Para além da evolução do
número dos investigadores e estudiosos da Matemática a nível
superior em Portugal, uma segunda questão de fundo merece
atenção. Que áreas desta ciência foram e são cultivadas no nosso
país, como e porquê? Esta pergunta vai ao centro de uma
controvérsia antiga na ciência portuguesa, e particularmente
nítida no que respeita à Matemática, domínio mais que outros
atravessado pela suposta oposição "ciência pura" - "ciência
aplicada". No passado, desde o século XVI, é possível discernir
uma tendência nacional para o estudo de matérias vistas, em cada
momento, como correspondendo a necessidades concretas imediatas
do país. (O próprio Pedro Nunes, primeiro exemplo português de
cientista "puro", para quem as exigências de precisão e rigor
eram uma constante, tem grande parte da sua obra dedicada a
temas de cartografia, navegação e cosmografia.) E ainda hoje o
problema da existência ou não de "rumos" preferenciais para a
actividade científica em Portugal não é pacífico, esgrimindo-se
do lado das "aplicações" os argumentos da relevância e do temor
da subordinação a prioridades alheias, e do lado da ciência
"pura" ou "fundamental" a importância da manutenção de um clima
científico actualizado e não vinculado a realidades limitadas ou
contingentes.
Os matemáticos portugueses
neste século concentram-se nas universidades de Lisboa, Porto e
Coimbra e nas Escolas reunidas na Universidade Técnica de Lisboa
(I. S. Técnico, I. S. de Ciências Económicas e Financeiras, I.
S. de Agronomia). A figura dominante vem do século anterior: é Gomes
Teixeira (1851-1933). Analista de estilo clássico, manteve
inúmeros contactos internacionais e deixou uma importante obra
de investigador. Também como analista clássico se pode
classificar Vicente
Gonçalves (1896-1985), figura de intelectual austero que
durante seis décadas marcou o panorama matemático português.
Mais próximo da Física e dos seus aspectos matemáticos é Mira
Fernandes (1884-1958), com trabalhos sobre Geometria
Diferencial e Cálculo Tensorial. Dos matemáticos portugueses
nascidos neste século, o primeiro nome é Sebastião
e
Silva (1914-1972), analista da escola moderna e autor de
trabalhos com repercussão internacional em várias áreas. Outro
nome que atingiu relevo foi António Almeida Costa (1903-1978),
professor no Porto e, a partir de 1952, em Lisboa, que,
interessado inicialmente por temas de Física Teórica, passou,
por via da Teoria das Representações de Grupos, para a Álgebra
abstracta, campo em que deixou trabalho abundante. Para além da
obra pessoal, de Almeida Costa se pode dizer que deixou escola,
facto de assinalar num meio matemático tão rarefeito. A
inexistência de "escolas" é outro problema clássico da ciência
portuguesa, relacionado com o pequeno número, até há poucos
anos, de especialistas nas diversas áreas. Em relação aos
grandes vultos atrás mencionados, podem referir-se discípulos em
que tiveram influência. Vicente Gonçalves aconselhou, por
exemplo, o prematuramente desaparecido João Farinha (1910-1957)
nos seus estudos sobre fracções contínuas. Ruy Luís Gomes
(1905-1984) iniciou-se na Física Matemática no rasto de Mira
Fernandes, depois de estudar com Vicente Gonçalves. Os trabalhos
de Santos Guerreiro (1923-1987) sobre Teoria das Distribuições
surgiram na sequência das investigações de Sebastião e Silva.
Personalidade marcante em
Portugal, embora por curto período, foi António Aniceto Monteiro
(1907-1980). Regressado em 1936 de Paris, onde se doutorou com
Fréchet, desempenhou papel central na dinamização do ambiente
matemático português, encorajando jovens investigadores, como
Sebastião e Silva e Hugo Ribeiro (1910-1988). Colaborou na
criação da revista de investigação Portugaliae
Mathematica (1937) — publicação de características únicas
em Portugal e que continua a existir — e da revista de
divulgação Gazeta de Matemática (1940), e no
estabelecimento de Centros de Estudos Matemáticos em Lisboa
(1940) e no Porto (1941), com o apoio do Instituto para a Alta
Cultura. Sem posição no ensino oficial português, Monteiro
aceitou em 1945 um convite para leccionar no Brasil, passando à
Argentina em 1949. Em ambos os países teve acção científica de
relevo, construindo obra pessoal no campo da Álgebra e da
Lógica. Só em 1977 voltou a Portugal.
Entre outros matemáticos que
emigraram nos anos de 40 e 50, regressando só depois de 1974,
contaram-se o lógico Hugo Ribeiro, que, não vendo reconhecido
oficialmente o doutoramento obtido em 1946 em Zurique, se mudou
para os Estados Unidos da América, e o físico-matemático Ruy
Luís Gomes, que se doutorou em Coimbra e foi depois professor no
Porto,
À parte as grandes áreas
clássicas da Geometria, da Álgebra e da Análise (que aqui se
tomam em sentido amplo, de forma a englobar praticamente a
totalidade da Matemática "pura"), na segunda metade do século
começam a aparecer estudos de temas de Estatística, Análise
Numérica e Optimização, tanto com uma intenção prática dirigida
a questões concretas como com sentido teórico e sistemático.
Com o crescimento
exponencial do sistema universitário português que se inicia nos
fins dos anos 60, princípios dos anos 70, começa a tomar forma o
panorama matemático que hoje existe. Aumenta o número de
doutorados (muitos deles com o grau obtido fora do país), nascem
e consolidam-se grupos de especialistas com interesses afins,
diversificam-se as áreas, sobe o número de publicações originais
de investigação. A situação é diferente da da primeira metade do
século,
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