Rua Larga - Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra
nº 5, Julho de 2004, p. 60.
No nosso país são frequentes as referências à importância da qualidade em matéria de Ensino Superior. Não há declaração sobre políticas, instituições ou cursos que não contenha incisiva homenagem ao princípio da qualidade. Esta universal e entusiástica aceitação entende-se porque em Portugal as palavras são mais importantes do que as realidades. Ensaiemos, ainda assim, um exame da questão e tentemos usar o proverbial “quebra-palavras” de que fala o poeta.
Não é dicionarista quem quer, mas creio ser um direito de cada cidadão, ocasionalmente, propor um significado para algum vocábulo que o apoquente. É esse direito que aqui exerço:
Qualidade (de uma organização ou instituição), s.f. Adequação aos objectivos (dessa organização ou instituição)
Adoptada esta definição, segue-se logicamente, dado o assunto que nos interessa, a pergunta: Quais os objectivos do Ensino Superior em Portugal? Se conseguirmos responder, teremos avançado no nosso problema e, de passo em passo, poderá ser que se chegue a algum lado.
Este tipo de abordagem dedutiva não deve suscitar excessivo optimismo. O escritor norte-americano Gore Vidal, no seu livro de memórias Palimpsest, escreve a certa altura o seguinte:
«Eu tenho a teoria de que a mente de um engenheiro, embora boa para muitas coisas, não se adapta nem à literatura nem à política. Para o engenheiro tudo tem que estar ligado, enquanto o escritor natural ou o político natural sabem, instintivamente, que nada de facto está ligado a nada, excepto no que imaginamos ser a ciência. A literatura, tal como a política de um Franklin Roosevelt, exige uma mente divergente. A engenharia exige uma mente convergente. Comparem-se os arabescos inspirados e sem estrutura de Roosevelt como político, esquivando-se astuciosamente para aqui e para ali, com o meticuloso engenheiro Jimmy Carter, tentando obstinadamente que tudo fizesse sentido, e acabando por falhar.»
A palavra “engenheiro” é usada em sentido lato, devendo entender-se de forma a abranger todos os que tentam pensar de forma lógica. E quem pertence a esta categoria não pode deixar de observar que, em matéria de Ensino Superior, nomeadamente na criação – ou autorização de criação – de instituições e cursos, se adoptou em Portugal nos últimos 20 anos a “doutrina Roosevelt”.
O Professor Freitas do Amaral, em artigo recente, escreveu:
«Não há praticamente ninguém que, de forma sistemática e institucional, se dedique profissionalmente, a tempo inteiro, ao estudo dos grandes problemas, dos grandes desafios e dos grandes objectivos nacionais que Portugal tem pela frente, a prazo de 30, 40 ou 50 anos.»
E logo a seguir, entre os exemplos, inclui estas perguntas:
«Como deverão ser as Universidades portuguesas daqui a 30 ou 40
anos?
E na investigação científica: vamos ser produtores,
utilizadores e exportadores da nossa capacidade inventiva, ou
vamos copiar o estrangeiro e trabalhar sob licença?»
Não há, de facto, nenhuma instância de racionalidade hoje que coloque e analise, num plano de interesse público, os grandes problemas do Ensino Superior e da Ciência em Portugal. E as políticas vão ficando cada vez mais erráticas e ao sabor do momento, o que é ainda agravado pelo fenómeno da subordinação da própria alta administração às flutuações associadas aos calendários eleitorais. Para acrescentar um exemplo de actualidade, não há hoje nenhuma instância onde possa ser estudada, de forma que vá além da conjuntura, a questão da criação, extinção, associação e reconversão de instituições de Ensino Superior.
Seria demasiado fácil acusar por isto governos ou políticos individuais. O problema é mais complexo, estando ligado à crise de consensos de profundidade na sociedade portuguesa, e à excessiva dependência do discurso público em relação à agenda superficial dos media.
Quais são então as bases nas quais se poderia apoiar um raciocínio tendente a identificar os objectivos (pelo menos alguns) do Ensino Superior, ou apenas da Universidade?
Portugal existe como comunidade de história e de cultura. Na base dessa existência estão fundamentalmente duas coisas: uma vontade e uma inteligência. A inteligência cultiva-se, desenvolve-se e expande-se sobretudo nas universidades. A missão destas tem portanto uma dimensão de interesse público que vincula o Estado, as instituições e os seus habitantes. Desse vínculo fazem parte exigências académicas e dele decorrem também consequências no terreno da governação, seja no plano sistémico seja a nível institucional.
Entre os corolários simples destes princípios está o de que não podem ser criadas instituições públicas de Ensino Superior – ou reconhecidas e apoiadas, no caso das não-públicas – que não satisfaçam critérios apertados de corpo docente próprio qualificado. As aspirações regionais e a liberdade de ensino têm toda a legitimidade, mas o Ensino Superior criado, reconhecido e apoiado pelo Estado é outra coisa. Uma segunda consequência é que a autonomia é um instrumento, não devendo confundir-se com independência nem com apropriação das instituições pelos seus habitantes em cada momento.