Nota de apresentação
a “Petri Nonii Salaciensis Opera” de Pedro Nunes  (this text in English)

João Filipe Queiró

Departamento de Matemática, Universidade de Coimbra, 2002.




Pedro Nunes (Alcácer do Sal, 1502 – Coimbra, 11 de Agosto de 1578) é o mais importante dos matemáticos portugueses, e é um grande nome da Matemática europeia do século XVI.

Muitos passos da sua vida permanecem ainda hoje envoltos em obscuridade. Conhecemos o local e o ano do seu nascimento, bem como o local e data do seu falecimento. Alguma coisa sabemos da sua actividade, como professor – na universidade e na corte – e cosmógrafo. Chegaram também até nós, por via de documentos redigidos por terceiros, alguns pormenores relativos a posições ocupadas e vencimentos recebidos. E temos as suas obras, de que podemos extrair um perfil intelectual e retirar uma ou outra conclusão biográfica.

Mas tudo isto, que é muito, não chega para traçar um retrato do homem. Faltam informações sobre a sua família de origem, a sua infância e os seus anos de formação.[1] Mal sabemos de viagens que tenha feito na Europa. Praticamente não temos cartas, de e para Pedro Nunes, e elas existiram com certeza e seriam hoje documentos do maior interesse para compreender melhor a vida e a obra do matemático português.[2] E faltam até imagens dele: não há um quadro contemporâneo, ou uma gravura, que o representem.

Na ausência destas informações, restam-nos – e do ponto de vista científico são o essencial – as obras de Pedro Nunes. Estão hoje identificadas as obras impressas em sua vida, sendo improvável, embora não totalmente impossível, que apareçam outras, e não há notícia de manuscritos inéditos, com excepção de um, identificado há mais de meio século. Mas mesmo sobre as obras, pouco sabemos, em geral, a respeito das circunstâncias que rodearam a sua publicação: os objectivos que levaram à redacção e edição, a escolha da tipografia, o financiamento, a tiragem, a difusão e vendas, a leitura e utilização por homens de ciência, professores, estudantes.

A publicação das obras impressas de Pedro Nunes durante a sua vida concentra-se em dois períodos: 1537-1546 e 1566-1573. No primeiro período há uma obra em português e várias em latim, e no segundo período há obras em latim e uma em castelhano. Salta à vista o interregno de 20 anos entre os dois períodos de publicação. Não é fácil encontrar explicações para ele. Podemos, a este respeito, lembrar a actividade profissional de Pedro Nunes, como professor universitário – em Coimbra de 1544 a 1562 – e como cosmógrafo-mor do reino desde 1547. Mas há outro aspecto interessante. As obras impressas no primeiro daqueles períodos são todas publicadas em Portugal: o Tratado da Sphera, de 1537, em Lisboa; o De Crepusculis, de 1542, em Lisboa; o De erratis Orontii Finaei, de 1546, em Coimbra; o pequeno opúsculo Astronomici introductorii de spaera epitome, também deste período, não tem indicação sobre o local de impressão, mas é provável que tenha sido dado à estampa em Coimbra ou em Lisboa. No segundo período, as duas primeiras obras, que são as principais (as outras são reedições), são publicadas fora do país: Petri Nonii Salaciensis Opera, de 1566, em Basileia, e Libro de Algebra, de 1567, em Antuérpia. Este facto, para além de eventualmente traduzir interesse de Pedro Nunes por tipografias de prestígio ou de qualidade, parece corresponder a uma vontade de difusão mais alargada, de obras que, no momento em que vêm à luz, são já de plena maturidade. E isto tanto mais que, em ambos os casos, se trata de reelaborações e extensões de trabalhos anteriores, ambos da década de 30: partes do Tratado da Sphera, no primeiro caso, e um manuscrito em português até hoje não encontrado, no segundo.

Mais do que antes, Pedro Nunes dirige-se assim, com estas duas obras, profundamente meditadas, à comunidade científica europeia. Para o Libro de Algebra escolhe o castelhano, e publica-o em Antuérpia, cidade da Flandres na altura sob domínio espanhol. As Opera saem em latim, em Basileia.

É este último livro que aqui se reedita em facsimile. De todas as obras de Pedro Nunes, esta é porventura, como já foi observado, a menos estudada pelos historiadores da ciência. Mas é também, provavelmente, uma das mais interessantes.

 

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As Petri Nonii Salaciensis Opera consistem em quatro trabalhos, bem identificados no frontispício, mas não tão claramente na tábua das matérias elaborada pelo autor.

Os dois iniciais podem considerar-se versões latinas dos tratados sobre náutica incluídos no Tratado da Sphera de 1537. Mas enquanto que o primeiro dos dois textos latinos, De duobus problematis circa nauigandi artem, é de facto em larga medida tradução do Tratado sobre certas dúvidas da navegação, em que pela primeira vez foram claramente distinguidas a navegação com rumo constante e a navegação por círculo máximo, o segundo é obra muito diferente do Tratado em defensam da carta de marear, muito mais extensa e desenvolvida.

Este longo texto,[3] com o título De regulis & instrumentis, ad uarias rerum tam maritimarum quam & coelestium apparentias deprehendendas, ex Mathematicis disciplinis, trata sucessivamente da análise e concepção de cartas de marear, da navegação astronómica e do traçado de linhas de rumo sobre um globo.

A respeito da carta, Pedro Nunes volta a discutir longamente, como em 1537, a carta rectangular de latitudes constantes, nomeadamente à luz do requisito de que as linhas de rumo devem ser representadas por rectas. Esta é uma típica contribuição derivada de necessidades da navegação, que informam a discussão de Pedro Nunes mais do que a conveniência de representar fielmente o globo. Apontados os inevitáveis erros de uma carta de latitudes constantes, relativos a rumos, coordenadas de pontos do globo e distâncias entre eles, Pedro Nunes sugere a adopção de uma solução do género da Geografia de Ptolomeu (por sua vez inspirada em Marino de Tiro), em que há várias cartas regionais rectangulares mas com diferentes proporções na quadrícula, conforme o paralelo central de cada uma.[4] Pedro Nunes recomenda que se façam cartas diferentes conforme as latitudes, e acrescenta que os paralelos extremos de cada uma não devem estar distantes (“Extremos autem parallelos non admodum à se inuicem distare oportet”, pág. 25), para não haver excessiva distorção. Diz ainda que em cada carta deve colocar-se toda a longitude do globo (“Et ponenda est in omni tabula universa orbis longitudo”). Ou seja: o que Pedro Nunes propõe, distinguindo-se aqui de Ptolomeu, é um conjunto de “bandas” horizontais estreitas cobrindo toda a superfície do globo. Estamos praticamente já com a chamada projecção de Mercator. Falta apenas, como assinala Gomes Teixeira,[5] reunir as cartas parciais – de pequena largura – numa única, mantendo as proporções internas delas e uniformizando a medida das longitudes. Segundo Nordenskiöld,[6] teria sido exactamente assim que Mercator procedeu na construção do seu mapa, usando intervalos de dez graus entre os paralelos.

O primeiro autor a publicar tabelas permitindo a construção de cartas – ditas “de latitudes crescidas” – com a propriedade de representarem as linhas de rumo por rectas foi Edward Wright,[7] que diz que os erros na carta de latitudes constantes foram apontados por vários autores antes dele, “especially by Petrus Nonius, out of whom most part of the first Chapter of the Treatise following is almost worde for worde translated”. Wright usou os tratados latinos de Pedro Nunes, e não os textos de 1537, como se vê pelo princípio do seu capítulo II, em que se refere a “Petrus Nonius in his second booke of Geometricall observations, rules, and instruments”, o que remete para o título do segundo tratado.

Os capítulos seguintes do De regulis & instrumentis tratam da navegação astronómica, incluindo processos variados de determinação de coordenadas geográficas. É nestes capítulos que se encontram os interessantes comentários de Pedro Nunes sobre a obra de Copérnico, que foram objecto de pormenorizada análise por Henrique Leitão.[8]

Os últimos sete capítulos deste segundo tratado são dedicados ao problema do traçado de linhas de rumo sobre um globo. Este problema é mais difícil que o da construção da carta de latitudes crescidas, mas em termos matemáticos modernos pode ver-se que lhe é equivalente. Pedro Nunes apresenta um complicado processo, consistindo na resolução sequencial de vários triângulos esféricos, para obter pontos que estão aproximadamente sobre linhas de rumo na esfera. Este notável trabalho de Pedro Nunes foi estudado em pormenor por Raymond d’Hollander.[9] No fim da sua construção, na página 172, Pedro Nunes inclui uma tabela para apresentar os resultados dos cálculos para vários rumos. Esta tabela está vazia, dizendo Pedro Nunes na página anterior que o seu preenchimento pode ser levado a cabo por “studiosi adolescenti”. Vemos aqui o espírito matemático, depois de conceber um processo para a resolução de um problema, a desinteressar-se dos cálculos necessários à aplicação a casos concretos. Deve registar-se que tanto Gomes Teixeira como Raymond d’Hollander apontam a incorrecção de uma crítica de Simon Stevin à construção de Pedro Nunes, crítica essa que, infelizmente, ainda hoje é repetida por quem não conhece o texto original do matemático português.

Os dois tratados latinos de Pedro Nunes sobre náutica foram traduzidos para castelhano por Juan Cedillo Diaz, em manuscrito que se conserva na Biblioteca Nacional de Madrid.[10]

O terceiro texto das Opera é um curto ensaio, intitulado In Problema mechanicum Aristotelis de Motu nauigij ex remis, sobre a navegação a remos na Mecânica de Aristóteles. Este ensaio foi estudado num trabalho de Henrique Leitão.[11]

O quarto e último, In Theoricas Planetarum Georgii Purbachii annotationes aliquot, é uma longa compilação de anotações sobre as Theoricae Novae Planetarum do matemático austríaco quatrocentista Georg Peurbach.[12] Estas anotações têm sido repetidamente apontadas como das mais importantes feitas à influente obra de Peurbach.[13]

 

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A presente publicação faz-se por vários motivos. Com certeza que se pretende assinalar o 5º centenário do nascimento de Pedro Nunes. Mas há outras razões, mais de fundo. Como se sabe, o conteúdo das Petri Nonii Salaciensis Opera foi reproduzido num volume publicado em Coimbra em 1573, com outro título – aparecendo os dois primeiros tratados sob o título comum De arte atque ratione navigandi – e contendo também outras obras. De acordo com os critérios da publicação das obras completas de Pedro Nunes – agora retomada sob a égide da Academia das Ciências de Lisboa – será o texto deste outro volume o utilizado na futura publicação, uma vez que é a última versão editada em vida do autor. Não parece haver diferenças de peso entre os textos de 1566 e 1573 – para além da alteração do título, da correcção de gralhas e do redesenho de figuras – mas, seja como for, parece importante preservar e difundir o texto de 1566, que foi provavelmente a versão mais conhecida e lida na Europa. Acresce a isto a importância da data de publicação. Assim como os tratados de 1537, onde Pedro Nunes analisa e desenha pela primeira vez as linhas de rumo, antedatam o globo de Mercator de 1541, onde essas linhas aparecem, também esta obra de 1566 é anterior à famosa carta ad usum navigantium de Mercator, que é de 1569. É também, por exemplo, contemporânea de vários comentários de astrónomos alemães sobre Copérnico.[14]

 

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Não são conhecidas as razões que levaram Pedro Nunes a escolher especificamente a tipografia Officina Henricpetrina, de Basileia, para compor e imprimir as Petri Nonii Salaciensis Opera. Podemos apenas conjecturar que a escolha esteve relacionada com o prestígio dessa casa editora, fundada em 1488, e ligada à família Petri, de origem alemã, até meados do século XVII. A empresa ainda hoje existe em Basileia, embora com outro nome.

Durante o século XVI, a editora de Basileia publicou muitas obras de importantes autores, tanto na área das humanidades como de matemática, ciências e medicina. A título de exemplo, referimos que, na segunda metade do século, foram lá impressas várias obras de Cardano, incluindo uma edição da Ars Magna, em 1570. E é interessante que, no próprio ano de 1566 em que sairam as Petri Nonii Salaciensis Opera, tenha sido a mesma Officina Henricpetrina a publicar a segunda edição do De revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico, contendo a famosa Narratio prima de Georg Rheticus.

As Petri Nonii Salaciensis Opera são um volume de 304×205mm, com 308 páginas mais 16 extra-numeração, incluindo o frontispício. Neste observa-se o conhecido selo da editora, ainda hoje usado, que ilustra uma passagem do Livro de Jeremias.[15] Na página 307 encontra-se o cólofon: “Basileae, Ex Officina Henricpetrina, Anno M. D. LXVI, Mense Septembri.”

Facto a assinalar é que os exemplares conhecidos desta edição de 1566 não são todos iguais. De facto, alguns deles incluem quatro densas páginas de erratas redigidas pelo autor para assinalar incorrecções no texto e nas legendas das figuras.[16] Isto mostra que Pedro Nunes não teve oportunidade de corrigir provas do texto composto na tipografia de Basileia, mas teve acesso às páginas impressas a tempo de elaborar as referidas erratas, que foram incluídas só em parte da tiragem, uma vez que existem exemplares das Opera sem elas.[17] Este curioso facto contribui para perceber o que levou à reedição dos trabalhos contidos nas Opera em Coimbra, sete anos depois, com os erros corrigidos e também as figuras redesenhadas.[18]

O exemplar das Petri Nonii Salaciensis Opera utilizado para a presente edição facsimile pertence à Biblioteca Matemática da Universidade de Coimbra. Como se observa numa inscrição no frontispício, fez parte da grande livraria do Mosteiro de Santa Cruz, extinta e dispersa na década de 30 do século XIX. Dele consta uma referência no monumental catálogo dessa biblioteca elaborado por D. Pedro da Encarnação no século XVIII.[19] O volume veio mais tarde a pertencer à biblioteca particular de Luciano Pereira da Silva, professor da Universidade de Coimbra, um dos principais estudiosos de Pedro Nunes, e a quem se ficou devendo o esclarecimento de importantes questões biobibliográficas relativas ao matemático. A biblioteca de Luciano Pereira da Silva encontra-se hoje na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

O exemplar mantém-se em bom estado, apresentando a encadernação original em pergaminho, e contém as erratas acima referidas, o que mostra ter feito parte da tiragem “completa”. Possui algumas notas e ilustrações manuscritas à margem, presumivelmente do século XVI. Há acrescentos manuscritos às erratas, que podem ser do próprio autor, e na mesma caligrafia que as anotações à margem. Observa-se a introdução ao longo do texto, a tinta azul, de correcções indicadas nas erratas. Estas correcções são quase certamente do século XX.



[1] O pouco que se sabe encontra-se em depoimentos à Inquisição, já no século XVII, de dois netos de Pedro Nunes.

[2] Uma explicação para esta falta de documentos reside no triste destino do espólio de Pedro Nunes, disperso pelos herdeiros em clima de total desinteresse. Ver a este respeito Joaquim de Carvalho, prefácio a Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar, Coimbra, 1952.

[3] Ocupa as páginas 13 a 189 das Petri Nonii Salaciensis Opera.

[4] Matematicamente, isto corresponde a dizer que, se o paralelo central tiver latitude j, os graus de longitude na quadrícula devem vir multiplicados pelo factor cos j, ou, o que vai dar ao mesmo, os graus de latitude devem vir multiplicados pelo factor sec j. Pedro Nunes dá vários exemplos de situações deste tipo.

[5] Francisco Gomes Teixeira, Elogio Histórico de Pedro Nunes, Panegíricos e Conferências, Coimbra, 1925. Este texto é retomado na sua História das Matemáticas em Portugal, Lisboa, 1934.

[6] A. E. Nordenskiöld, Facsimile Atlas to the Early History of Cartography, Estocolmo, 1889.

[7] Edward Wright, Certaine Errors in Navigation, Londres, 1599.

[8] Henrique Leitão, Uma nota sobre Pedro Nunes e Copérnico, Gazeta de Matemática, 143, p. 60-78, 2002.

[9] Raymond d’Hollander, Historique de la loxodromie, Mare Liberum, 1, p. 29-69, 1990.

[10] Los dos libros de la arte de nabegar, de Pº Núñez de Saá, traducidos de latin en Castellano, por el doctor Sñ. Cedillo Diaz.

[11] Henrique Leitão, O Comentário de Pedro Nunes à Navegação a Remos, Lisboa, Comissão Cultural de Marinha, 2002.

[12] Recorde-se que uma tradução portuguesa de parte dessa obra estava incluída no Tratado da Sphera, de 1537.

[13] Ver, por exemplo, C. D. Hellman e N. M. Swerdlow, Georg Peurbach, Biographical Dictionary of Mathematicians, vol. 4, New York, 1991. Neste artigo, ao listarem-se as traduções da obra de Peurbach, não se refere a tradução de Pedro Nunes de 1537.

[14] Henrique Leitão, Uma nota sobre Pedro Nunes e Copérnico.

[15] “Não se assemelham ao fogo as minhas palavras como um martelo que tritura a rocha?” (Jeremias, 23, 29)

[16] É por uma indicação de Pedro Nunes nas erratas que conhecemos o seu ano de nascimento. Na primeira linha da página 209, na terceira proposição da segunda anotação sobre o Sol, lê-se: “Exempli gratia, sit anno Domini 1592, quo ego natus sum (...)”. E na errata: “Pa.209.li.I.1592.le.1502.”

[17] A capitular com que se iniciam as erratas, a mancha tipográfica das quatro páginas e o tipo de letra em que estão compostas, são diferentes dos usados no resto do texto. Também o papel é ligeiramente diferente.

[18] António Mariz, tipógrafo da Universidade de Coimbra responsável pela edição de 1573, refere-se de forma muito crítica, a abrir o volume, aos erros da edição anterior.

[19] Ver J. M. Teixeira de Carvalho, A Livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Coimbra, 1921.