Universidade de Coimbra
nº 1 - II Série, p. 109-111, January-June 2005
A primeira observação é de natureza quantitativa. Nunca em Portugal houve tantos matemáticos activos na investigação, tantos professores de Matemática a todos os níveis, tantos cientistas, engenheiros e técnicos aplicando a Matemática das mais variadas formas. Olhando só para a investigação, o número de publicações em revistas especializadas cresceu extraordinariamente nas últimas décadas. Há hoje muitos exemplos de matemáticos portugueses convidados para fazer conferências em congressos internacionais e universidades estrangeiras, matemáticos portugueses que participam em projectos internacionais de investigação, matemáticos portugueses que pertencem aos conselhos editoriais de revistas internacionais da especialidade.
Não possuo dados estatísticos precisos, mas esta realidade é incontroversa. Qual a explicação para ela? Parece-me claro que o principal factor causal a considerar é o crescimento muito rápido do sistema de ensino, e dentro dele o do ensino superior, associado ao desenvolvimento económico. Os dados sobre este crescimento são públicos, e revelam que a maior expansão tem início na década de 60 do século XX. O crescimento do sistema de ensino desde então criou necessidades de pessoal docente, e estas por sua vez levaram ao desenvolvimento quantitativo das instituições responsáveis pela sua formação. De facto, em Portugal sempre os matemáticos, quase sem excepção, foram professores, e professores universitários ou de escolas superiores, a começar pelo maior dentre eles, Pedro Nunes (1502-1578). Assim sendo, o número de matemáticos no nosso país sempre tendeu a acompanhar o desenvolvimento do sistema de ensino, e em particular do ensino superior.
Estas observações são relevantes, porque permitem formar uma ideia mais precisa sobre a situação actual e as perspectivas de desenvolvimento para o futuro. De facto, a fase da expansão rápida do sistema de ensino, a todos os níveis, pode considerar-se, grosso modo, terminada, mesmo que se admitam ainda aumentos das taxas de frequência no (actualmente chamado) Ensino Secundário e no ensino superior. Há portanto uma mudança clara da situação em relação às últimas décadas, e tal mudança levanta interrogações novas sobre o desenvolvimento futuro da Matemática em Portugal.
Em relação aos programas, as mudanças e revisões têm sido constantes, provavelmente sem a necessária avaliação. Quanto aos manuais, não há uma política oficial de vigilância da sua qualidade. E na questão dos professores foram cometidos muitos erros, que se traduziram, também aqui, em graves problemas de qualidade. Não existem, por exemplo, regras claras e gerais que enquadrem os programas de formação de professores, bem como as instituições que proporcionam esses programas. O sistema de contratação de professores pelo Estado não induz a qualidade, bem pelo contrário, porque considera igualmente credíveis todos os cursos de formação e todas as instituições e corpos docentes. Para efeitos de contratação, o Estado ordena os candidatos pela sua nota de licenciatura, com as consequências fáceis de imaginar e que são acentuadas pela irresponsabilidade de várias instituições. Finalmente, o Estado mantém, e nos últimos anos até agravou, um regime especial de contratação de professores (sobretudo para as disciplinas de Matemática e Português, que nos discursos de ocasião são sempre apontadas como prioritárias) que só se justificaria numa situação de emergência por falta de professores, regime esse em que se exige muito pouca formação científica aos candidatos à docência. A manutenção de tal regime especial – que já nada justifica – é inexplicável face ao aparente empenho na qualidade da educação manifestado nos discursos políticos. É pena que a opinião pública não acompanhe estes assuntos com suficiente atenção.
Ainda no que se refere ao Básico e Secundário, deve mencionar-se que desde 1980 se realizam em Portugal competições de Matemática, com o nome de “Olimpíadas”, destinadas a jovens. Estas iniciativas envolvem dezenas de milhares de jovens todos os anos, podendo ser consideradas a mais importante actividade científica destinada a jovens que tem lugar no nosso país. Nas Olimpíadas de Matemática têm-se revelado vocações matemáticas e científicas traduzidas já, em alguns casos, em carreiras académicas e de investigação.
Os
vencedores
das
Olimpíadas que são alunos do Ensino Secundário participam desde
o princípio da década de 90 em competições análogas a nível
internacional. Os resultados portugueses nessas competições não
têm sido muito bons, o que pode ser explicado de várias formas.
As provas têm um nível de dificuldade muito elevado. Em muitos
países a participação em tais competições é encarada de modo
quase “profissional”, com a selecção e a preparação dos
concorrentes a ter início anos antes, o que contrasta com o
espírito com que as Olimpíadas decorrem
Há absoluta necessidade de, por sua vez, as políticas de avaliação de instituições e cursos do ensino superior se tornarem mais incisivas. Nada justifica a criação ou manutenção indiscriminada de escolas superiores, sem atenção à necessidade imperiosa de qualquer instituição de ensino superior possuir corpo docente próprio com elevados níveis de qualificação. É urgente restringir a possibilidade de atribuir os sucessivos graus académicos apenas às instituições cuja qualidade científica o permita, independentemente da sua designação ou estatuto. Deve ser criado um órgão nacional para esse fim específico, que impeça a existência de cursos e graus sem qualidade. No plano do ensino superior em Portugal, a principal preocupação para o presente e o futuro deve ser a da qualidade.
O fim da expansão rápida do sistema de ensino superior traz consigo problemas novos em certas instituições, como o risco de envelhecimento do pessoal docente e investigador, por impossibilidade de substituição. Isto ameaça a necessária renovação e a manutenção de massas críticas nos grupos e centros de investigação. Por outro lado, quase nada foi feito nas últimas décadas, nos planos legislativo e administrativo, para induzir melhor distribuição dos recursos humanos e materiais pela rede de instituições de ensino superior, evitando irracionalidades, desperdícios e falta de qualidade. O Estado tem preferido uma política liberal de “autonomias”, com as instituições deixadas quase “independentes” e com a consagração de modelos de governo muito inadequados à missão científica do ensino superior. Esta política é acompanhada da pior das regulações, que é o estrangulamento financeiro indiscriminado quando há problemas orçamentais.
É óbvio que, numa época de extrema
especialização, há matemáticos que trabalham em problemas com
um sentido mais teórico e outros que trabalham em questões que
foram suscitadas por problemas práticos. Mas isto não
significa que a Matemática, mesmo em sentido lato, não seja
uma ciência una, que perderia, em todos os planos, com a
desvalorização de qualquer das suas componentes. Visões de
curto prazo, em busca de “rentabilidades” de ocasião, teriam,
como tiveram no passado, consequências muito negativas para o
capital científico do país.
É importante para Portugal manter e desenvolver competências matemáticas no maior número de áreas que for possível, seja em campos teóricos e abstractos seja em ligação com aplicações novas e próximas de desenvolvimentos tecnológicos. A Matemática é um continuum, que perde se for descurada a atenção às aplicações e aos problemas sempre novos que elas levantam, mas também se não se der importância aos progressos teóricos e à exigência intelectual que os acompanha. De resto, acontece vermos matemáticos com formação “pura” que vêm a ter intervenção em campos “aplicados”, e matemáticos vindos das “aplicações” que se interessam por questões mais teóricas e sistemáticas.
Outra questão interessante é a da invisibilidade da Matemática e da sua importância (mesmo nos produtos de tecnologia corrente), numa época de frivolidade e superficialidade informativa, em que tudo parece subordinar-se à divisa “o que não se vê não existe”. Tal como noutros países, também em Portugal estas tendências têm sido combatidas por um esforço de divulgação em publicações e palestras.