A Matemática das coisas, de Nuno Crato
João Filipe Queiró
Boletim da SPM nº 59, p. 65-68, Outubro 2008
Recensão do livro A Matemática das coisas, de Nuno
Crato
Temas de Matemática, 6 - SPM/Gradiva 2008
Qual é a primeira, a principal coisa que se espera de alguém que
faz uma recensão de um livro? Que nos diga se vale a pena
comprá-lo. Para simplificar, eu poderia terminar aqui e responder
já à pergunta: vale, sim, vale muito a pena.
Mas também se
espera que alguma coisa seja dita sobre o livro e sobre o autor,
que permita uma justificação, ainda que sumária, daquela
recomendação.
*
Sobre o
livro, direi que o título é muito sugestivo do conteúdo. O que o
autor faz, em capítulos muito curtos (45 ao todo), é dar exemplos
da presença da Matemática em “coisas” da vida corrente, da vida de
todos os dias.
Esses exemplos,
várias vezes, são surpreendentes e inesperados, porque tal
presença é nesses casos invisível. São situações em que à partida
não ocorre que a Matemática tenha um papel tão central.
Esta é portanto
uma primeira razão para comprar o livro.
Outra é
a variedade dos exemplos. Há de tudo, desde temas clássicos até
questões do quotidiano e da actualidade: cortar bolos, dar nós de
gravata e nos atacadores de sapatos, a forma do papel A4,
geografia e astronomia, comunicações secretas, biologia, os
automóveis no trânsito, o QI, as eleições, a arte...
Quem lê este livro fica com várias impressões. Uma das dominantes
é a da presença da Matemática em imensos campos da vida, da
actividade e do pensamento humanos. Nesse sentido, o livro cumpre
uma relevante função, que é a de mostrar como a Matemática está
intrinsecamente ligada à cultura, como é ela própria cultura. Isto
é importante até para quem seja matemático profissional.
A
variedade dos exemplos serve também para ilustrar a variedade da
própria Matemática. Quem julgar a Matemática a partir de uma
experiência limitada dela pode ter a ideia de que esta ciência
deve ser uma espécie de tabuada cada vez mais complicada, e o
estudo de figuras cada vez mais torcidas. O livro mostra que isso
não é assim. A partir de exemplos de aplicação, sem entrar pelos
capítulos mais teóricos, vê-se que a Matemática é muito variada, e
que no seu cerne está sobretudo o raciocínio lógico.
Outra
característica marcante do livro é o estilo de redacção. Não há,
ao longo das suas cerca de 250 páginas, uma única fórmula. Isto é
obra, num livro de Matemática.
O autor
explica, dá exemplos, mas nunca entra em fórmulas.
Qualquer leitor percebe que, se quiser explorar
melhor um assunto dos tratados no livro, provavelmente não vai
poder fugir às fórmulas. Por trás de cada uma destas pequenas
histórias está pensamento matemático real, lógica e raciocínios
correctos. Mas o principal já lá está, numa linguagem acessível
mas sem faltas ao rigor. O autor simplifica, como é inevitável,
mas conta sempre o essencial da história.
Este é
o dilema clássico do cientista divulgador: se inclui pormenores
técnicos a mais, como as exigências da profissão parecem impor,
pode perder muito do seu público; se os omite, não está a contar a
história toda, e corre o risco de deformar o próprio objecto do
seu discurso. Nuno Crato domina as regras do género e resolve o
dilema especialmente bem, se pensarmos no vasto público leitor a
que se dirige.
Cada
capítulo é uma mini-obra-de-arte de escrita. O assunto é
apresentado, há referências a uma questão do dia-a-dia, pode haver
uma comparação ou uma metáfora, e depois apresenta-se a solução do
problema em causa, ou pelo menos o estado actual da investigação
sobre ele. E frequentemente termina-se com um regresso ao
princípio, o que é sinal de bom gosto no plano literário.
Tudo
isto numa linguagem simples, acessível, que qualquer pessoa
entende. Quem deixar de comprar este livro porque ele tem a
palavra “Matemática” no título está perder uma boa oportunidade de
se reconciliar com a Matemática.
Dois
exemplos:
Num
capítulo sobre o GPS, Nuno Crato, para explicar como o sistema
funciona, pede ao leitor que se imagine perdido no Alentejo, mas
conseguindo ouvir os sinos das igrejas de duas povoações a alguns
quilómetros dali. Descreve a seguir como, com esta informação, o
leitor pode identificar a sua posição, e daqui parte para a
descrição do GPS. O capítulo termina assim: “O GPS é
um sucesso espantoso da ciência e da tecnologia modernas. O seu
princípio básico, contudo, é tão simples e belo como o som dos
sinos que ecoam na planície alentejana.”
Outro
capítulo, sobre os modernos sistemas de criptografia de chave
pública, começa com uma situação que ajuda a perceber a explicação
posterior: “Alice e Bob vivem isolados e apenas podem
comunicar através do correio. Mas sabem que o carteiro lhes lê
todas as cartas. Alice tem uma mensagem para Bob e não quer que
ela seja lida. Que pode fazer? Já pensou em fazer-lhe chegar um
cofre com a mensagem fechado a cadeado. Mas como lhe fará chegar
a chave? Não pode enviar-lha dentro do cofre, pois assim Bob não
o poderá abrir. Depois de muito pensar, tem uma ideia. Envia-lhe
o cofre fechado com um cadeado. Sabe que Bob é esperto e acabará
por perceber a sua ideia. Com mais umas voltas do correio e sem
nunca terem trocado chaves, a mensagem chega ao destinatário,
que abre o cofre e a lê. Como é que o leitor acha que resolveram
o problema? Se gosta de desafios lógicos, pare aqui e pense um
bocado. É simples... depois de ser descoberto. Bob recebe o
cofre e fecha-o com um outro cadeado, de que tem a chave.
Devolve o cofre a Alice por correio, desta vez fechado com os
dois cadeados. Esta remove o seu cadeado, utilizando a chave em
seu poder, e faz seguir de novo o cofre por correio. Bob, quando
o recebe, apenas tem que utilizar a chave do seu cadeado para
abrir o cofre e ler a mensagem. O carteiro fica a ver navios.”
Disse
há pouco que o livro não tem uma única fórmula. Não é verdade: tem
exactamente uma (exceptuando pequenas expressões em figuras e
extratextos), mas nesse caso era difícil fugir-lhe, porque todo o
capítulo lhe é dedicado. O título do capítulo – “A mais bela” – dá
uma ideia do seu objecto, e é ocasião para uma breve reflexão
sobre a beleza em Matemática.
*
Sobre o
autor, pouco haverá a dizer, porque muitos dos leitores já
conhecerão Nuno Crato pelas suas crónicas semanais de divulgação
no Expresso, que estiveram aliás na origem de
muitos dos textos deste livro.
Mas eu
gostaria de referir outro aspecto que também lhe trouxe
notoriedade: as suas intervenções públicas sobre questões
educativas, culminando no livro “O eduquês em discurso
directo”.
Quem
acompanha as controvérsias sobre o “eduquês”, e as posições de
Nuno Crato, pode legitimamente interrogar-se sobre se se trata da
mesma pessoa que o autor do livro de que estamos a falar.
Não tem
Nuno Crato criticado o uso excessivo, no ensino da Matemática, de
“situações da vida real”, uso baseado na ideia da chamada
“aprendizagem em contexto”? Não tem ele combatido pela
aprendizagem na Escola das técnicas matemáticas básicas, pelo não
desprezo do poder da abstracção?
Sim, e
com mais autoridade o faz, precisamente pela sua paixão pela
comunicação, em tantos contextos e tão interessantes, da
importância essencial da Matemática nas coisas da vida. Se Nuno
Crato, como matemático, não fizesse mais do que investigações
avançadas na sua área de especialidade, poderia haver quem
levantasse a suspeita de, possivelmente, ele estar a transpor de
forma abusiva a sua visão profissional da Matemática para o
terreno da Educação. Mas não. Os argumentos de Nuno Crato sobre
vários erros que se cometem no ensino da Matemática pelo menos
dessa suspeita estão livres. Não se trata de desprezar a
realidade, as aplicações e as motivações no ensino da Matemática.
Os argumentos são outros, e são muito razoáveis. Em matéria de
Educação, Nuno Crato é um moderado que, serenamente, denuncia
extremismos com consequências potencialmente graves. Mas esse é
outro assunto.
*
Para
terminar, resta-me dizer que um dos meus capítulos favoritos deste
livro é o sétimo, intitulado “A outra faixa vai sempre mais
depressa”. Trata-se da referência a um estudo matemático daquela
realidade que todos tão bem conhecemos quando circulamos de
automóvel, em hora de ponta, numa via com duas faixas no mesmo
sentido: parece-nos sempre que estamos na fila errada, que a outra
fila vai mais depressa que a nossa. Tentamos mudar para a outra
fila, e quando conseguimos... inevitavelmente parece-nos que a
fila que acabámos de deixar passou a andar mais depressa do que
aquela onde agora nos encontramos. A análise destas percepções é
um belo exemplo de descrição clara de uma situação da vida de
todos os dias.
Deixo a
Nuno Crato a sugestão para uma crónica sobre outro problema de
trânsito que me preocupa todos os dias: porque é que, quando nos
aproximamos de um semáforo, nos parece – sobretudo quando estamos
com pressa – que a probabilidade de ele estar vermelho é muito
superior à probabilidade de ele estar verde?