História da
Universidade em Portugal – Sec. 5, Cap. V - O saber:
dos aspectos aos resultados (ed. A. Ferrer Correia, L. A.
Oliveira Ramos, Joel Serrão, A. Oliveira),
vol. I, Part II (1537-1771), Univ.
O primeiro grande momento deste período de renovação
pode, no que diz respeito à chamada Matemática Pura, ser
facilmente identificado: é a descoberta da fórmula para as
soluções das equações do 3º grau por matemáticos da península
itálica (del Ferro (c.1465-1526), Tartaglia (c.1506-1557),
Cardano (1501-1576)). Primeiro grande progresso sobre as
realizações da Antiguidade, causou no seu tempo funda impressão,
constituindo estímulo para novas pesquisas. Estas não se fizeram
esperar, havendo a registar, logo a seguir, a resolução das
equações do 4º grau (Ferrari (1522-1565)) e o início da
manipulação das raízes quadradas de números negativos (Bombelli
(c.1526-c.1572)).
Deve referir-se que a Álgebra, domínio em que se deram
estes avanços, estava, na época, completamente permeada pela
linguagem e pelos métodos da Geometria. Era essa a tradição
grega, nomeadamente dos Elementos de Euclides
(séc. III a.C.), obra em que se encontram muitas proposições
correspondentes a factos algébricos simples enunciadas em
linguagem puramente geométrica. Este facto (relevante pela
extraordinária influência do livro de Euclides ao longo dos
tempos, até aos nossos dias) tem suscitado debates sobre as suas
causas e significado. Sem entrar em tais controvérsias, pode
dizer-se que para a génese dessa atitude são em geral apontadas
as dificuldades dos gregos com as quantidades irracionais, que
emergem da aplicação do Teorema de Pitágoras (séc. VI a.C.):
naturais portanto do ponto de vista geométrico, os números
irracionais terão levantado problemas filosóficos que adiaram
por séculos o progresso da Álgebra.
A partir dos fins do século XVI, a Álgebra inicia um
processo de gradual autonomização relativamente à Geometria, com
a progressiva introdução de simbologia mais concisa, o uso de
letras para denotar coeficientes e incógnitas e o abandono do
princípio geométrico da homogeneidade dimensional. Os principais
nomes nesta "libertação" da Álgebra são Viète (1540-1603),
Descartes (1596-1650), Fermat (1601-1665) e Wallis (1616-1703),
mas o processo continuou até bem dentro do século XVIII. Com
Descartes e Fermat aparecem as primeiras aplicações sistemáticas
do "método das coordenadas" (a que mais tarde se chamará
Geometria Analítica), que permite uma fecunda identificação da
Geometria com a Álgebra.
Os progressos da Álgebra e das suas notações e a
introdução da Geometria Analítica criaram as condições para a
invenção do Cálculo Diferencial e Integral por Newton
(1642-1727) e Leibniz (1646-1716). Este extraordinário
instrumento permitiu a resolução de inúmeros problemas
matemáticos, astronómicos e físicos, tendo provocado uma
verdadeira explosão de investigações e descobertas por todo o
século XVIII, com os Bernoulli (Jacques (1654-1705) e Jean
(1667-1748)) e os seus métodos sofisticados para resolver
problemas de máximos e mínimos, Euler (1707-1783), d'Alembert
(1717-1783) e muitos outros.
Talvez a mais notável aplicação do novo Cálculo tenha
sido a demonstração por Newton das três leis sobre o movimento
dos planetas, enunciadas por Kepler (1571-1630) após exaustivas
observações astronómicas. Newton mostrou que essas três leis se
podem deduzir da lei da gravitação universal, que tinha
anteriormente, numa prodigiosa intuição unificadora, postulado
como explicação tanto da queda dos corpos sobre a Terra como do
movimento dos astros.
O trabalho de Kepler surgiu na sequência das observações
de Tycho Brahe (1546-1601) e da audaciosa formulação sistemática
de Copérnico (1473-1543), que alterou por completo as concepções
dominantes do universo, substituindo as de Ptolomeu (séc. II).
Também portanto na Astronomia — que aqui pode considerar-se como
fazendo parte da Matemática Aplicada — os séculos XVI a XVIII
foram um período de grandes avanços, tanto no plano prático, com
a multiplicação de observações usando instrumentos ópticos cada
vez mais precisos, como teórico.
Ainda dentro do que se pode chamar Matemática Aplicada
devem referir-se as questões teóricas suscitadas pela navegação.
As longas viagens transoceânicas características da época a
seguir às grandes Descobertas exigiam novos métodos de cálculo
de posições e rotas que, como é evidente, tinham uma forte
componente matemática, envolvendo nomeadamente geometria
esférica e astronomia. Em particular, o problema da determinação
da longitude, a "arte de leste-oeste", foi uma questão maior
neste período, com governos e academias oferecendo vultosos
prémios para a sua solução satisfatória. Também a cartografia,
com a necessidade de representar a superfície terrestre de forma
conveniente sobre um plano, teve grande desenvolvimento,
sobretudo a partir de Mercator (1512-1594), cujo método de
projecção tem, entre outras, a propriedade de preservação dos
ângulos (ou conformidade).
*
A historiografia portuguesa na área da Matemática é
abundante, embora algo desequilibrada.
Não faltam obras que podem classificar-se como de
referência, cujo objectivo é listar e descrever sumariamente a
actividade matemática no nosso país, às vezes desde o alvor da
nacionalidade. À cabeça destas obras costuma ser citado o Ensaio historico sobre a origem e progressos das
Mathematicas em Portugal, de Francisco de Borja
Garção-Stockler (Paris, 1819), que já foi inclusivamente
apontado como a primeira história matemática de um país jamais
publicada. Mas seria injusto não referir as extensas Memorias historicas sobre alguns Mathematicos
Portuguezes, e Estrangeiros Domiciliarios em Portugal, ou nas
Conquistas, de António Ribeiro dos Santos.[1]
De registar, em seguida, Les Mathématiques
en Portugal (Coimbra, 1909), de Rodolfo Guimarães, obra
que, para além de uma nota histórica (muito devedora, na parte
até aos fins do século XVIII, do Ensaio de
Stockler), tem como objectivo listar todos os textos matemáticos
de autores portugueses ou publicados em Portugal, por vezes com
comentários. Embora com algumas omissões, este livro é um
auxiliar precioso para quem queira ter uma visão do passado
matemático do nosso país.
Obra marcante é a História das Matemáticas
em Portugal, de Francisco Gomes Teixeira (Lisboa, 1934),[2] porque o seu autor
foi um matemático muito sabedor e erudito — um dos maiores da
nossa História — e procede a uma análise científica cuidadosa de
alguns dos autores e obras que refere.
Mais perto dos nossos dias temos o artigo Matemática
e matemáticos em Portugal, de Luís de Albuquerque,[3] e o longo ensaio As Matemáticas em Portugal - da Restauração ao
Liberalismo, de J. Tiago de Oliveira,[4] com apontamentos
interessantes sobre o período posterior a 1640.
Para além destas obras (e de textos sobre pontos de
pormenor ou sobre obras e autores individuais), apenas há Histórias muito resumidas e subsidiárias das
acima referidas.
Comum a quase todos estes textos é uma visão da História
da Matemática no nosso país que pode ser assim resumida: Na
época áurea dos Descobrimentos — de fins do século XV até fins
do século XVI — a Matemática em Portugal floresceu de forma
notável, tendo como expoente Pedro Nunes. Depois disso entrou-se
em período de decadência (alguns usam a palavra "deserto") que
durou até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Com a
criação então da Faculdade de Matemática, o culto desta ciência
entre nós rapidamente voltou a atingir algum nível. Adiante se
comentará este ponto de vista.
Na Universidade de Évora, por impulso do Geral da
Companhia de Jesus Tirso Gonzalez, há aulas de Matemática desde
1692. Primeiro destinadas só aos estudantes jesuítas internos,
são públicas a partir de 1705, e parecem ter continuado até ao
encerramento da Universidade.
O primeiro ocupante da nova cadeira de Matemática da
Universidade de Coimbra, de
Na sequência de uma pergunta de Martim Afonso de Sousa
regressado de uma viagem ao Brasil, analisou Pedro Nunes a linha de rumo, isto é, a rota que se segue quando
se mantém constante o ângulo com a agulha magnética. Numa
sucessão de estudos, culminando no De arte atque
ratione navigandi,[5] Pedro Nunes
esclareceu não só que as linhas de rumo não são geodésicas
(arcos de círculos máximos) como compreendeu a sua verdadeira
natureza: com excepção de casos triviais os meridianos e os
paralelos em que são
circulares, as linhas de rumo são curvas em espiral que se
aproximam dos pólos dando um número infinito de voltas em redor
deles.
Num dos estudos em que tratou das linhas de rumo, o Tratado em defensam da carta de marear (Lisboa,
1537), Pedro Nunes enuncia duas propriedades desejáveis para os
mapas: a preservação de ângulos, e a representação de linhas de
rumo por linhas rectas. Mostra-se perfeitamente consciente de
que uma carta satisfazendo tais requisitos não conservará
distâncias e áreas, exigindo correcções por tábuas ou
instrumentos, mas é lúcido quanto às vantagens dela: "(...) mais
proveito temos da carta por serem os rumos linhas direitas (...)
que prejuízo porque sendo assim fique quadrada; e quem por isto
a repreende não sabe o que diz". Os requisitos de Pedro Nunes
são exactamente o que tornou o grande mapa do mundo de Mercator
(1569) tão útil na navegação, sobretudo depois das "tábuas de
partes meridionais" de Edward Wright (1558-1615).[6] Uma eventual
inspiração de Mercator em Pedro Nunes permanece matéria de
controvérsia. Wright foi muito influenciado por Pedro Nunes.[7]
O tratamento matemático rigoroso das linhas de rumo
(entretanto baptizadas "loxodrómicas" por W. Snell) só foi
possível muito mais tarde, depois da criação do Cálculo, tendo
Jacques Bernoulli relacionado estas curvas com a espiral
logarítmica de Descartes.
Façamos a seguir uma referência de passagem ao De erratis Orontii Finæi (Coimbra, 1546;
Basileia, 1592). Trata-se de uma lista de severas correcções de
Pedro Nunes a dois trabalhos de Oronce Fine (1494-1555).[8] Nesses trabalhos o
matemático francês expunha "soluções" para vários problemas
clássicos, incluindo a duplicação do cubo, a quadratura do
círculo, a construção de polígonos regulares (todas questões só
completamente esclarecidas no século XIX) e mesmo a determinação
da longitude.
Uma das obras maiores de Pedro Nunes é o Libro
de Algebra en Arithmetica y Geometria (Antuérpia, 1567),
que publicou em espanhol.[9] Desta obra se ocupou
longamente um especialista na história da Álgebra quinhentista,
H. Bosmans.[10] O assunto central é
a resolução de equações, sobretudo do 1º grau ao 3º. Traço
distintivo são a abstracção e generalidade com que são tratadas
as teorias e apresentados os problemas. Pela primeira vez
aparecem demonstrações algébricas gerais rigorosas. Pedro Nunes
adopta a notação literal, e os raciocínios com letras são
independentes de considerações geométricas. São estudadas as
operações com polinómios. Ao estudar as equações do 3º grau,
Pedro Nunes procede a uma análise crítica da fórmula de
Tartaglia, e o método que esboça para baixar o grau das equações
parece ter inspirado Stevin (1548-1620) na extensão aos
polinómios do algoritmo de Euclides para calcular o máximo
divisor comum de dois números. Bosmans sugere influência também
sobre um método (que hoje se chamaria "numérico") de Adriaen van
Roomen (1561-1615) para procurar raízes de equações. Na parte
final do Libro de Algebra, dedicada à aplicação
da Álgebra a problemas de Geometria, há um trecho célebre, que
ilustra o carácter moderno do ponto de vista de Pedro Nunes:
"(...) De maneira que quem sabe por Álgebra, sabe
cientificamente. Principalmente que vemos algumas vezes, não
poder um grande Matemático resolver uma questão por meios
geométricos, e resolvê-la por Álgebra, sendo a mesma Álgebra
tirada da Geometria, o que é coisa de admiração." Importante
obra de transição antes de Viète (Bosmans diz de Pedro Nunes que
foi "um dos algebristas mais eminentes do século XVI"), o Libro de Algebra foi muito conhecido e citado na
Europa (entre outros por Wallis). Teve traduções em latim e
francês, que ficaram manuscritas.
No livro De Crepusculis (Lisboa, 1542;
Coimbra, 1571; Basileia, 1573) analisou Pedro Nunes, agora em
resposta a uma pergunta do príncipe D. Henrique — o futuro
Cardeal-Rei —, "a extensão do crepúsculo em diferentes climas".
Entre outros resultados, determinou a data e a duração do
crepúsculo mínimo para cada lugar no globo. O mesmo problema
ocupou os irmãos Bernoulli século e meio mais tarde,[11] e Gomes Teixeira faz
interessantes observações comparativas dos métodos usados pelo
português e pelos irmãos suíços.
O De Crepusculis é por vários
comentadores considerado a obra-prima de Pedro Nunes. Ao
mencionar as repercussões da obra na Europa, incluindo o aplauso
de Tycho Brahe e as citações que dela faz Clavius (1538-1612),
diz Joaquim de Carvalho que ela "logrou a consagração inerente
às explicações científicas, entrando e fluindo, muitas vezes
anonimamente, no caudal dos conhecimentos exactos que constituem
património da Humanidade."[12] Esta apreciação é
adequada também ao Libro de Algebra e, na
verdade, a toda a obra matemática de Pedro Nunes.
Pedro Nunes é o primeiro exemplo português de cientista
"puro", para quem as exigências de precisão e rigor são uma
constante. A este respeito, é interessante referir as querelas
que teve com contemporâneos, nomeadamente "práticos", em que são
frequentes as suas defesas altivas da superioridade do saber
científico.[13]
Esteve então morta (ou é para nós invisível) a Matemática
em Portugal de fins do século XVI até ao último quartel do
século XVIII? Não é descabido deixar no presente texto — que diz
respeito à Universidade — um apontamento, muito resumido e
incompleto, sobre esta questão mais geral.
Pedro Nunes foi cosmógrafo-mor do Reino a partir de 1547,
um cargo criado nessa data. Uma das obrigações do cosmógrafo-mor
era uma aula diária de Matemática (aplicada à náutica, já se
vê). O cargo foi abolido em 1779 para dar lugar à Academia Real
de Marinha.[16]
No Colégio jesuíta de Santo Antão, em Lisboa, funcionou
desde fins do século XVI até ao século XVIII uma Aula
de Esfera, pública, que chegou a ter frequência
apreciável. Para além da Matemática aplicada à navegação, aí se
estudava Astronomia, Geometria, Aritmética, etc.[17]
Além de Santo Antão e da Universidade de Évora, tiveram
os jesuítas aulas de Matemática, por vezes públicas, em vários
colégios, nomeadamente em Coimbra. Para ajudar a assegurar esse
serviço, vieram muitos professores estrangeiros, em particular
italianos e alemães. Dignos de registo, alguns com trabalhos de
astronomia, náutica e cartografia, são os nomes de Grienberger
(mais tarde sucessor de Clavius no Colégio Romano), Borri (que
na primeira metade do século XVII divulgou entre nós as manchas
solares e Galileu[18]), Stafford,
Estancel, Capassi e Carbone. Os dois últimos estão associados à
criação do Observatório Astronómico do Colégio de Santo Antão.
Capassi partiu em 1729 para o Brasil com outro professor
jesuíta, Diogo Soares, em cumprimento do encargo dado pelo Rei
D. João V de elaborar o mapa do grande Estado transatlântico. A
elaboração de mapas é aliás uma das vertentes principais da
actividade matemática neste período. Já o jesuíta suíço João
König, chamado em 1682 para ocupar a cadeira de Matemática da
Universidade de Coimbra, vaga há muito tempo, abandonara o
ensino quatro anos depois, por ordem do Governo, para elaborar
um mapa de Portugal.
A partir de meados do século XVII, com a guerra da
independência, recebem impulso os estudos de Matemática aplicada
às actividades militares. Data desta altura a criação da Aula de
Fortificação e Arquitectura Militar.[19] Também em Santo
Antão se deu atenção a estes tópicos. Muito mais tarde, no
século XVIII, têm interesse os estudos de Matemática aplicada à
artilharia em unidades e academias militares.[20]
Desta breve resenha o que ressalta é a feição prática, ou
aplicada, que ela sugere sobre o estudo da Matemática em
Portugal neste período. Com o patrocínio do Estado ou nas
escolas da Companhia de Jesus, estudam-se matérias vistas como
correspondendo a necessidades concretas imediatas do país.
A consulta da obra de Rodolfo Guimarães anteriormente
citada revela um panorama análogo. Nos dois séculos e meio
anteriores a 1772 nota-se, nos trabalhos matemáticos redigidos
em Portugal ou por portugueses, uma clara predominância de obras
dedicadas a temas dentro do que se poderá chamar Matemática
Aplicada: náutica, efemérides astronómicas, atlas e cartas
(incluindo plantas de fortalezas), geometria aplicada à
fortificação, aritmética aplicada a actividades financeiras.
Interessante é a relativa frequência de registos de observações
astronómicas (eclipses lunares, cometas). Pormenor a reter é o
de que muitas destas obras existem apenas em manuscrito.
Em primeiro lugar, a questão da pretensa decadência a
partir de Pedro Nunes. Esta maneira de ver ilude um aspecto
fundamental. Não houve decadência porque Pedro Nunes não foi o
expoente de uma plêiade, mais ou menos numerosa, de matemáticos
quinhentistas. Pedro Nunes foi um caso único, aliás não só em
Portugal como em toda a Península Ibérica. "Fuera
de una y otra nación [Portugal e Espanha] vivió
espiritualmente", diz J. Rey Pastor.[21]
A
excepcionalidade de Pedro Nunes explica-se por um igualmente
excepcional concurso de circunstâncias. Antes de mais, a própria
época em que viveu, momento entre todos singular da nossa
História, com as navegações triunfantes abrindo os olhos a novas
realidades e colocando uma sucessão ininterrupta de novas
perguntas.[22] Em seguida, o
percurso individual do grande matemático, que lhe permitiu uma
vida inteira de estudo e reflexão em condições únicas. Médico da
família real, depois professor dos príncipes D. Luís e D.
Henrique, não custa a crer que fosse personagem querido na corte
até à sua morte. Foi cosmógrafo do Reino, mais tarde
cosmógrafo-mor. Foi professor na Universidade em Lisboa e depois
em Coimbra. Estes cargos proporcionaram-lhe uma multiplicidade
de rendas que com certeza lhe permitiram uma vida sem
preocupações materiais. Tudo isto nos ajuda a compreender melhor
esta figura do nosso passado.
Pedro Nunes é excepcional a outro título. Raros — se
alguns — portugueses, nesta ou noutra área do saber, lograram
neste período (e mesmo até muito mais tarde) o nível de
reconhecimento internacional que atingiu. Para além dos exemplos
acima citados, e de muitos outros que se poderiam acrescentar,[23] vale a pena referir
o episódio da consulta que lhe fizeram quando da reforma do
calendário no tempo do Papa Gregório XIII. Solicitado várias
vezes pelo Vaticano, não pôde Pedro Nunes prestar qualquer
colaboração por entretanto ter falecido.[24]
O seu comércio intelectual era com a Europa, não se
restringia a Portugal. Não deixou discípulos ou continuadores. A
maneira como o seu espólio se perdeu, no meio da maior das
indiferenças, constitui uma página deprimente na nossa história
cultural.[25] A morte de Pedro
Nunes significou para o país a perda de um valor de excepção,
mas não é apropriado falar do desaparecimento de um indivíduo
como iniciando um período de decadência. Não se cai de onde não
se subiu.[26]
Não tendo, portanto, havido decadência, podia nos séculos
XVII e XVIII ter havido progressos, com a Matemática portuguesa
acompanhando e tomando parte nos grandes avanços atrás
descritos. Parece inequívoco que tal não aconteceu,[27] e ao não cultivo da
Matemática Pura poderá ser associada a necessidade frequente de
recrutar professores estrangeiros para assegurar o ensino, mesmo
da Matemática elementar, nas nossas escolas, por cá não haver
quem o fizesse.
O quadro mental e cultural português no período em causa
está suficientemente documentado e estudado[28] e não é necessário
recordá-lo aqui. Os seus reflexos na nossa vida matemática (ou
falta dela) decorrem basicamente do facto de que os grandes
progressos científicos da época estiveram em geral associados a
propostas filosóficas contra as quais as autoridades políticas e
religiosas nacionais estavam em prevenção constante,[29] o que produzia uma
explícita atitude de recusa genérica da novidade na instrução.
Quanto à situação geral do país, menos ainda é preciso evocá-la
como pano de fundo para tudo o resto.
Na primeira metade do século XVIII, entretanto,
multiplicam-se os sinais de uma mudança de ambiente. Dentro e
fora do país, surgem vários portugueses interessados nas
modernas tendências científicas. Ocorrem, entre outros, os nomes
de Jacob de Castro Sarmento (com uma newtoniana Theorica
verdadeira das marés, Londres, 1737), José Soares de
Barros e Vasconcelos, astrónomo muitos anos em Paris, Manuel de
Azevedo Fortes, engenheiro, autor de uma Logica
racional, geometrica e analytica (Lisboa, 1744), Teodoro
de Almeida, da Congregação do Oratório,[30] com a sua Recreação Philosophica (Lisboa, 1751), e os
jesuítas Eusébio da Veiga, astrónomo em Lisboa, e Inácio
Monteiro.[31]
Inácio Monteiro merece particular atenção. Professor no
Colégio de Jesus, em Coimbra, publicou nos anos de 1754-1756 um
interessante Compendio dos Elementos de Mathematica.
Este livro, contendo uma introdução à Matemática e à Física,
surpreende pela modernidade da postura científica do seu autor,
que em cada capítulo faz longas introduções com copiosas
indicações bibliográficas, incluindo referências a todos os
grandes autores contemporâneos.[32] Depois da expulsão
da Companhia de Jesus, em 1759, Inácio Monteiro fixou-se em
Itália, onde veio a publicar uma Philosophia Libera
(Veneza, 1766) que teve várias edições. A parte de Física desta
obra foi longamente analisada por Resina Rodrigues.[33] Sobre a parte de
Matemática, tanto do Compendio como da Philosophia Libera, não há estudo de pormenor.[34]
Esta última observação traz-nos a um comentário final. A
maior parte dos trabalhos de Matemática do nosso passado
permanece em total desconhecimento e obscuridade, sem estudos
que os integrem nos respectivos contextos. Faltam as reedições,
sem as quais o conhecimento das obras fica dificultado. Faltam
estudos adicionais sobre o ensino e as obras dos professores dos
colégios jesuítas.[35] Faltam sobretudo as
análises propriamente matemáticas por cientistas profissionais.[36] (Também aqui Pedro
Nunes é excepção.[37]) Sem um esforço
continuado da comunidade matemática portuguesa manter-se-á em
certa medida sobre este aspecto da nossa História um ponto de
interrogação.[38]
[1] «Memórias de Literatura Portuguesa
publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa», tomo
VIII, parte I, 1812, p. 148-229.
[2] Ver
também os seus Panegíricos e Conferências,
Coimbra, 1925.
[3]
«Dicionário de História de Portugal», dir. J. Serrão, vol.
II, Lisboa, 1971, p. 972-977.
[4] «História
e Desenvolvimento da Ciência em Portugal», Academia das
Ciências de Lisboa, vol. I, 1986, p. 81-110.
[5] Opera,
Basileia, 1566.
[6] Publicadas em Certaine errors of
navigation, Londres, 1599.
[7] Ver W. G.
L. Randles, Pedro Nunes and the discovery of
the loxodromic curve, «Revista da Universidade de
Coimbra», vol. XXXV, 1989, p. 119-130, e J.
E. D. Williams, From sails to satellites - The
origin and development of navigational science,
Oxford, 1992.
[8] Primeiro
professor de Matemática na instituição — fundada em 1530
pelo Rei Francisco I em Paris — que viria a ser mais tarde o
Collège de France.
[9] Na
dedicatória ao Cardeal D. Henrique lê-se: "Esta obra há
perto de 30 anos que foi por mim composta, mas porque depois
fui ocupado em estudo de coisas muito diferentes, e de mera
especulação, posto que algumas vezes a revisse, e conferisse
com o que outros depois escreveram, a deixei de publicar até
agora (...). E primeiramente a escrevi em nossa língua
Portuguesa (...)".
[10] Sur le "Libro de Algebra" de
Pedro Nuñez, «Bibliotheca Mathematica»,
3ª série, t. 8, Leipzig, 1907-1908, p. 154-169, e L'algèbre de Pedro Nuñez, «Anais da Academia
Politécnica do Porto», vol. 3, 1908, p. 222-271.
[11] Esta
observação foi feita originalmente por José Anastácio da
Cunha, nas suas Notícias Literárias de Portugal
- 1780, ed. Joel Serrão, Lisboa, 1966; ver texto de
Jean Bernoulli em Joaquim de Carvalho, Anotações
ao De Crepusculis, «Obras de Pedro Nunes», vol. II,
Lisboa, 1943.
[12] Anotações ao De Crepusculis.
[13] Ver por
exemplo Luís de Albuquerque, Pedro Nunes e os
homens do mar do seu tempo, «Boletim da Sociedade
Portuguesa de Matemática», nº 11, Dez. 1988, p. 5-11.
[14] A última
terá ido de
[15] Nisto a
Universidade de Coimbra talvez não difira de instituições
semelhantes na Europa. Em Salamanca, por exemplo, a situação
é análoga (ver J. Rey Pastor, Los matemáticos
españoles del siglo XVI, Madrid, 1926).
[16] Outro
professor de Matemática da Universidade de Coimbra, Gaspar
de Meri, terá passado por este cargo.
[17] Ver Luís
de Albuquerque, A «Aula de Esfera» do Colégio
de Santo Antão no século XVII, «Estudos de História»,
vol. II, Coimbra, 1974, p. 127-200.
[18] Ver
Joaquim de Carvalho, Galileu e a cultura
portuguesa sua contemporânea, Coimbra, 1944.
[19] Um
professor de Matemática da Universidade de Coimbra, João
Torriani, foi Engenheiro-Mor do Reino no século XVII.
[20]A fundação
do Colégio Real dos Nobres de Lisboa e a organização dos
seus estudos prenunciam já a reforma pombalina da
Universidade de Coimbra e por isso não as consideramos aqui
(ver Rómulo de Carvalho, História da Fundação
do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1761-1772),
Coimbra, 1959).
[21] Los
matemáticos españoles del siglo XVI.
[22] E não
pode deixar-se de referir a relação científica de Pedro
Nunes com D. João de Castro, um caso notável de colaboração
continuada entre um cientista "puro" e um "prático".
[23] Ver em
particular as preciosas Anotações de
Joaquim de Carvalho às Obras de Pedro
Nunes.
[24] Ver
Joaquim de Carvalho, prefácio a Defensão do
tratado da rumação do globo para a arte de navegar,
Coimbra, 1952. Recorde-se que o principal elemento da
comissão encarregada do assunto era o grande geómetra e
astrónomo de origem alemã Clavius (mais tarde próximo de
Galileu), que tinha estudado em Coimbra, no Colégio das
Artes. Os pareceres portugueses sobre a reforma do
calendário vieram a ser elaborados pelos astrónomos Manuel
Vizinho e Tomás da Orta.
[25] Joaquim
de Carvalho, prefácio a Defensão do tratado da
rumação do globo para a arte de navegar.
[26] No mesmo sentido, ver J. Vicente Gonçalves, Elogio histórico de Pedro José da Cunha,
«Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (Classe de
Ciências)», vol. IX, 1966, p. 93-111.
[27] Têm
reduzida utilidade histórica os exercícios de uso do
condicional. Mas não deixa de
causar impressão o contraste entre, por exemplo, os
argumentos usados contra o experimentalismo quando da
polémica sobre o Verdadeiro método de estudar
e a grande abertura de espírito do nosso século XVI, o
século da "experiência mãe de todas as coisas".
[28] Ver por
exemplo J. Silva Dias, Portugal e a cultura
europeia (sécs. XVI a XVIII), Coimbra, 1953, A. A. Andrade, Vernei
e a cultura do seu tempo, Coimbra, 1966, e Hernâni
Cidade, Lições de Cultura e Literatura
Portuguesas, 1º volume (Séculos XV, XVI e
XVII) e 2º volume (Ensaio sobre a crise
mental do século XVIII), Coimbra, 1984.
[29] Numa
carta do Geral da Companhia de Jesus Tirso Gonzalez aos
jesuítas portugueses, em fins do século XVII, em que lhes
recomenda o estudo da Matemática, pode ler-se, a propósito
de Descartes: "(...) nome na filosofia malquisto, mas
altamente preconizado na Geometria." (ver J. Silva Dias, Portugal e a cultura europeia). Seria
interessante analisar a eficácia de tais distinções.
[30] No
estimulante ambiente pedagógico da Congregação do Oratório
iniciou a sua formação José Anastácio da Cunha, professor em
Coimbra depois da reforma de 1772, e um dos grandes
matemáticos portugueses. Antes da vinda para a Universidade
passou cerca de dez anos num regimento de artilharia.
[31] Manuel de
Campos, professor em Santo Antão, tem uns Elementos
de Geometria (Lisboa, 1737) repetidamente apontados
por vários autores como do menos mau que por cá então houve;
mas são versão portuguesa de uma obra de Tacquet, e como tal
identificados pelo autor no prefácio. Campos adiciona algum
material, mas não está claro o que lhe deve ser atribuído.
[32] Um índice
onomástico deste Compendio foi publicado em
J. Pereira Gomes, A cultura científica de
Inácio Monteiro, «Brotéria», vol. XLIII (4), 1946, p.
268-287.
[33] Física e Filosofia da
Natureza na obra de Inácio Monteiro,
«História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal», vol. I,
Academia das Ciências de Lisboa, 1986, p. 191-242. Resina
Rodrigues considera Inácio Monteiro "um dos valores mais
altos da cultura portuguesa do séc. XVIII".
[34] O
capítulo de Álgebra do Compendio — com uma
interessante "Instrução" inicial — desilude: depois de uma
longa introdução geral às equações, fica-se pela resolução
das do 1º grau (justificando-se o autor com o carácter
introdutório da obra)! Sobre o perfil pedagógico de Inácio
Monteiro ver Ana Isabel Rosendo, Inácio
Monteiro e o ensino da Matemática em Portugal no século
XVIII, Dissertação de mestrado, Braga, 1996.
[35] Incluindo
a sua acção em Pequim, onde estiveram vários portugueses. A
influência dos jesuítas na corte chinesa provinha em larga
medida da sua competência como astrónomos.
[36] Os
melhores trabalhos históricos portugueses são de Gomes
Teixeira e Vicente Gonçalves.
[37] Mesmo a
publicação das Obras de Pedro Nunes pela Academia das
Ciências está incompleta (suspensa praticamente desde a
morte de Joaquim de Carvalho, em 1958), faltando em
particular a reedição do fundamental Opera
(Basileia, 1566).
[38] A
elaboração deste texto beneficiou de várias sugestões de
António Leal Duarte, a quem se agradece.