LIVRO NOTÁVEL, TRADUÇÃO DEFICIENTE
(carta)
Jornal de Letras, nº 188, 10-17/2/86
Leitor recente do romance Contacto,
de Carl Sagan (Lisboa, Gradiva, 1985), foi com interesse que li o
artigo de Francisco José Viegas no «JL» nº 182, dedicado a esse
livro. Apreciei no essencial o tom do artigo, e penso também que Contacto
é um trabalho notável, candidato a tornar-se num clássico da
ficção científica (ao lado, por exemplo, de A Noite dos Tempos,
de René Barjavel, com o qual aliás tem muito em comum). Isto sem
prejuízo de a narrativa me parecer algo desequilibrada, aqui e
acolá, pela tendência do autor para inserir todo o tipo de
material um pouco a despropósito, desde uma anedota velhíssima, de
resto com piada, sobre o regime soviético (p.123), até discussões
e reflexões arrastadas sobre problemas religiosos. Não importa. Contacto
é um romance absorvente, cuja leitura é difícil interromper a
meio, sendo de realçar, entre outros aspectos, que o autor
consegue não nos desiludir minimamente, no final, depois de um
crescendo de suspense que dura 4/5 do livro.
O objectivo da minha carta, porém, não
é falar do livro em si, mas sim referir-me a um aspecto que F. J.
Viegas preferiu não abordar no seu artigo: a má qualidade da
tradução de Contacto. Não falo já da excessiva colagem ao
original inglês, o qual praticamente se consegue reconstituir ao
longo de todo o texto, de tal modo que se poderia até dizer que um
leitor português com conhecimentos razoáveis de inglês, ao comprar
este livro, adquire também, qual palimpsesto, o original em língua
inglesa. Mas esta característica da tradução significa
provavelmente apenas que ela foi feita à pressa, o que será
compreensível e não muito grave, atendendo à natureza da obra e
aos prazos que com certeza foi preciso cumprir.
Menos aceitáveis são vários erros
claros de tradução espalhados pelo livro, que, mesmo quando não
prejudicam de modo irremediável a compreensão do texto, são pelo
menos causa de distracção e irritação. Cito alguns, não sem antes
referir que não conheço o original inglês, não podendo portanto
muitas vezes ir além da conjectura (mas ó quão provável!) sobre o
teor exacto do texto traduzido: 1) A palavra inglesa eventually
não significa (pelo menos por enquanto...) eventualmente.
Apesar da insistência com que em Portugal é assim traduzida,
nomeadamente em séries documentais televisivas (incluindo, se bem
me recordo, o espectacular Planeta Vivo), eventually continua
a fazer parte daquela maliciosa lista de palavras inglesas que no
liceu nos apresentaram com o nome colectivo de false friends.
Este erro ocorre em Contacto dezenas de vezes, em outras
tantas frases, que ficam assim parcialmente destituídas de
sentido. 2) A palavra college não significa, em português
corrente, colégio. O leitor desprevenido deve ficar a
interrogar-se sobre o significado daquelas passagens do liceu para
o colégio... 3) Eis uma pequena lista de expressões absurdas (no
contexto em que aparecem) que encontrei no texto, contendo entre
parênteses o que eu conjecturo estará no original inglês ou o que
eu penso seria uma melhor tradução: "As novas organizações"
(p.137) (é claro do contexto que se trata de the news
organizations, ou seja, à letra, as organizações
noticiosas) ; "(ao que era) custo efectivo" (p.222) (isto
corresponde claramente a cost effective – uma expressão
com função de adjectivo, portanto –, o que se pode
aproximadamente traduzir pelo galicismo rentável); "Os
exames competentes elaborados" (p.277) (presumo que competentes
deverá ser substituído por competentemente); "Um
interesse investido" (p.314) (seria capaz de apostar que isto vem
de a vested interest = um interesse pessoal); 4)
Em inglês (tal como em português, mas de forma diferente), pode
usar-se o condicional para significar um tempo passado. Ao
descuidar isto, o tradutor tornou cronologicamente absurdas
algumas passagens (por exemplo, na página 261).
Last but not least, num romance
com tantas referências científicas perfeitamente rigorosas e
"genuínas" (em particular à Matemática e à Física), teria sido
importante um maior cuidado na tradução dos termos científicos. A
comunidade científica de língua portuguesa é suficientemente ampla
e diversificada para ter gerado os correspondentes em português da
totalidade dos termos científicos correntes. Alguns exemplos de
traduções incorrectas de termos científicos (fico-me pela
Matemática, embora pudesse dar muitos outros): Números
transcendentais (título do 1º Capítulo, e com múltiplas
outras ocorrências) em vez de transcendentes, conectado
em vez de conexo, medição em vez de medida,
decimal em vez de dízima.
Porquê tanta atenção a uns problemas de tradução, num livro em particular? Primeiro (e nesse sentido esta carta é uma espécie de reflexo de defesa do consumidor), o livro é caro, e o produto deve corresponder ao preço. Depois, precisamente porque o romance é excelente (e a menor das suas qualidades não será até a do estímulo ao interesse pela Ciência), é uma pena que a sua fruição seja prejudicada pela má qualidade da tradução. Finalmente, traduzir, com todas as suas dificuldades (e mesmo impossibilidades), é uma actividade essencial. Creio pois que é importante uma atenção sistemática às questões de tradução para português, seja por parte dos leitores seja por parte da crítica. No caso vertente, o autor e o público mereciam melhor.
João
Filipe Queiró
Coimbra
Nota posterior: A Gradiva publicou
uma nova edição de Contacto
com a tradução corrigida.