Minas: da prática à teoria
João Filipe Queiró
Boletim da SPM nº 30, p. 79-80, Dezembro 1994

Ensaio sobre as Minas, de José Anastácio da Cunha
(Leitura, introdução e notas de Maria Fernanda Estrada)
Arquivo Distrital de Braga / Universidade do Minho - Braga, 1994.
Preço: 1500$00 (1000$00 para sócios da SPM)


 
A historiografia portuguesa na área da Matemática, embora relativamente abundante, é algo desequilibrada, ressentindo-se da escassez de dados precisos sobre numerosos autores e largos períodos. Os trabalhos da maior parte dos matemáticos do nosso passado permanecem em quase total desconhecimento e mesmo a publicação, pela Academia das Ciências de Lisboa, das Obras do maior dentre eles — Pedro Nunes — está incompleta, interrompida há mais de 30 anos.

Neste contexto, a descoberta e a preparação para publicação do inédito Ensaio sobre as Minas de José Anastácio da Cunha (1744-1787) constituem um acontecimento relevante. Redigido quando o seu autor era oficial no regimento de artilharia aquartelado em Valença do Minho, foi este texto motivo para uma repreensão do Conde de Lippe — por se afastar dos manuais recomendados — logo corrigida por uma promoção.

Para além de documento associado, assim, a um curioso episódio da nossa história militar, este Ensaio, cuidadosamente prefaciado, transcrito e anotado pela Doutora Maria Fernanda Estrada, da Universidade do Minho, irá permitir um conhecimento mais profundo do pensamento matemático de José Anastácio da Cunha e da sua evolução, culminada mais tarde nos justamente célebres Principios Mathematicos. A Doutora Maria Fernanda Estrada assinala, em particular, uma interessantíssima “Preparação” sobre as cónicas, que parece conter uma abordagem digna de estudo pormenorizado.

A seguir a estas páginas sobre as cónicas, tem o texto três partes.

Na primeira, José Anastácio da Cunha tece várias considerações para justificar o facto de a explosão de uma mina produzir na terra uma escavação em forma de parabolóide (facto conhecido experimentalmente).

A segunda continua a discussão teórica do mesmo tipo de assuntos, agora remetendo para a obra The Attack and Defence of Fortified Places, do inglês John Muller (a edição utilizada, conforme demonstra Maria Fernanda Estrada, é a segunda, publicada em Londres em 1757).

A terceira parte, em que se segue Muller, consiste em regras e tabelas práticas sobre a utilização das minas, que são definidas no início: “Por Mina se entende uma passagem por baixo do chão até debaixo do lugar, que se quer fazer saltar, por meio de certa quantidade de pólvora, que se põe no fim da dita passagem.” A respeito desta parte diz Anastácio da Cunha: “As pessoas que não entendem Álgebra poderão fazer o seu estudo nesta terceira parte somente, e deixar as outras.”

Na “Instrução” inicial do Ensaio, Anastácio da Cunha afirma que (para além da “Preparação” sobre as cónicas) a primeira parte “é o que só posso chamar inteiramente meu neste papel.” Perto do fim escreve: “(...) em toda a parte prática deste papel [entenda-se: a terceira parte] não fiz mais do que copiar fielmente os Autores que cito.” Estas frases podem induzir em erro. Anastácio da Cunha anotou, corrigiu, acrescentou. Por exemplo, logo após a primeira frase de Muller, na segunda parte do Ensaio, lê-se: “Quão pouco exacto é este raciocínio! Quantas objecções tem contra si!” E seguem-se algumas dessas objecções. No fim da segunda parte expõe Anastácio da Cunha, por lhe parecer o texto sem isso incompleto, um método numérico de Daniel Bernoulli para achar raízes de equações polinomiais, acrescentando, em nota, uma demonstração que vai buscar a Newton. Após esta última surgem frases que os interessados na obra posterior de José Anastácio da Cunha hão-de achar saborosas: “Será necessário advertir os principiantes que este método só tem lugar quando estas séries são convergentes, isto é, tais que os seus termos vão diminuindo de sorte que já o 5º, 6º, 7º, 8º ou 9º seja tão pequeno que se possa deixar de fora no cálculo. Vg. no exemplo acima se supõe que já o termo em que x se acha elevado à 6ª potência é tão pequeno que não merece contar-se, e por conseguinte em todas as operações se deixa de fora, como também todos os mais em que x sobe a mais alta potência.”

A leitura do Ensaio é ocasião de mais uma vez tomarmos contacto com a escrita característica de José Anastácio da Cunha, precisa e incisiva, sem receio de criticar acremente outros autores que disso julga merecedores.

A edição deste Ensaio sobre as Minas pelo Arquivo Distrital de Braga / Universidade do Minho (nº 3 da sua colecção “Estudos e Manuscritos”) é digna e cuidadosa. A transcrição é feita pela Doutora Maria Fernanda Estrada de modo exemplar. Os lapsos tipográficos são raros. (Um deles faz com que, na introdução, a certo trabalho do autor desta recensão seja atribuída várias vezes a data de 1972. Devo confessar que há 22 anos ainda não começara o meu interesse pela figura de José Anastácio da Cunha. A data correcta é 1992.)

A publicação do Ensaio sobre as Minas de José Anastácio da Cunha é uma importante contribuição para a história positiva da matemática portuguesa. É este o caminho a seguir: edição (ou reedição) das obras dos nossos autores, de modo a ser possível o seu estudo e a sua integração nos respectivos contextos. As sínteses valorativas, por atraentes que nos pareçam, deixemo-las para mais tarde. Por enquanto, não há para elas matéria-prima bastante.