Universidade e mercado

João Filipe Queiró

Rua Larga - Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra
nº 9, Julho de 2005, p. 60.



 

Existe um mercado para o ensino superior em Portugal? Por outras palavras, existe em matéria de cursos e formações um espaço público de estabelecimento e escolha, onde os “clientes” ou “consumidores” – os estudantes – optem por instituições e cursos conforme os seus gostos e interesses, e segundo as leis da concorrência?

Mesmo quem não é economista compreende que a existência e o bom funcionamento de um “mercado” e de uma salutar concorrência em determinado sector exigem a satisfação de vários requisitos. Entre estes contam-se a dimensão, uma completa informação e compreensão do valor das coisas, uma razoável homogeneidade do “produto” oferecido. Ora, é manifesto que estas condições não estão presentes no caso do ensino superior em Portugal, e da oferta e procura associadas.

Esta observação não é uma descoberta extraordinária, mas nunca é demais repetir o óbvio quando no debate destes assuntos há por vezes uso impróprio das palavras.

Note-se que as coisas se passam de forma diferente para os ensinos básico e secundário, onde há outras condições e espaço para a livre iniciativa e a livre escolha, porque aí é mais simples e perceptível a informação conducente à opção das famílias. Esta é uma distinção que não se tem visto fazer nos debates sobre a liberdade de ensino.

Quanto ao ensino superior, fala-se aqui apenas nas universidades. Nada se diz sobre o ensino politécnico, a não ser que o catálogo das formações que oferece deve ser disjunto do das universidades. Se não oferecer formações diferentes das universitárias – na natureza, na duração, nas saídas profissionais – não se vê para quê manter o politécnico como sistema separado e com regras diferentes. E então deveria pensar-se na integração dos politécnicos nas universidades existentes, não na sua transformação em universidades.

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A missão das universidades é complexa e multidimensional. Para além das formações de 1º ciclo, de que o público em geral vai tendo uma ideia, as universidades organizam e oferecem formações de vários outros tipos – mestrados e pós-graduações diversas, cursos de especialização, doutoramentos – para além de terem muitas actividades de investigação e desenvolvimento, colaborações exteriores e consultorias especializadas, etc. Os professores universitários têm intervenção de relevo nas áreas cultural, económica, política. Podem instituições assim ser deixadas ao sabor de uma vaga “procura” dos candidatos a formações de 1º ciclo? Não: a importância e especificidade da sua missão coloca a universidade portuguesa primariamente na esfera do interesse público, ou do Estado. Num país como Portugal, não faz sentido abandonar a questão universitária a uma incipiente iniciativa particular e a um hipotético “mercado”.

Mas, perguntar-se-á, e os EUA? Não são várias das melhores universidades americanas – e portanto do mundo – instituições privadas? O que se passa é que os EUA têm a dimensão, a riqueza e a cultura suficientes para experimentar tudo e o seu contrário, são talvez o único país do mundo em que se pratica em permanência, e em todos os sectores, a “destruição criadora” característica de uma economia verdadeiramente liberal. As melhores universidades do mundo são americanas, mas raramente se observa que as piores também. Portugal não nem tamanho, nem tempo, nem dinheiro para experimentar isto.

Colocar a universidade na esfera do interesse público não significa pôr as instituições a ser geridas por repartições governamentais. Significa que o Estado deve assumir a condução estratégica e a regulação do sistema universitário. Não é isto que tem acontecido nas duas últimas décadas, e chegou-se ao extremo de ver prometer a criação de universidades públicas durante campanhas eleitorais.

O objecto da regulação deve ser a rede de instituições (no número e na natureza), o catálogo de formações, a avaliação e acreditação de cursos e graus, a alocação dos recursos financeiros. O reconhecimento e o apoio públicos, por sua vez, têm a contrapartida da aceitação de elevados standards de exigência e prestação de contas, seja pelas instituições públicas seja pelas privadas.

Se isto é assim para as formações de 1º ciclo – chamem-se como se chamarem – ainda o deve ser mais para as formações avançadas, que só devem existir em instituições satisfazendo requisitos muito apertados e periodicamente controlados. Uma visita a  www.aneca.es  e  a  www.capes.gov.br  mostrará como as coisas são feitas nesta matéria em países de que gostamos de nos achar próximos.

Uma concepção falsamente ingénua afirma que o que interessa no ensino superior são os outputs, as “competências” dos diplomados à saída dos cursos. Essas competências costumam ser do tipo intangível, daquelas que não se sabe como se medem ou avaliam. Tal discurso pretende apenas desvalorizar ou esconder a importância essencial dos inputs, à cabeça dos quais estão a qualificação do corpo docente e a existência nas instituições de uma cultura e uma actividade de estudo e investigação de alto nível.

Um exemplo real. Uma universidade portuguesa exibe na internet o seu corpo docente para certa licenciatura: dois mestres e três licenciados. Essa licenciatura é oficialmente reconhecida para efeitos de acesso imediato, sem mais formalidades e com a qualificação máxima, aos concursos públicos para determinada profissão – teoricamente regulada – para a qual não há qualquer outro mecanismo de certificação. Claramente, o mérito aqui só pode estar nos outputs...

Quando se fala de liberdade de ensino, o que está em causa não é a liberdade, em sentido estrito, de cada um ensinar ou aprender o que quiser. A bem dizer, as restrições nesse plano são apenas as restrições normais que a lei impõe à liberdade de expressão (proibição do incitamento ao crime, etc). Não, a questão da “liberdade de ensino” é outra: é a questão do reconhecimento estatal e do financiamento público, seja às instituições seja aos alunos.

Em Portugal não deve haver, em matéria de ensino superior reconhecido e apoiado pelo Estado, liberdade para se ser medíocre. A existência em Portugal de instituições e formações sem qualidade, públicas ou privadas, é um dos maiores desperdícios actuais no campo do ensino superior.

É obrigação do Estado exigir e garantir a qualidade da oferta no ensino superior em Portugal. A escolha dos “consumidores”, a escolha dos estudantes e famílias, é só neste mercado que se deve fazer.