João Filipe
Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra
Encontro da Associação para a
Cooperação entre Escolas Universitárias de Letras e Ciências
Coimbra, 7/11/2001
Este encontro é dedicado à questão da
contratação de professores. Convém especificar que se trata da
contratação pelo Estado (isto é, pelo Ministério da
Educação ou estruturas dependentes do Ministério da Educação)
de professores do ensino não-superior.
Como é que essa contratação se processa?
Embora haja alguma tendência para a “localização” de parte do
processo, essa contratação é essencialmente feita a nível
nacional, todos os anos, por uma máquina, um computador (o
computador da Direcção Geral da Administração Educativa). Esse
computador agrupa os candidatos segundo “grupos de
contratação” (disciplinas e ciclos), separa-os segundo as
habilitações que possuem (há vários níveis de habilitação) e
depois ordena-os pela sua classificação profissional, que para
os estreantes é simplesmente a nota que tiveram no seu curso.
Depois de ordenados, o Estado contrata os primeiros da lista,
em número igual às necessidades desse ano. Este é o sistema
nacional em vigor presentemente.
Quando eu vou
empregar alguém para desempenhar uma função, sei exactamente o
que quero e avalio os candidatos e as suas qualificações em
função do que quero. Se o lugar exige certa formação, procuro
informações sobre onde e com quem foi obtida. Posso submeter
os candidatos a testes e a entrevistas. Só depois os ordeno,
contratando os que ficaram nos primeiros lugares.
O processo assim
descrito tem uma racionalidade: o empregador tem um interesse
bem determinado, informa-se com precisão sobre os candidatos e
avalia-os e ordena-os em função do seu interesse.
No caso da
contratação dos professores, o empregador é o Estado.
O que é que se tem
passado em Portugal nos últimos anos relativamente a este
processo? Passaram-se essencialmente quatro coisas: três más e
uma potencialmente boa.
1ª) Em primeiro
lugar, a multiplicação descontrolada de instituições que o
Estado reconhece para o efeito atrás descrito. Em menos de 30
anos Portugal passou de três universidades para mais de 20
(entre públicas e privadas) e, na formação de professores,
surgiram (também entre públicas e privadas) 20 ou mais
instituições de formação de professores integradas nos
institutos politécnicos, chamadas escolas superiores de
educação. A todas estas instituições, o Estado reconhece, para
efeitos de contratação de professores de vários níveis, a
faculdade de os formar e, no fim, de lhes dar uma nota que é a
nota usada nos concursos, para a ordenação pelo computador da
Direcção Geral da Administração Educativa.
Ou seja, o Estado
generalizou, dispersou e deixou de controlar a capacidade
certificadora, de enorme responsabilidade social, que antes
reconhecia a um número muito reduzido de instituições. Quando
as instituições eram em número muito reduzido, o seu
funcionamento era acompanhado e controlado muito de perto pelo
Estado: os planos de estudo em cada área eram todos iguais, as
regras de funcionamento eram iguais, as exigências de corpo
docente eram as mesmas em todas e, em cima disto tudo, o
Estado ainda submetia os candidatos a professores a um
programa de formação específico e a um exame nacional.
Hoje o número de
instituições – cujo aumento podia em si ser um bem – é o que
se sabe, e as diferenças no seu funcionamento, nas suas regras
e nos seus corpos docentes são enormes. Sobre os seus
programas de formação, o Estado apenas quer saber das notas
finais dos estudantes nos cursos. Não é preciso ter muita
imaginação para perceber a que é que esta situação conduz,
incluindo interessantes fluxos migratórios dos estudantes a
meio dos seus cursos.
2ª) Em segundo
lugar, o Estado promoveu uma situação em que instituições de
tipos diferentes podem formar professores para os mesmos
níveis. As instituições de tipos diferentes são de um lado as
escolas universitárias e do outro as escolas superiores de
educação. As primeiras formam tradicionalmente professores
para os oito anos que vão do 2º ciclo ao secundário. As
segundas também têm uma tradição, que era a de formarem
professores para os ciclos anteriores (1º ciclo e também
educadores de infância). Mas a situação actual é diferente: as
universidades começaram, nas últimas décadas, a formar
educadores de infância e professores do 1º ciclo, e as escolas
superiores de educação começaram a formar para o 2º ciclo e,
desde a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo de
1997, podem teoricamente formar para o 3º ciclo (embora,
felizmente, ainda não haja cursos desses).
Também esta
situação é um erro grave. Porquê? Porque as universidades e os
politécnicos são escolas muito diferentes no plano da
definição legal, nomeadamente no estatuto da carreira docente.
Dir-se-á que isso não tem importância, porque o que interessa
é “o produto” dessas instituições, a qualidade dos professores
que lá se formam, não tendo interesse saber de onde vêm. Esta
ideia não é válida, por dois motivos. Primeiro, por um
argumento que parece formal mas não é: há todo o interesse
público, no plano da regulação do ensino superior, em que a
formação directa para profissões muito específicas, para as
quais o empregador é o Estado, seja assegurada por
instituições exactamente do mesmo tipo (poderei analisar isto
em mais pormenor se for necessário). Depois, e em ligação com
o argumento anterior, o Estado em Portugal não tem nenhuma
maneira de avaliar a qualidade dos candidatos a
professores.
3ª) O terceiro
facto recente em matéria de contratação de professores foi um
erro grave cometido todos os anos, a partir de 1998, pelo
Ministério da Educação: a publicação de despachos ministeriais
que conferem habilitação própria para a docência aos
licenciados por centenas de cursos que não têm nada que ver
com a docência. Não vou entrar aqui na análise do que é a
habilitação própria, que basicamente permite o acesso rápido,
por um processo muito defeituoso, à habilitação profissional,
que é a máxima. O que é espantoso nestes despachos é que eles
foram emitidos num momento em que o mercado de emprego dos
professores já estava saturado, não havendo nenhuma
necessidade de recorrer a pessoas com formação para
outras profissões.
Nunca ninguém
conseguiu explicar porque é que estes despachos foram feitos.
Eu fiz várias tentativas para saber o que se tinha passado. Só
uma vez consegui obter uma resposta, de alguém que não vou
identificar mas que sabia do que estava a falar. E a resposta
foi: “Muitas pressões, Sr. Dr., muitas pressões...”
Esta mesma resposta
explica os outros erros que atrás descrevi: o descontrolo da
capacidade certificadora para efeitos de contratação de
professores, a existência de instituições de tipos diferentes
a formarem para as mesmas profissões (e em particular a
alteração da LBSE em 1997). Muitas pressões, muitas
pressões...
4ª) O quarto facto
que se passou em Portugal nos últimos anos em matéria de
contratação de professores não aponta, ao contrário dos
anteriores, num sentido negativo: trata-se da criação do
Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores
(INAFOP), aqui representado pelo seu Presidente, o Prof.
Bártolo Paiva Campos. O INAFOP foi criado recentemente para
levar à prática o sistema de acreditação dos cursos de
formação inicial de professores. A lógica de um tal sistema –
que substituirá toda a legislação anterior – é a de informar
os potenciais empregadores dos diplomados por aqueles cursos
sobre a sua qualidade e condições de funcionamento. No plano
conceptual, o INAFOP é potencialmente o único centro de
racionalidade existente em Portugal em matéria de regulação da
formação e contratação de professores.
Daqui a pouco direi mais alguma coisa
sobre o INAFOP. Mas agora gostaria de resumir o que já
disse.
Em Portugal, o Estado é o grande gestor
do sistema educativo, ao qual reconhece, no plano do discurso,
a mais alta relevância social. O Estado precisa de professores
e contrata-os. Mas, como vimos, o processo dessa contratação
entrou em colapso em todas as suas fases. Pela maneira como
tem se tem comportado, o Estado não revela ter nenhum
interesse específico a satisfazer, não se interessa pelas
condições de formação dos candidatos e, claro, não os ordena
de nenhuma forma racional.
O primeiro
interesse do Estado só pode ser o da qualidade do ensino, e
portanto deveria privilegiar a contratação dos melhores
professores para esse efeito. Põe-se claramente aqui o
problema de definir a palavra “melhor”. Mas o que parece claro
é que o Estado não escolhe o melhor, seja qual for a
definição de melhor. Pelo seu comportamento nos últimos
anos, o Estado provou que não existe como entidade
portadora de um interesse próprio, claramente concebido e
concretizado, em matéria de qualidade dos professores. Pelo
contrário, o que vemos são as políticas estatais vogando ao
sabor da satisfação das pressões de cada momento.
Quanto a alguns dos
intervenientes nas discussões sobre estes assuntos, não só não
há uma definição de melhor como se recusa que haja, ou
que deva haver: pelo contrário, para esses intervenientes,
todas as instituições são igualmente boas, todos os corpos
docentes são igualmente qualificados, todas as formações são
igualmente competentes. E tudo isto se diz, evidentemente, sem
nenhuma fundamentação objectiva. Em qualquer discussão, temos
de nos haver com a “trepadeira de palavras” de que fala o
Prof. Marçal Grilo, e sobretudo com a recusa de qualquer forma
de avaliação externa objectiva das instituições e dos seus
programas de formação.
Estes e outros
erros de política educativa fazem o país correr grandes
riscos. Mas a sociedade portuguesa não se apercebe de quase
nada. As políticas de fundo em matéria educativa são muito
herméticas, e os seus efeitos geralmente só se fazem sentir
muitos anos depois, quando os responsáveis já desapareceram
dos postos que ocupavam.
Como sair desta situação? A mim
parece-me que só é possível quebrar os ciclos viciosos em que
estamos com a intervenção pesada da opinião pública.
Mas a opinião pública comum não tem a menor possibilidade de
resistir às “trepadeiras de palavras”.
O grande desafio da organização do
sistema educativo em Portugal é então saltar por cima da
barreira que constitui o discurso dos “especialistas” no
poder, e ligar a organização do sistema, em todos os seus
aspectos, à vontade e às percepções dos chamados stake
holders, isto é, dos que têm um interesse real e directo
no sistema, em primeira linha os jovens e as famílias (mas
também podemos pensar por exemplo nas autarquias, nas
empresas, no Ministério da Ciência e Tecnologia). É preciso
pôr as coisas em forma compreensível pelos stake holders,
e essa forma só pode ser a das avaliações externas incisivas,
a nível nacional. Isto tanto vale para os estudantes como para
os professores e candidatos a professores.
O INAFOP poderia
teoricamente desempenhar esse papel de avaliação dos cursos de
formação de professores, mas eu receio que, por motivos
ligados à sua organização interna e às regras que orientam a
sua acção, não consiga desempenhá-lo de forma satisfatória. Eu
estou convencido, por exemplo, de que é necessário alterar a
composição do Conselho Geral do INAFOP, actualmente demasiado
informada por uma lógica de interesses, que não são os
interesses nacionais (isto para quem essa expressão faça
sentido). Na fase de debate, depois de ouvirmos o Prof.
Bártolo Paiva Campos, pode ser que se possa discutir isto com
mais pormenor.
Mas eu adianto já
uma ou duas ideias para a alteração do actual modelo de
contratação de professores em Portugal.
Em primeiro lugar, e para além da
fiscalização da qualidade das instituições pelo INAFOP, pode
pensar-se num exame nacional para todos os candidatos à
docência no ensino não-superior. Uma tal prova existe em
vários países, e já existiu em Portugal. Não parece
logisticamente difícil de organizar, e as classificações nele
obtidas contariam para os concursos de contratação de
professores. Este exame poderia ser administrado por exemplo
pelo próprio INAFOP.
Ninguém gosta de se submeter a
exames, mas os exames não se organizam porque as pessoas os
querem fazer, e sim por necessidades imperiosas de avaliação e
regulação do sistema, e de melhoria da sua qualidade. Também
se ouve dizer com frequência que os exames têm muitos
defeitos, mas nunca ouvi um crítico dos exames propôr um
sistema alternativo que satisfaça os requisitos objectivos de
avaliação e regulação nacional do sistema educativo.
Em segundo lugar, pode pensar-se na
contratação directa dos professores pelas escolas, cujo
financiamento poderá depender em parte dos resultados dos
estudantes em exames nacionais. Assim se fará repercutir nas
contratações o interesse directo dos jovens e das famílias,
uma vez que o Estado, aparentemente, não tem interesse nenhum
em nada disto. Uma alternativa possível é a contratação ser
feita pelas autarquias, onde pode haver um mínimo de controlo
democrático do processo.
Finalmente, é claro
que sou de opinião de que devem imediatamente revogados os
despachos de habilitações que permitem o acesso à
profissionalização sem a satisfação de requisitos de formação
mínimos. E deve ser revista a LBSE, no sentido de separar
claramente os níveis para que podem formar universidades e
politécnicos: 3º ciclo e secundário para as universidades,
pré-escolar e 1º ciclo para os politécnicos; tenho dúvidas
quanto ao 2º ciclo. É errado o argumento usado para separar o
3º ciclo do secundário – seja na formação dos professores,
seja na rede escolar, seja nos grupos de contratação – em nome
de uma imaginária “unidade do ensino básico”. Sobre tudo isto
terei o maior gosto em discutir na fase de debate.