Entrevista
a João Queiró, professor do Departamento de
Matemática da Universidade de Coimbra
Carlo Santos -
Diário de Coimbra, 14 de Maio de 2007, p. 4-5
(texto conforme revisão minha, feita de acordo com
o jornalista e enviada ao jornal quatro semanas
antes da publicação; o texto que foi publicado é
diferente numa frase, pelo menos)
Diário
de Coimbra – A Matemática é daquelas áreas que as
pessoas quase parecem ter orgulho em dizer que não
gostam ou não percebem.
João Filipe Queiró
– É um cliché associado à Matemática dizer isso. Mas
eu nunca encontrei ninguém que o afirmasse
explicitamente. Coisa diferente é saber se as
pessoas têm grande gosto pela Matemática, ou se
tiveram grande sucesso. Não acho que a Matemática
tenha um lugar especial nos problemas do sistema
educativo.
DC
– É das disciplinas onde, todos os anos, há piores
resultados.
JFQ – Mas tratar a
Matemática à parte, como se fosse um assunto
extraterrestre, tem o efeito de esconder que vários
dos problemas que se prendem com a disciplina
resultam de problemas gerais do sistema educativo. A
especificidade da Matemática é ser a construção de
um edifício. É o seu carácter sequencial,
cumulativo.
DC
– Ou seja, exige um esforço diário do aluno.
JFQ – Todas exigem,
mas este carácter cumulativo é mais pronunciado na
Matemática do que noutras disciplinas. Uma falha
localizada, num certo capítulo da História ou da
Geografia, ou de uma disciplina de Ciências
Naturais, não prejudica tanto o edifício.
DC
– Esse mal resulta de uma postura cultural, de
evitar o que é difícil e dá trabalho, ou também se
pode apontar o dedo ao ensino: aos professores?
JFQ – Há quem o
diga, que é uma questão cultural, se calhar até
genética. Mas é especulativo ir por esse caminho.
Prefiro falar de aspectos sobre os quais se poderia
intervir. E eu ponho à cabeça o ambiente geral no
qual a escola está imersa. A indisciplina escolar é
um fenómeno grave que todos os professores observam
nas escolas portuguesas, ao qual não é dado o devido
relevo, e que é tudo menos conducente a um estudo e
uma aprendizagem serenas.
DC
– Mas isso para todas as disciplinas.
JFQ – Eu prefiro
concentrar-me nos problemas gerais, para não dizer
que a Matemática é um problema específico. A
indisciplina resulta da desvalorização do
conhecimento que há em Portugal. Há estudos que
sugerem que os portugueses não sabem muito e que não
querem saber muito. Depois, a timidez educativa em
Portugal, a dúvida que já se estendeu aos próprios
professores sobre o interesse disto tudo... Porquê
tentar impor seja o que for? Ensinar qualquer coisa
é uma imposição.
DC
– Concorda com a teoria de que não se deve ser
demasiado exaustivo nas avaliações, porque o
estudante tem de ter gosto para aprender?
JFQ – Há que
perceber que a escola, com o que significa de pôr
duas ou três dezenas de jovens numa sala, com um
adulto a falar de assuntos que não são da
experiência directa desses jovens, tem algo de
anti-natural. Uma criança “posta à solta”, se lhe
derem a escolher entre um campo com uma bola, e uma
sala onde vai estar sentada uma hora a ouvir um
adulto, essa criança não hesita.
DC
– Mas a vida é assim. As crianças têm de aprender
coisas de que não gostam.
JFQ – Essa frase é
chave. A vida é assim, é feita de constrangimentos,
de coisas que, de vez em quando, nós fazemos
contrariados. Mas há algum pensamento que, face às
dificuldades escolares, acha que a questão do gosto
e das tendências da criança deve prevalecer sobre o
resto. O que é muito mau.
DC
– Não será perverso?
JFQ – Pode ser
muito perverso. Mesmo que fique na sala de aula,
pode representar que a criança não aprenda. Muitas
vezes, estas coisas, de dizer que o aluno deve
chegar lá por si, parecem plausíveis, mas, depois, a
aplicação disso na prática tem efeitos terríveis, de
uma enorme dissolução de ambientes de aprendizagem.
Outra dificuldade grande são os professores.
Coexistem os bem formados, em boas universidades,
sérias, com outros, formados por instituições que
não têm os mesmos padrões. Um problema que existe,
seguramente, há 20 anos em Portugal é a falta de
vigilância e controlo do ensino superior. No caso
dos professores, o principal empregador é o
Ministério da Educação, que recruta pela nota de
licenciatura. Se a faculdade de dar a nota se
entrega a instituições não credíveis, isto tem os
efeitos que se pode imaginar e que aconteceram. Ao
longo dos anos 90, e princípios já desta década, o
Estado contratou muitos professores com uma formação
deficiente.
DC
– Daí que se venha, agora, propor um exame de acesso
à carreira.
JFQ – Não só.
Também esta agência de acreditação e avaliação do
ensino superior, que vem regular a qualidade de
todos os cursos.
DC
– Mas deve, ou não, apontar-se o dedo ao ensino,
pelo insucesso na Matemática?
JFQ – Há más
orientações nos programas e nas metodologias para os
cumprir. Um constituinte essencial da Matemática é o
rigor: do raciocínio, da prova, da dedução. E isso
tem sido progressivamente desvalorizado, o que tem
um efeito dissolvente, porque a Matemática não é uma
lista de factos desconexos.
DC
– Por a Matemática ser assim, não se justificaria
torná-la obrigatória em todos os currículos
escolares e não apenas nos ramos ditos científicos?
JFQ – Essa pergunta
leva a uma questão política muito difícil, que é a
de saber quais são as disciplinas que todos devem
estudar e até onde. Isto tem provocado enormes
tensões no sistema educativo português. Há quem
sustente que no secundário toda a gente deve ter
Matemática. E há quem ache isso má ideia, até porque
há muitos alunos que escolhem a sua via pelo simples
facto de não haver lá Matemática.
DC
– Não faria sentido, por isso mesmo, insistir na
disciplina até ao final do secundário? Para que as
escolhas no ensino superior não fossem de recurso e
dessem mais saídas profissionais.
JFQ – Há uma quebra
global nacional de procura dos cursos de ciências e
engenharias, porque a base de recrutamento para
esses cursos é, normalmente, a Matemática, a Física
e a Química. Existem instituições de ensino superior
em Portugal que, por causa disto, retiram a
Matemática das disciplinas de acesso. De novo,
Estado e governos vêem a situação e não fazem nada.
Parece que se quer premiar esta “esperteza”. Quem
sai prejudicado, em primeiro lugar, é o país. Em
segundo, as instituições que procuram ser sérias.
DC
– Tem havido uma quebra drástica na procura da
licenciatura em Matemática.
JFQ – Em 2006,
entraram em todos os cursos de Matemática em
Portugal cerca de 200 estudantes. Menos do que
entram numa única grande universidade europeia. Além
do problema da base de recrutamento, isto tem outra
causa, que é a percepção pública de que um curso de
Matemática só serve para formar professores.
DC
– E como já não há lugar para professores...
JFQ – ...não vão
para esses cursos, que se pensa que só têm essa
saída. Ora, não é verdade. Este Departamento em
particular tem uma política de aproximação ao
emprego empresarial de matemáticos. Temos uma rede
de contactos e estágios e neste momento já não temos
diplomados para toda a procura por parte das
empresas.
DC
– Mas para que querem as empresas os licenciados em
Matemática?
JFQ – O que é
apreciado pelos empregadores, e que lhes é útil na
vida profissional, é, antes de mais, o rigor do
raciocínio. A capacidade de abstracção, de pensar
logicamente, é o que procuram os bancos, as
companhias de seguros, as telecomunicações, as
empresas de serviços no campo das finanças, ou da
informática. Se for espalhada, na opinião pública,
esta ideia, de que a Matemática serve para muitas
coisas, isso pode permitir inverter uma tendência,
que deriva do tal conceito de que só serve para ser
professor de Matemática.
DC
– A atribuição do Prémio Universidade de Coimbra a
Marcelo Viana teve, também, a intenção de despertar
as consciências para a importância da Matemática e,
simultaneamente, de procurar atrair mais jovens para
a disciplina?
JFQ – Obviamente
que a candidatura, apresentada pelo Centro de
Matemática deste Departamento, defende-se a si
própria. Marcelo Viana é um matemático de grande
categoria internacional. Agora, o senhor reitor
sublinhou esse aspecto, dizendo que estava
satisfeito por o Prémio ser dado à Matemática, um
ano depois de ter sido dado a uma professora de
Estudos Clássicos, pois são duas áreas que têm
problemas de pouca procura. Sobretudo, permitiu,
pelo interesse dos media à volta do Prémio, chamar a
atenção para a Matemática pelas melhores razões e
não pelas piores.
DC
– Há concursos, olimpíadas, software para utilizar
na aula, um plano de acção, deste Governo, para o
sucesso na Matemática. O que é que falta fazer para
que os resultados não continuem por baixo?
JFQ – Entendo que
há que intervir, sobretudo, no reforço das escolas
como instituições, tornando-as sítios de disciplina.
Quando, todos os anos, se fazem os rankings,
normalmente estão no topo colégios privados de
Lisboa. É certo que os rankings são sempre um pouco
enganadores, porque as bases de recrutamento desses
colégios não são propriamente uma secção
representativa da população portuguesa. Mas uma
coisa é certa: o ambiente interno desses colégios
não é comparável com o ambiente das escolas
públicas, mesmo daquelas cuja população é
socialmente comparável.
DC
– Está a dizer que falta disciplina na maior parte
das escolas da rede pública?
JFQ – Há nesses
colégios lideranças muito fortes e um sentido de
projecto educativo muito claro, que tende a faltar
na escola pública. Não é uma disciplina de quartel:
é um ambiente em que os professores se sentem
confortáveis, numa estrutura que não os desautoriza,
que lhes dá autoridade para conduzirem as
actividades na sala de aula. E não me venham dizer
que é impossível transpor isto para a escola
pública. Se fosse, mais valia fechar a escola
pública. Deixar a escola pública à mercê de um
pensamento mole, que implica a desresponsabilização
de toda a gente, em que os professores se sentem
constantemente desautorizados, não é aceitável.
DC
– Concorda com os rankings?
JFQ – Quando
começar a haver um passado com resultados dos exames
do 3.º ciclo, vai ser possível comparar a
performance de um aluno no exame do 9.º ano com a do
exame do 12.º. Pode ser um ranking mais interessante
do que os actuais, ao ordenar as escolas pelo seu
valor acrescentado. O que é que tem mais valor?
Passar um aluno de 85 para 90%, ou passar um de 50
para 80%? Aí estar-se-á a pôr o foco onde deve ser
posto. Os rankings fazem confusão a muita gente,
porque são extremamente simplificadores. Mas a
alternativa, de esconder a informação, não ajudaria
a melhorar o sistema.