Agradeço o convite que o Conselho Nacional de Educação me dirigiu,
e saúdo a equipa que fez este trabalho. Felicito, também, o
Conselho pela iniciativa da condução deste estudo, que aborda um
tema que me parece muito importante e sobre o qual eu não conhecia
uma análise sistemática.
Sou professor de Matemática na Universidade de Coimbra, e o que
fiz, nas últimas décadas, foi ensinar Matemática a muitos milhares
de estudantes de Ciências e Engenharia. O olhar que aqui trago não
é, portanto, o de um especialista nas questões de psicologia, de
estudos vocacionais e motivacionais, mas o olhar do profissional
da Matemática e do ensino da Matemática. Estive também envolvido
no chamado ramo educacional e na questão da formação de
professores.
O que estas décadas me deram foi um olhar, possivelmente
reflectivo e reflector, sobre a envolvente destas questões. E é a
partir desse ponto de vista que vos quero falar.
O estudo e o tema do estudo parecem‑me muito importantes, dada a
situação, que já aqui foi descrita, de alguma crise, seja nos
ensinos básico e secundário, seja no ensino superior, no campo das
Ciências e das Engenharias: um diagnóstico, portanto, que está
feito, não só estatístico mas também qualitativo.
Sem ser especialista, esta questão da motivação já me tinha
ocorrido. Há uns anos, num encontro que houve na Universidade do
Algarve, o Forum Internacional dos Investigadores Portugueses,
houve uma mesa-redonda sobre o Ensino das Ciências na
Universidade; não é exactamente o mesmo tema, mas tem alguma
intersecção. Convidaram‑me para participar nessa mesa-redonda, e
escrevi um texto, correspondente à minha intervenção, que veio a
ser publicado na Gazeta de Física. Nesse texto, falando sobre os
diagnósticos e os problemas que se põem no ensino das Ciências na
universidade, escrevi algo sobre o problema da motivação: “
Creio
que é possível detectar um fenómeno de quebra de motivação nos
estudantes dos cursos de Ciências e Engenharia em Portugal. Esta
questão é mais subjectiva. Não conheço estudos sobre isto.
[Agora já conheço.]
Pode haver aqui um erro de percepção da
minha parte, e não haver um problema verdadeiramente novo. Mas
suspeito que não é esse o caso, e que há efectivamente um
crescente problema de desmotivação e de alienação estudantil,
sobretudo nas áreas das Ciências exactas e de algumas
Engenharias.” Portanto, referia-me à questão da motivação
dos estudantes já no ensino superior.
O presente estudo tem duas partes. A segunda refere‑se ao mesmo
problema motivacional ou vocacional nos ensinos básico e
secundário. Como os autores disseram, ele tem um carácter
exploratório, de alguma forma pioneiro, e tem um elevado grau de
formalização académica, um elevado grau de abstracção. E isso
leva‑me a dizer – sem ser uma crítica negativa – que talvez
houvesse vantagem, quer seja em momentos posteriores quer seja em
versões diferentes do mesmo estudo, em traduzi-lo numa linguagem
que tornasse mais claro pelo menos o lado propositivo, o lado de
apresentação de propostas para abordar os problemas
diagnosticados.
O estudo tem informações e análises muito interessantes e que não
me parecem inesperadas, em geral. Se os resultados e conclusões
não são muito surpreendentes, estão, agora, suportados por
estatísticas. E o estudo tem o grande mérito de fazer uma listagem
e uma sistematização dos factores que condicionam as escolhas de
cursos superiores por parte dos estudantes do ensino secundário.
Sobre a questão da motivação na escolha do curso superior, já
foram elencados muitos factores, analisados e hierarquizados, e no
caso das Ciências e das Tecnologias, tal como nos outros, põe‑se,
como é óbvio, a questão dos empregos futuros, que também foi
analisada.
Há uma segunda questão, que referi na minha comunicação em Faro,
que é o “
para quê?”, não só na questão do
emprego mas, também, “
para quê estudar Ciência e
Tecnologia em Portugal?” Isto tem que ver com o próprio
lugar de Portugal na economia internacional.
Escrevi então o que passo a citar: “
O contexto português, por
outro lado, comporta um perigo real a este respeito: para quê
estudar Ciência e Tecnologia, se todos os produtos tecnológicos
mais correntes, de grande consumo e gratificação imediata, nos
chegam feitos, completos e baratos? Para quê então Ciências e
Engenharias em Portugal, para quê o esforço, o estudo, a
reflexão? Não será isso só para os outros?”
No contexto da divisão internacional do trabalho, nós podemos
ficar por exemplo com o turismo, mas não necessariamente com
isto. Depois fazia um comentário meio jocoso: “
Já Eça
de Queirós observava que Portugal importa tudo. Dizia ele – ou
mais precisamente um personagem criado por ele – que a
civilização chega cá em segunda mão, não foi feita para nós,
fica-nos curta nas mangas...”
Há, no entanto, aqui um problema que parece real. Os números
citados pelo Senhor Secretário de Estado da Ciência e Tecnologia
são muito impressionantes, quanto à diferença na percentagem dos
jovens, no grupo etário entre os 20 e os 29 anos, licenciados
nestas áreas em Portugal, quando comparados com a União Europeia
e, sobretudo, com alguns países da União Europeia, por exemplo com
a Irlanda.
A Irlanda, como sabem, sofreu nas últimas duas décadas uma
aceleração brutal na implantação de unidades industriais de alta
tecnologia, que em Portugal não existem, ou existem em reduzida
dimensão quando comparada.
Portanto:
que Engenharia? Que
tecnologia em Portugal? Que indústria é
que há em Portugal? Que manufactura? E, nos serviços, que parte
há na concepção? (A formação avançada tem que ver com a
concepção.) Já todos ouvimos dizer que, em Portugal, por exemplo
nos serviços financeiros, uma pessoa que queira trabalhar na
concepção de produtos, provavelmente só encontra lugar em Lisboa,
e, se quiser trabalhar em produtos verdadeiramente avançados, tem
que sair do país. Isto é, não há em Portugal trabalho de concepção
avançada nos serviços financeiros. Na Europa há sobretudo em
Londres, e há também em França, na Alemanha e na Suíça.
Põe‑se assim o problema genérico do para quê estudar Ciência e
Tecnologia ou Engenharias, no quadro de uma economia que não é
muito avançada (embora haja lugar para o voluntarismo, e o
voluntarismo tem dado alguns resultados em Portugal, que têm feito
muito pelo desenvolvimento e na procura destes cursos).
Uma questão interessante que no estudo me chamou a atenção está
relacionada com o facto de que em Portugal, há quase duas décadas,
há uma espécie de desnatação de gerações. Há uma grande
percentagem de jovens que, tendo terminado o ensino secundário com
altas classificações nas áreas das Ciências exactas, não vão para
cursos nessas áreas, e procuram cursos nas áreas das Ciências da
vida.
Não vou analisar o assunto, embora creia que, por variados
motivos, isto não vai continuar a ser assim por muito mais tempo.
Mas o estudo tem uma informação que a mim me pareceu bastante
interessante sobre isso, que é a detecção de uma diferença forte
nos perfis psicológicos dos estudantes que procuram esses cursos,
em relação aos estudantes que procuram cursos nas áreas da Ciência
e Tecnologia. Foi uma coisa que me chamou a atenção: os alunos que
procuram os cursos de Ciência e Tecnologia são mais
“empreendedores”, enquanto que os alunos que apontam mais para os
cursos relativos às Ciências da vida são em média mais passivos.
Achei isto muito interessante, e merecia talvez ser explorado.
Estas diferenças têm que ver, penso eu, com a maneira como
funciona o mercado de emprego para os diplomados pelos respectivos
cursos.
O debate da tarde terá mais que ver
com o que de propositivo se pode extrair deste estudo. Há
claramente trabalho a fazer sobre que medidas tomar, o que fazer
para corrigir situações que parecem erradas do ponto de vista
dos interesses do país. A proposta que faria era a de uma
eventual tradução das principais conclusões deste estudo numa
linguagem menos abstracta, menos académica, uma espécie de
sumário que pudesse ter uma difusão maior.
A principal falta que noto no estudo
é a de analisar – provavelmente isso não foi feito porque é
muito difícil, mas valeria a pena fazer – analisar que papel
tem, nesta questão da motivação e na escolha de cursos, a
qualidade dos professores que os alunos tiveram nas áreas que
aqui interessam.
Isto é muito difícil de fazer. Por exemplo, há um livro do
Professor David Justino sobre os
rankings, que
correlaciona os
rankings com muitos factores. É um livro
muito interessante, é, que eu saiba, o único texto longo, de
fôlego, que procura ir mais longe na análise dos
rankings
que saem todos os anos, feitos por vários jornais, mas o texto do
Professor David Justino também peca por isso: não faz a correlação
entre os resultados dos estudantes no fim do secundário e os
professores que eles tiveram. Isto é muito difícil de fazer,
porque se põe o problema de saber como
se vão
classificar os professores. Acho que se poderia começar
por: q
uem são os professores? Como se formaram?
Onde se formaram? Que formação tiveram? Este é um assunto
que há muito tempo me interessa, e penso que é das variáveis em
que seria mais importante intervir: fazer uma intervenção
consistente e continuada, no sentido da qualidade da formação dos
professores, inicial e contínua. Há muitos anos que me interesso
por este assunto, e há muitos anos que penso que as políticas
públicas, nestas áreas, não têm sido as melhores.
Outra variável que já foi mencionada, e que me parece muito
importante, é a questão do reposicionamento da Matemática nos
currículos e, em particular, o reconhecimento progressivo, que
muitas pessoas estão a fazer, de que o combate decisivo faz‑se
provavelmente nos níveis iniciais: talvez o ponto mais importante
do trabalho que o país tem que fazer pela melhoria do ensino, nas
áreas básicas, na língua materna e na Matemática, esteja não no
ensino secundário, nem sequer no 3.º ciclo do ensino básico, mas
nos níveis iniciais. E aí as políticas públicas de regulação e as
políticas voluntaristas de promoção da qualidade têm muito a
fazer.
Outro comentário refere-se a uma política que existe noutros
países, mas que em Portugal creio que não existe. Essa política,
no caso da Matemática, que é o que conheço melhor, é a seguinte:
garantindo uma escolaridade mínima nos vários ciclos – o que ainda
hoje não acontece no 1.º ciclo – essa escolaridade pode ser
progressivamente diferenciada e, sobretudo no secundário, pode ser
fortemente diferenciada. Em vários países do norte da Europa, o
número de horas semanais de Matemática varia muito conforme os
agrupamentos em que os alunos estão, e chega a ser fortíssimo
nalgumas fileiras. Faria sentido em Portugal haver uma
diferenciação maior do que aquela que existe.
Os autores do estudo disseram que estudaram sobretudo o
Agrupamento 1, mas talvez valha a pena estudar também o
Agrupamento 3, por uma razão que é chocante, mas que é real:
muitos saberão que nas disciplinas de acesso aos cursos de
Ciências e Engenharias, a Física, por exemplo, tem vindo a cair
como disciplina específica de acesso. E, extraordinariamente, não
sei se pela primeira vez este ano mas seguramente este ano, a
Matemática também.
Uma maneira de atrair estudantes, hoje em dia, para certos cursos
de Engenharia, em Portugal, passou a ser não exigir nada à
entrada. Talvez no futuro venhamos a ver tabuletas à entrada de
cada ponte dizendo que o engenheiro que projectou aquela ponte
teve esta ou aquela formação e, depois, o cidadão automobilista
passará na ponte ou não. Portanto, há aqui fenómenos interessantes
que valerá a pena considerar: nos anos anteriores já deve ter
havido muitos estudantes em cursos de Engenharia que vieram do
agrupamento 3, porque não precisavam da Física, e este ano até já
pode ter havido candidatos de Humanidades. Isto não está
relacionado exactamente com o estudo, mas mostra que o universo de
agrupamentos a estudar talvez seja maior do que se pensa (embora
pelas más razões).
Volto ao princípio. Este estudo parece-me muito importante, apesar
do seu carácter exploratório e aqui e ali um pouco abstracto,
merece ser aprofundado, e depois dele (e de outros semelhantes)
devem ser extraídas propostas e conclusões para orientação das
políticas públicas em Portugal, nesta matéria.
DEBATE
Um comentário muito telegráfico às questões dos números,
postas pelo Professor Júlio Pedrosa e pelo Professor Rui
Santos. Quais são os números da crise? Há de
facto uma crise?
É inequívoco que há um colapso quantitativo nos
cursos de Ciências, de Matemática, Física e Química.
A primeira foi a Física, que começou há uns anos, a seguir veio
a Matemática, há poucos anos, e agora está a começar a Química.
Isto estará associado à percepção desses cursos,
tradicionalmente, como cursos de formação de professores, e esse
mercado de trabalho desapareceu.
Este fenómeno não é exclusivamente português, embora as causas
variem de país para país. Isto é parecido com o que se passa,
por exemplo, no Reino Unido.
Nos Estados Unidos a situação é diferente. Aliás, é muito
curioso: nos Estados Unidos, a nível de estudos pós‑graduados em
Matemática, como há uma procura de diplomados – uma necessidade
por parte da economia – há uma importação de pessoas nessa área.
Vão buscar essas pessoas a outros países. Quem vai a um
congresso científico, na área da Matemática, nos Estados Unidos,
invariavelmente encontra muitos investigadores indianos,
chineses, coreanos e russos. A economia americana importa aquilo
de que precisa. Mas em Portugal, de facto, nas chamadas
“ciências duras” – a Matemática, a Física e a Química – há um
colapso quantitativo, nos últimos anos, que é inequívoco.
Nas Engenharias, concordo, a questão é mais subtil. Não conheço
os números, não sei se a descida tem sido acentuada, creio é que
há uma alteração qualitativa e que se relaciona com aquilo que
referi. Como o financiamento no ensino superior tem sido “por
cabeça”, as instituições vão ao combate com todas as armas que
têm, e, como disse, a Física caiu, de forma generalizada, como
disciplina de ingresso em muitos cursos de Engenharia em
Portugal, o que é extremamente chocante, e, de forma igualmente
chocante, começa também a cair a Matemática.
Hoje em dia, para um curso de Engenharia que queira morrer, a
maneira mais rápida que tem de o conseguir é exigir Matemática e
Física como disciplinas de ingresso. Portanto, um curso que
queira ser exigente é premiado com a morte rápida.
Outros números da crise são os números elevados de insucesso nas
disciplinas básicas, nos cursos de Engenharia nos primeiros
anos. De novo não tenho números, mas isso é uma realidade. Mas
não é uma realidade recente, já tem alguns anos.
Para os cursos de Ciências, o problema da falta de estudantes
pela razão apontada também pode transformar‑se numa
oportunidade. E a experiência que existe em Coimbra é a esse
respeito muito interessante. O número de estudantes candidatos a
Matemática em Coimbra recuperou um pouco em relação ao ano
passado, e uma das razões pode ser a seguinte. Há uns anos,
começámos um projecto de identificação de saídas profissionais,
para diplomados em Matemática, que não passem pela docência. E
temos hoje um programa de estágios em empresas com bastante
sucesso. Isto
pode criar problemas, a prazo, com os professores de Matemática
em Portugal: o Estado há‑de querê-los – os bons, claro – e não
os vai ter. Mas isso é outra questão.