que mais tarde se chamará Geometria Analítica), que permite uma fecunda identificação da Geometria com a Álgebra.

            Os progressos da Álgebra e das suas notações e a introdução da Geometria Analítica criaram as condições para a invenção do Cálculo Diferencial e Integral por Newton (1642-1727) e Leibniz (1646-1716). Este extraordinário instrumento permitiu a resolução de inúmeros problemas matemáticos, astronómicos e físicos, tendo provocado uma verdadeira explosão de investigações e descobertas por todo o século XVIII, com os Bernoulli (Jacques (1654-1705) e Jean (1667-1748)) e os seus métodos sofisticados para resolver problemas de máximos e mínimos, Euler (1707-1783), d'Alembert (1717-1783) e muitos outros.

            Talvez a mais notável aplicação do novo Cálculo tenha sido a demonstração por Newton das três leis sobre o movimento dos planetas, enunciadas por Kepler (1571-1630) após exaustivas observações astronómicas. Newton mostrou que essas três leis se podem deduzir da lei da gravitação universal, que tinha anteriormente, numa prodigiosa intuição unificadora, postulado como explicação tanto da queda dos corpos sobre a Terra como do movimento dos astros.

            O trabalho de Kepler surgiu na sequência das observações de Tycho Brahe (1546-1601) e da audaciosa formulação sistemática de Copérnico (1473-1543), que alterou por completo as concepções dominantes do universo, substituindo as de Ptolomeu (séc. II). Também portanto na Astronomia — que aqui pode considerar-se como fazendo parte da Matemática Aplicada — os séculos XVI a XVIII foram um período de grandes avanços, tanto no plano prático, com a multiplicação de observações usando instrumentos ópticos cada vez mais precisos, como teórico.

            Ainda dentro do que se pode chamar Matemática Aplicada devem referir-se as questões teóricas suscitadas pela navegação. As longas viagens transoceânicas características da época a seguir às grandes Descobertas exigiam novos métodos de cálculo de posições e rotas que, como é evidente, tinham uma forte componente matemática, envolvendo nomeadamente geometria esférica e astronomia. Em particular, o problema da determinação da longitude, a "arte de leste-oeste", foi uma questão maior neste período, com governos e academias oferecendo vultosos prémios para a sua solução satisfatória. Também a cartografia, com a necessidade de representar a superfície terrestre de forma conveniente sobre um plano, teve grande desenvolvimento, sobretudo a partir de Mercator (1512-1594), cujo método de projecção tem, entre outras, a propriedade de preservação dos ângulos (ou conformidade).

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            A historiografia portuguesa na área da Matemática é abundante, embora algo desequilibrada.

            Não faltam obras que podem classificar-se como de referência, cujo objectivo é listar e descrever sumariamente a actividade matemática no nosso país, às vezes desde o alvor da nacionalidade. À cabeça destas obras costuma ser citado o Ensaio historico sobre a origem e progressos das Mathematicas em Portugal, de Francisco de Borja Garção-Stockler (Paris, 1819), que já foi inclusivamente apontado como a primeira história matemática de um país jamais publicada. Mas seria injusto não referir as extensas Memorias historicas sobre alguns Mathematicos Portuguezes, e Estrangeiros Domiciliarios em Portugal, ou nas Conquistas, de António Ribeiro dos Santos.[1]  De registar, em seguida, Les Mathématiques en Portugal (Coimbra, 1909), de Rodolfo Guimarães, obra que, para além de uma nota histórica (muito devedora, na parte até aos fins do século XVIII, do Ensaio de Stockler), tem como objectivo listar todos os textos matemáticos de autores portugueses ou publicados em Portugal, por vezes com comentários. Embora com algumas omissões, este livro é um auxiliar precioso para quem queira ter uma visão do passado matemático do nosso país.

            Obra marcante é a História das Matemáticas em Portugal, de Francisco Gomes Teixeira (Lisboa, 1934),[2] porque o seu autor foi um matemático muito sabedor e erudito — um dos maiores da nossa História — e procede a uma análise científica cuidadosa de alguns dos autores e obras que refere.

            Mais perto dos nossos dias temos o artigo Matemática e matemáticos em Portugal, de Luís de Albuquerque,[3] e o longo ensaio As Matemáticas em Portugal - da Restauração ao Liberalismo, de J. Tiago de Oliveira,[4] com apontamentos interessantes sobre o período posterior a 1640.

            Para além destas obras (e de textos sobre pontos de pormenor ou sobre obras e autores individuais), apenas há Histórias muito resumidas e subsidiárias das acima referidas.

            Comum a quase todos estes textos é uma visão da História da Matemática no nosso país que pode ser assim resumida: Na época áurea dos Descobrimentos — de fins do século XV até fins do século XVI — a Matemática em Portugal floresceu de forma notável, tendo como expoente Pedro Nunes. Depois disso entrou-se em período de decadência (alguns usam a palavra "deserto") que durou até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Com a criação então da Faculdade de Matemática, o culto desta ciência entre nós rapidamente voltou a atingir algum nível. Adiante se comentará este ponto de vista.

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             Na Universidade de Coimbra existiu estatutariamente uma cadeira de Matemática desde os primeiros anos após a transferência dos Estudos de Lisboa até à reforma pombalina. Nos Estatutos de 1559 fazem-se-lhe referências de passagem, e está integrada nos cursos de Artes. Nos Estatutos de 1653 aparece individualizada: "Haverá uma cadeira de Matemática, por ser ciência importante ao bem comum do Reino, e navegação, e ornamento da Universidade."

            Na Universidade de Évora, por impulso do Geral da Companhia de Jesus Tirso Gonzalez, há aulas de Matemática desde 1692. Primeiro destinadas só aos estudantes jesuítas internos, são públicas a partir de 1705, e parecem ter continuado até ao encerramento da Universidade.

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            O primeiro ocupante da nova cadeira de Matemática da Universidade de Coimbra, de 1544 a 1562, ano em que se jubilou, foi Pedro Nunes (1502-1578). Os seus livros têm sido analisados e comentados, por autores nacionais e estrangeiros, e, sem prejuízo da necessidade de estudos e investigações adicionais, é hoje possível ter uma ideia clara da importância e do significado da obra do grande matemático português. Resumem-se aqui as suas contribuições mais importantes.

            Na sequência de uma pergunta de Martim Afonso de Sousa regressado de uma viagem ao Brasil, analisou Pedro Nunes a linha de rumo, isto é, a rota que se segue quando se mantém constante o ângulo com a agulha magnética. Numa sucessão de estudos, culminando no De arte atque ratione navigandi,[5] Pedro Nunes esclareceu não só que as linhas de rumo não são geodésicas (arcos de círculos máximos) como compreendeu a sua verdadeira natureza: com excepção de casos triviais os meridianos e os paralelos em que são circulares, as linhas de rumo são curvas em espiral que se aproximam dos pólos dando um número infinito de voltas em redor deles.

            Num dos estudos em que tratou das linhas de rumo, o Tratado em defensam da carta de marear (Lisboa, 1537), Pedro Nunes enuncia duas propriedades desejáveis para os mapas: a preservação de ângulos, e a representação de linhas de rumo por linhas rectas. Mostra-se perfeitamente consciente de que uma carta satisfazendo tais requisitos não conservará distâncias e áreas, exigindo correcções por tábuas ou instrumentos, mas é lúcido quanto às vantagens dela: "(...) mais proveito temos da carta por serem os rumos linhas direitas (...) que prejuízo porque sendo assim fique quadrada; e quem por isto a repreende não sabe o que diz". Os requisitos de Pedro Nunes são exactamente o que tornou o grande mapa do mundo de Mercator (1569) tão útil na navegação, sobretudo depois das "tábuas de partes meridionais" de Edward Wright (1558-1615).[6] Uma eventual inspiração de Mercator em Pedro Nunes permanece matéria de controvérsia. Wright foi muito influenciado por Pedro Nunes.[7]

            O tratamento matemático rigoroso das linhas de rumo (entretanto baptizadas "loxodrómicas" por W. Snell) só foi possível muito mais tarde, depois da criação do Cálculo, tendo Jacques Bernoulli relacionado estas curvas com a espiral logarítmica de Descartes.

            Façamos a seguir uma referência de passagem ao De erratis Orontii Finæi (Coimbra, 1546; Basileia, 1592). Trata-se de uma lista de severas correcções de Pedro Nunes a dois trabalhos de Oronce Fine (1494-1555).[8] Nesses trabalhos o matemático francês expunha "soluções" para vários problemas clássicos, incluindo a duplicação do cubo, a quadratura do círculo, a construção de polígonos regulares (todas questões só completamente esclarecidas no século XIX) e mesmo a determinação da longitude.

            Uma das obras maiores de Pedro Nunes é o Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria (Antuérpia, 1567), que publicou em espanhol.[9] Desta obra se ocupou longamente um especialista na história da Álgebra quinhentista, H. Bosmans.[10] O assunto central é a resolução de equações, sobretudo do 1º grau ao 3º. Traço distintivo são a abstracção e generalidade com que são tratadas as teorias e apresentados os problemas. Pela primeira vez aparecem demonstrações algébricas gerais rigorosas. Pedro Nunes adopta a notação literal, e os raciocínios com letras são independentes de considerações geométricas. São estudadas as operações com polinómios. Ao estudar as equações do 3º grau, Pedro Nunes procede a uma análise crítica da fórmula de Tartaglia, e o método que esboça para baixar o grau das equações parece ter inspirado Stevin (1548-1620) na extensão aos polinómios do algoritmo de Euclides para calcular o máximo divisor comum de dois números. Bosmans sugere influência também sobre um método (que hoje se chamaria "numérico") de Adriaen van Roomen (1561-1615) para procurar raízes de equações. Na parte final do Libro de Algebra, dedicada à aplicação da Álgebra a problemas de Geometria, há um trecho célebre, que ilustra o carácter moderno do ponto de vista de Pedro Nunes: "(...) De maneira que quem sabe por Álgebra, sabe cientificamente. Principalmente que vemos algumas vezes, não poder um grande Matemático resolver uma questão por meios geométricos, e resolvê-la por Álgebra, sendo a mesma Álgebra tirada da Geometria, o que é coisa de admiração." Importante obra de transição antes de Viète (Bosmans diz de Pedro Nunes que foi "um dos algebristas mais eminentes do século XVI"), o Libro de Algebra foi muito conhecido e citado na Europa (entre outros por Wallis). Teve traduções em latim e francês, que ficaram manuscritas.

            No livro De Crepusculis (Lisboa, 1542; Coimbra, 1571; Basileia, 1573) analisou Pedro Nunes, agora em resposta a uma pergunta do príncipe D. Henrique — o futuro Cardeal-Rei —, "a extensão do crepúsculo em diferentes climas". Entre outros resultados, determinou a data e a duração do crepúsculo mínimo para cada lugar no globo. O mesmo problema ocupou os irmãos Bernoulli século e meio mais tarde,[11] e Gomes Teixeira faz interessantes observações comparativas dos métodos usados pelo português e pelos irmãos suíços.

            O De Crepusculis é por vários comentadores considerado a obra-prima de Pedro Nunes. Ao mencionar as repercussões da obra na Europa, incluindo o aplauso de Tycho Brahe e as citações que dela faz Clavius (1538-1612), diz Joaquim de Carvalho que ela "logrou a consagração inerente às explicações científicas, entrando e fluindo, muitas vezes anonimamente, no caudal dos conhecimentos exactos que constituem património da Humanidade."[12] Esta apreciação é adequada também ao Libro de Algebra e, na verdade, a toda a obra matemática de Pedro Nunes.

            Pedro Nunes é o primeiro exemplo português de cientista "puro", para quem as exigências de precisão e rigor são uma constante. A este respeito, é interessante referir as querelas que teve com contemporâneos, nomeadamente "práticos", em que são frequentes as suas defesas altivas da superioridade do saber científico.[13]

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             Nos dois séculos a seguir à jubilação de Pedro Nunes, a cadeira de Matemática da Universidade de Coimbra esteve apenas intermitentemente ocupada, estimando-se o total das vacaturas em cerca de metade daquele intervalo de tempo.[14] Da maior parte dos professores que por ela passaram não se conhece nenhuma obra matemática, e sabe-se que muitos tiveram cargos e ocupações estranhos à Universidade. Os indícios que há são de reduzida frequência estudantil. Sem prejuízo do que adiante globalmente se diz sobre este período em Portugal, não é arriscada, face às informações disponíveis, a opinião de que esta é uma época de desinteresse pela Matemática na Universidade de Coimbra.[15] Em 1777, na Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra, diz o Reitor Francisco de Lemos: "(...) o verdadeiro motivo, por que os estudantes não frequentam o curso matemático (...) consistia em não serem destinados por Ordens Régias os matemáticos graduados para os empregos, e lugares, que há próprios desta profissão; assim como são destinados os estudantes juristas, para os empregos da Magistratura, etc. Pode-se afirmar que este foi sempre o grande mal, que perseguiu nestes Reinos os estudos matemáticos". Visão lúcida que o Reformador, registe-se, aplica também à época anterior a 1772. Não bastava portanto o "ornamento da Universidade" para motivar professores e estudantes, numa instituição dedicada sobretudo ao estudo do Direito.

            Esteve então morta (ou é para nós invisível) a Matemática em Portugal de fins do século XVI até ao último quartel do século XVIII? Não é descabido deixar no presente texto — que diz respeito à Universidade — um apontamento, muito resumido e incompleto, sobre esta questão mais geral.

            Pedro Nunes foi cosmógrafo-mor do Reino a partir de 1547, um cargo criado nessa data. Uma das obrigações do cosmógrafo-mor era uma aula diária de Matemática (aplicada à náutica, já se vê). O cargo foi abolido em 1779 para dar lugar à Academia Real de Marinha.[16]

            No Colégio jesuíta de Santo Antão, em Lisboa, funcionou desde fins do século XVI até ao século XVIII uma Aula de Esfera, pública, que chegou a ter frequência apreciável. Para além da Matemática aplicada à navegação, aí se estudava Astronomia, Geometria, Aritmética, etc.[17]

            Além de Santo Antão e da Universidade de Évora, tiveram os jesuítas aulas de Matemática, por vezes públicas, em vários colégios, nomeadamente em Coimbra. Para ajudar a assegurar esse serviço, vieram muitos professores estrangeiros, em particular italianos e alemães. Dignos de registo, alguns com trabalhos de astronomia, náutica e cartografia, são os nomes de Grienberger (mais tarde sucessor de Clavius no Colégio Romano), Borri (que na primeira metade do século XVII divulgou entre nós as manchas solares e Galileu[18]), Stafford, Estancel, Capassi e Carbone. Os dois últimos estão associados à criação do Observatório Astronómico do Colégio de Santo Antão.

            Capassi partiu em 1729 para o Brasil com outro professor jesuíta, Diogo Soares, em cumprimento do encargo dado pelo Rei D. João V de elaborar o mapa do grande Estado transatlântico. A elaboração de mapas é aliás uma das vertentes principais da actividade matemática neste período. Já o jesuíta suíço João König, chamado em 1682 para ocupar a cadeira de Matemática da Universidade de Coimbra, vaga há muito tempo, abandonara o ensino quatro anos depois, por ordem do Governo, para elaborar um mapa de Portugal.

            A partir de meados do século XVII, com a guerra da independência, recebem impulso os estudos de Matemática aplicada às actividades militares. Data desta altura a criação da Aula de Fortificação e Arquitectura Militar.[19] Também em Santo Antão se deu atenção a estes tópicos. Muito mais tarde, no século XVIII, têm interesse os estudos de Matemática aplicada à artilharia em unidades e academias militares.[20]

            Desta breve resenha o que ressalta é a feição prática, ou aplicada, que ela sugere sobre o estudo da Matemática em Portugal neste período. Com o patrocínio do Estado ou nas escolas da Companhia de Jesus, estudam-se matérias vistas como correspondendo a necessidades concretas imediatas do país.

            A consulta da obra de Rodolfo Guimarães anteriormente citada revela um panorama análogo. Nos dois séculos e meio anteriores a 1772 nota-se, nos trabalhos matemáticos redigidos em Portugal ou por portugueses, uma clara predominância de obras dedicadas a temas dentro do que se poderá chamar Matemática Aplicada: náutica, efemérides astronómicas, atlas e cartas (incluindo plantas de fortalezas), geometria aplicada à fortificação, aritmética aplicada a actividades financeiras. Interessante é a relativa frequência de registos de observações astronómicas (eclipses lunares, cometas). Pormenor a reter é o de que muitas destas obras existem apenas em manuscrito.

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             Alinham-se, para terminar, algumas reflexões sobre a evolução da Matemática em Portugal no período que nos vem interessando.

            Em primeiro lugar, a questão da pretensa decadência a partir de Pedro Nunes. Esta maneira de ver ilude um aspecto fundamental. Não houve decadência porque Pedro Nunes não foi o expoente de uma plêiade, mais ou menos numerosa, de matemáticos quinhentistas. Pedro Nunes foi um caso único, aliás não só em Portugal como em toda a Península Ibérica. "Fuera de una y otra nación [Portugal e Espanha] vivió espiritualmente", diz J. Rey Pastor.[21]

            A excepcionalidade de Pedro Nunes explica-se por um igualmente excepcional concurso de circunstâncias. Antes de mais, a própria época em que viveu, momento entre todos singular da nossa História, com as navegações triunfantes abrindo os olhos a novas realidades e colocando uma sucessão ininterrupta de novas perguntas.[22] Em seguida, o percurso individual do grande matemático, que lhe permitiu uma vida inteira de estudo e reflexão em condições únicas. Médico da família real, depois professor dos príncipes D. Luís e D. Henrique, não custa a crer que fosse personagem querido na corte até à sua morte. Foi cosmógrafo do Reino, mais tarde cosmógrafo-mor. Foi professor na Universidade em Lisboa e depois em Coimbra. Estes cargos proporcionaram-lhe uma multiplicidade de rendas que com certeza lhe permitiram uma vida sem preocupações materiais. Tudo isto nos ajuda a compreender melhor esta figura do nosso passado.

            Pedro Nunes é excepcional a outro título. Raros — se alguns — portugueses, nesta ou noutra área do saber, lograram neste período (e mesmo até muito mais tarde) o nível de reconhecimento internacional que atingiu. Para além dos exemplos acima citados, e de muitos outros que se poderiam acrescentar,[23] vale a pena referir o episódio da consulta que lhe fizeram quando da reforma do calendário no tempo do Papa Gregório XIII. Solicitado várias vezes pelo Vaticano, não pôde Pedro Nunes prestar qualquer colaboração por entretanto ter falecido.[24]

            O seu comércio intelectual era com a Europa, não se restringia a Portugal. Não deixou discípulos ou continuadores. A maneira como o seu espólio se perdeu, no meio da maior das indiferenças, constitui uma página deprimente na nossa história cultural.[25] A morte de Pedro Nunes significou para o país a perda de um valor de excepção, mas não é apropriado falar do desaparecimento de um indivíduo como iniciando um período de decadência. Não se cai de onde não se subiu.[26]

            Não tendo, portanto, havido decadência, podia nos séculos XVII e XVIII ter havido progressos, com a Matemática portuguesa acompanhando e tomando parte nos grandes avanços atrás descritos. Parece inequívoco que tal não aconteceu,[27] e ao não cultivo da Matemática Pura poderá ser associada a necessidade frequente de recrutar professores estrangeiros para assegurar o ensino, mesmo da Matemática elementar, nas nossas escolas, por cá não haver quem o fizesse.

            O quadro mental e cultural português no período em causa está suficientemente documentado e estudado[28] e não é necessário recordá-lo aqui. Os seus reflexos na nossa vida matemática (ou falta dela) decorrem basicamente do facto de que os grandes progressos científicos da época estiveram em geral associados a propostas filosóficas contra as quais as autoridades políticas e religiosas nacionais estavam em prevenção constante,[29] o que produzia uma explícita atitude de recusa genérica da novidade na instrução. Quanto à situação geral do país, menos ainda é preciso evocá-la como pano de fundo para tudo o resto.

            Na primeira metade do século XVIII, entretanto, multiplicam-se os sinais de uma mudança de ambiente. Dentro e fora do país, surgem vários portugueses interessados nas modernas tendências científicas. Ocorrem, entre outros, os nomes de Jacob de Castro Sarmento (com uma newtoniana Theorica verdadeira das marés, Londres, 1737), José Soares de Barros e Vasconcelos, astrónomo muitos anos em Paris, Manuel de Azevedo Fortes, engenheiro, autor de uma Logica racional, geometrica e analytica (Lisboa, 1744), Teodoro de Almeida, da Congregação do Oratório,[30] com a sua Recreação Philosophica (Lisboa, 1751), e os jesuítas Eusébio da Veiga, astrónomo em Lisboa, e Inácio Monteiro.[31]

            Inácio Monteiro merece particular atenção. Professor no Colégio de Jesus, em Coimbra, publicou nos anos de 1754-1756 um interessante Compendio dos Elementos de Mathematica. Este livro, contendo uma introdução à Matemática e à Física, surpreende pela modernidade da postura científica do seu autor, que em cada capítulo faz longas introduções com copiosas indicações bibliográficas, incluindo referências a todos os grandes autores contemporâneos.[32] Depois da expulsão da Companhia de Jesus, em 1759, Inácio Monteiro fixou-se em Itália, onde veio a publicar uma Philosophia Libera (Veneza, 1766) que teve várias edições. A parte de Física desta obra foi longamente analisada por Resina Rodrigues.[33] Sobre a parte de Matemática, tanto do Compendio como da Philosophia Libera, não há estudo de pormenor.[34]

            Esta última observação traz-nos a um comentário final. A maior parte dos trabalhos de Matemática do nosso passado permanece em total desconhecimento e obscuridade, sem estudos que os integrem nos respectivos contextos. Faltam as reedições, sem as quais o conhecimento das obras fica dificultado. Faltam estudos adicionais sobre o ensino e as obras dos professores dos colégios jesuítas.[35] Faltam sobretudo as análises propriamente matemáticas por cientistas profissionais.[36] (Também aqui Pedro Nunes é excepção.[37]) Sem um esforço continuado da comunidade matemática portuguesa manter-se-á em certa medida sobre este aspecto da nossa História um ponto de interrogação.[38]


[1] «Memórias de Literatura Portuguesa publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa», tomo VIII, parte I, 1812, p. 148-229.

[2] Ver também os seus Panegíricos e Conferências, Coimbra, 1925.

[3] «Dicionário de História de Portugal», dir. J. Serrão, vol. II, Lisboa, 1971, p. 972-977.

[4] «História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal», Academia das Ciências de Lisboa, vol. I, 1986, p. 81-110.

[5] Opera, Basileia, 1566.

[6] Publicadas em Certaine errors of navigation, Londres, 1599.

[7] Ver W. G. L. Randles, Pedro Nunes and the discovery of the loxodromic curve, «Revista da Universidade de Coimbra», vol. XXXV, 1989, p. 119-130, e J. E. D. Williams, From sails to satellites - The origin and development of navigational science, Oxford, 1992.

[8] Primeiro professor de Matemática na instituição — fundada em 1530 pelo Rei Francisco I em Paris — que viria a ser mais tarde o Collège de France.

[9] Na dedicatória ao Cardeal D. Henrique lê-se: "Esta obra há perto de 30 anos que foi por mim composta, mas porque depois fui ocupado em estudo de coisas muito diferentes, e de mera especulação, posto que algumas vezes a revisse, e conferisse com o que outros depois escreveram, a deixei de publicar até agora (...). E primeiramente a escrevi em nossa língua Portuguesa (...)".

[10] Sur le "Libro de Algebra" de Pedro Nuñez, «Bibliotheca Mathematica», 3ª série, t. 8, Leipzig, 1907-1908, p. 154-169, e L'algèbre de Pedro Nuñez, «Anais da Academia Politécnica do Porto», vol. 3, 1908, p. 222-271.

[11] Esta observação foi feita originalmente por José Anastácio da Cunha, nas suas Notícias Literárias de Portugal - 1780, ed. Joel Serrão, Lisboa, 1966; ver texto de Jean Bernoulli em Joaquim de Carvalho, Anotações ao De Crepusculis, «Obras de Pedro Nunes», vol. II, Lisboa, 1943.

[12] Anotações ao De Crepusculis.

[13] Ver por exemplo Luís de Albuquerque, Pedro Nunes e os homens do mar do seu tempo, «Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática», nº 11, Dez. 1988, p. 5-11.

[14] A última terá ido de 1726 a 1772.

[15] Nisto a Universidade de Coimbra talvez não difira de instituições semelhantes na Europa. Em Salamanca, por exemplo, a situação é análoga (ver J. Rey Pastor, Los matemáticos españoles del siglo XVI, Madrid, 1926).

[16] Outro professor de Matemática da Universidade de Coimbra, Gaspar de Meri, terá passado por este cargo.

[17] Ver Luís de Albuquerque, A «Aula de Esfera» do Colégio de Santo Antão no século XVII, «Estudos de História», vol. II, Coimbra, 1974, p. 127-200.

[18] Ver Joaquim de Carvalho, Galileu e a cultura portuguesa sua contemporânea, Coimbra, 1944.

[19] Um professor de Matemática da Universidade de Coimbra, João Torriani, foi Engenheiro-Mor do Reino no século XVII.

[20]A fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa e a organização dos seus estudos prenunciam já a reforma pombalina da Universidade de Coimbra e por isso não as consideramos aqui (ver Rómulo de Carvalho, História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1761-1772), Coimbra, 1959).

[21] Los matemáticos españoles del siglo XVI.

[22] E não pode deixar-se de referir a relação científica de Pedro Nunes com D. João de Castro, um caso notável de colaboração continuada entre um cientista "puro" e um "prático".

[23] Ver em particular as preciosas Anotações de Joaquim de Carvalho às Obras de Pedro Nunes.

[24] Ver Joaquim de Carvalho, prefácio a Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar, Coimbra, 1952. Recorde-se que o principal elemento da comissão encarregada do assunto era o grande geómetra e astrónomo de origem alemã Clavius (mais tarde próximo de Galileu), que tinha estudado em Coimbra, no Colégio das Artes. Os pareceres portugueses sobre a reforma do calendário vieram a ser elaborados pelos astrónomos Manuel Vizinho e Tomás da Orta.

[25] Joaquim de Carvalho, prefácio a Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar.

[26] No mesmo sentido, ver J. Vicente Gonçalves, Elogio histórico de Pedro José da Cunha, «Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (Classe de Ciências)», vol. IX, 1966, p. 93-111.

[27] Têm reduzida utilidade histórica os exercícios de uso do condicional.  Mas não deixa de causar impressão o contraste entre, por exemplo, os argumentos usados contra o experimentalismo quando da polémica sobre o Verdadeiro método de estudar e a grande abertura de espírito do nosso século XVI, o século da "experiência mãe de todas as coisas".

[28] Ver por exemplo J. Silva Dias, Portugal e a cultura europeia (sécs. XVI a XVIII), Coimbra, 1953,  A. A. Andrade, Vernei e a cultura do seu tempo, Coimbra, 1966, e Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, 1º volume (Séculos XV, XVI e XVII) e 2º volume (Ensaio sobre a crise mental do século XVIII), Coimbra, 1984.

[29] Numa carta do Geral da Companhia de Jesus Tirso Gonzalez aos jesuítas portugueses, em fins do século XVII, em que lhes recomenda o estudo da Matemática, pode ler-se, a propósito de Descartes: "(...) nome na filosofia malquisto, mas altamente preconizado na Geometria." (ver J. Silva Dias, Portugal e a cultura europeia). Seria interessante analisar a eficácia de tais distinções.

[30] No estimulante ambiente pedagógico da Congregação do Oratório iniciou a sua formação José Anastácio da Cunha, professor em Coimbra depois da reforma de 1772, e um dos grandes matemáticos portugueses. Antes da vinda para a Universidade passou cerca de dez anos num regimento de artilharia.

[31] Manuel de Campos, professor em Santo Antão, tem uns Elementos de Geometria (Lisboa, 1737) repetidamente apontados por vários autores como do menos mau que por cá então houve; mas são versão portuguesa de uma obra de Tacquet, e como tal identificados pelo autor no prefácio. Campos adiciona algum material, mas não está claro o que lhe deve ser atribuído.

[32] Um índice onomástico deste Compendio foi publicado em J. Pereira Gomes, A cultura científica de Inácio Monteiro, «Brotéria», vol. XLIII (4), 1946, p. 268-287.

[33] Física e Filosofia da Natureza na obra de Inácio Monteiro, «História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal», vol. I, Academia das Ciências de Lisboa, 1986, p. 191-242. Resina Rodrigues considera Inácio Monteiro "um dos valores mais altos da cultura portuguesa do séc. XVIII".

[34] O capítulo de Álgebra do Compendio — com uma interessante "Instrução" inicial — desilude: depois de uma longa introdução geral às equações, fica-se pela resolução das do 1º grau (justificando-se o autor com o carácter introdutório da obra)! Sobre o perfil pedagógico de Inácio Monteiro ver Ana Isabel Rosendo, Inácio Monteiro e o ensino da Matemática em Portugal no século XVIII, Dissertação de mestrado, Braga, 1996.

[35] Incluindo a sua acção em Pequim, onde estiveram vários portugueses. A influência dos jesuítas na corte chinesa provinha em larga medida da sua competência como astrónomos.

[36] Os melhores trabalhos históricos portugueses são de Gomes Teixeira e Vicente Gonçalves.

[37] Mesmo a publicação das Obras de Pedro Nunes pela Academia das Ciências está incompleta (suspensa praticamente desde a morte de Joaquim de Carvalho, em 1958), faltando em particular a reedição do fundamental Opera (Basileia, 1566).

[38] A elaboração deste texto beneficiou de várias sugestões de António Leal Duarte, a quem se agradece.