O actual momento da Universidade

João Filipe Queiró

Rua Larga - Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra
nº 1, Junho de 2003, p. 48.



 

Os últimos tempos têm sido de abundante reflexão sobre o ensino superior em Portugal, com intervenções múltiplas em planos variados. Houve já produção legislativa no plano do enquadramento geral do sistema, com duas leis em dois anos, provindas de outros tantos governos e parlamentos. E anuncia-se para breve legislação nova sobre todos os grandes temas estruturais: autonomia, gestão, financiamento, carreira docente. O interesse por estes assuntos é tal que se assiste hoje ao emergir de um novo tipo de especialistas, dedicados às políticas de ensino superior.

Este interesse e esta vontade de mudança contrastam com a geral apatia em matéria de regulação do ensino superior em Portugal nas décadas de 80 e 90, até há uma meia dúzia de anos. Se descontarmos as manifestações a propósito das propinas na primeira metade da década de 90 – que no fundo não tinham muito que ver com questões de sistema – nesses anos a organização do sistema de ensino superior não foi tópico que despertasse grandes atenções. Pode mesmo falar-se em desinteresse e erros do Estado e seus sucessivos representantes, em particular em relação à universidade, traduzidos em ausência de planeamento, má gestão de recursos, criação errática de instituições, modelos de gestão inadequados, tudo dominado por perspectivas de curto prazo.

Entre as razões para isso encontra-se uma que é a mesma – em negativo fotográfico – que a que está por trás do interesse e movimentações de hoje.

Até depois do meio da década de 90, os tempos foram de abundância e crescimento explosivo. Havia estudantes para todas as instituições – as que existiam e as que entretanto apareceram por essa razão mesma – e havia (salvo as raras e conhecidas excepções) instituições para todos os estudantes, tivessem estes as notas que tivessem nas provas de acesso. Este período de expansão rápida teve com certeza aspectos positivos, mas acontece que no seu decurso o Estado perdeu de vista a questão da qualidade, o que introduziu distorções e semeou problemas para o futuro.

Hoje a situação é diferente. O número de estudantes candidatos ao ensino superior estabilizou, ou mesmo diminuiu. A “capacidade instalada” para recepção de estudantes – mais em matéria de edifícios do que de recursos humanos qualificados, mas adiante – começa a parecer excedentária. E, por outro lado, fez algum caminho – porventura ainda insuficiente – a ideia de que um ensino superior digno desse nome deve merecer preocupações de qualidade, e que a qualidade de uma instituição não lhe vem do nome, nem da disposição legal que a institui: o que faz a qualidade de uma instituição é simplesmente a qualidade do estudo que lá se realiza.

Por outro lado, a todo o momento se cita, como factor novo a influenciar as futuras mudanças, as declarações europeias sobre ensino superior. Estas surgiram nos últimos anos, reflectindo a preocupação de, também no contexto do ensino superior e da sociedade do conhecimento, desenvolver alguma lógica continental, sem esquecer a importante questão de trazer para dentro da casa comum universitária os países do leste, recém chegados à liberdade. Em Portugal tais declarações são por vezes usadas como pretexto para promover fins particulares, ignorando a intenção original e as circunstâncias do país. Para Portugal, a “agenda de Bolonha”, com o que significa de abertura a um grande espaço internacional, não pode ser senão a agenda da qualidade e da exigência.

Quanto à Universidade de Coimbra, que dizer? Parece que continuamos orgulhosos das nossas pedras, reais e figuradas. Mas começamos a perceber que esta Universidade já não é a única no país. E que a nossa situação geográfica e política comporta alguns riscos e fragilidades. Por outro lado, temos, de uma Lei de Autonomia com vários defeitos, uma interpretação local que os amplifica.

Entretanto, a nosso favor estão várias coisas. A Universidade de Coimbra continua a possuir, por vários motivos, real capacidade de atracção de estudantes a nível nacional. E, sobretudo, temos por nós esta coisa simples: o interesse nacional em matéria de ensino superior coincide largamente com o interesse da Universidade de Coimbra, que é colocar ênfase absoluta na qualidade como único caminho possível para o futuro.

Assim sejamos capazes de manter a lucidez na actual circunstância. A Universidade de Coimbra deve tentar pôr em surdina o seu talento para transformar forças em fraquezas, e evitar travar hoje os combates de ontem. Como guia para uma política de qualidade, lembremo-nos sempre de que as instituições, como as pessoas, medem-se tanto pelo que são como por aquilo que almejam ser. Olhemos, portanto, não para o vizinho do lado, mas para os melhores. Apontemos para o cume, e não para a meia-encosta. Diminuir a emulação do passado, aumentar a ambição do futuro, eis um razoável lema para a Universidade de Coimbra no momento que passa.