Intervenção no debate sobre o estudo "Motivação dos Jovens Portugueses para a Formação Superior em Ciências e Tecnologia", de Lígia Mexia Leitão, Maria Paula Paixão e José Tomás da Silva (Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra)

João Filipe Queiró        

Actas do Seminário realizado em 8 de Novembro de 2006
Conselho Nacional de Educação, Lisboa, 2007, p. 117-122 e 150-152.



Agradeço o convite que o Conselho Nacional de Educação me dirigiu, e saúdo a equipa que fez este trabalho. Felicito, também, o Conselho pela iniciativa da condução deste estudo, que aborda um tema que me parece muito importante e sobre o qual eu não conhecia uma análise sistemática.

Sou professor de Matemática na Universidade de Coimbra, e o que fiz, nas últimas décadas, foi ensinar Matemática a muitos milhares de estudantes de Ciências e Engenharia. O olhar que aqui trago não é, portanto, o de um especialista nas questões de psicologia, de estudos vocacionais e motivacionais, mas o olhar do profissional da Matemática e do ensino da Matemática. Estive também envolvido no chamado ramo educacional e na questão da formação de professores.

O que estas décadas me deram foi um olhar, possivelmente reflectivo e reflector, sobre a envolvente destas questões. E é a partir desse ponto de vista que vos quero falar.

O estudo e o tema do estudo parecem‑me muito importantes, dada a situação, que já aqui foi descrita, de alguma crise, seja nos ensinos básico e secundário, seja no ensino superior, no campo das Ciências e das Engenharias: um diagnóstico, portanto, que está feito, não só estatístico mas também qualitativo.

Sem ser especialista, esta questão da motivação já me tinha ocorrido. Há uns anos, num encontro que houve na Universidade do Algarve, o Forum Internacional dos Investigadores Portugueses, houve uma mesa-redonda sobre o Ensino das Ciências na Universidade; não é exactamente o mesmo tema, mas tem alguma intersecção. Convidaram‑me para participar nessa mesa-redonda, e escrevi um texto, correspondente à minha intervenção, que veio a ser publicado na Gazeta de Física. Nesse texto, falando sobre os diagnósticos e os problemas que se põem no ensino das Ciências na universidade, escrevi algo sobre o problema da motivação: “Creio que é possível detectar um fenómeno de quebra de motivação nos estudantes dos cursos de Ciências e Engenharia em Portugal. Esta questão é mais subjectiva. Não conheço estudos sobre isto. [Agora já conheço.] Pode haver aqui um erro de percepção da minha parte, e não haver um problema verdadeiramente novo. Mas suspeito que não é esse o caso, e que há efectivamente um crescente problema de desmotivação e de alienação estudantil, sobretudo nas áreas das Ciências exactas e de algumas Engenharias.” Portanto, referia-me à questão da motivação dos estudantes já no ensino superior.

O presente estudo tem duas partes. A segunda refere‑se ao mesmo problema motivacional ou vocacional nos ensinos básico e secundário. Como os autores disseram, ele tem um carácter exploratório, de alguma forma pioneiro, e tem um elevado grau de formalização académica, um elevado grau de abstracção. E isso leva‑me a dizer – sem ser uma crítica negativa – que talvez houvesse vantagem, quer seja em momentos posteriores quer seja em versões diferentes do mesmo estudo, em traduzi-lo numa linguagem que tornasse mais claro pelo menos o lado propositivo, o lado de apresentação de propostas para abordar os problemas diagnosticados.

O estudo tem informações e análises muito interessantes e que não me parecem inesperadas, em geral. Se os resultados e conclusões não são muito surpreendentes, estão, agora, suportados por estatísticas. E o estudo tem o grande mérito de fazer uma listagem e uma sistematização dos factores que condicionam as escolhas de cursos superiores por parte dos estudantes do ensino secundário.

Sobre a questão da motivação na escolha do curso superior, já foram elencados muitos factores, analisados e hierarquizados, e no caso das Ciências e das Tecnologias, tal como nos outros, põe‑se, como é óbvio, a questão dos empregos futuros, que também foi analisada.

Há uma segunda questão, que referi na minha comunicação em Faro, que é o “para quê?”, não só na questão do emprego mas, também, “para quê estudar Ciência e Tecnologia em Portugal?” Isto tem que ver com o próprio lugar de Portugal na economia internacional.

Escrevi então o que passo a citar: “O contexto português, por outro lado, comporta um perigo real a este respeito: para quê estudar Ciência e Tecnologia, se todos os produtos tecnológicos mais correntes, de grande consumo e gratificação imediata, nos chegam feitos, completos e baratos? Para quê então Ciências e Engenharias em Portugal, para quê o esforço, o estudo, a reflexão? Não será isso só para os outros?” No contexto da divisão internacional do trabalho, nós podemos ficar por exemplo com o turismo, mas não necessariamente com isto. Depois fazia um comentário meio jocoso: “Já Eça de Queirós observava que Portugal importa tudo. Dizia ele – ou mais precisamente um personagem criado por ele – que a civilização chega cá em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas...

Há, no entanto, aqui um problema que parece real. Os números citados pelo Senhor Secretário de Estado da Ciência e Tecnologia são muito impressionantes, quanto à diferença na percentagem dos jovens, no grupo etário entre os 20 e os 29 anos, licenciados nestas áreas em Portugal, quando comparados com a União Europeia e, sobretudo, com alguns países da União Europeia, por exemplo com a Irlanda.

A Irlanda, como sabem, sofreu nas últimas duas décadas uma aceleração brutal na implantação de unidades industriais de alta tecnologia, que em Portugal não existem, ou existem em reduzida dimensão quando comparada.

Portanto: que Engenharia? Que tecnologia em Portugal? Que indústria é que há em Portugal? Que manufactura? E, nos serviços, que parte há na concepção? (A formação avançada tem que ver com a concepção.) Já todos ouvimos dizer que, em Portugal, por exemplo nos serviços financeiros, uma pessoa que queira trabalhar na concepção de produtos, provavelmente só encontra lugar em Lisboa, e, se quiser trabalhar em produtos verdadeiramente avançados, tem que sair do país. Isto é, não há em Portugal trabalho de concepção avançada nos serviços financeiros. Na Europa há sobretudo em Londres, e há também em França, na Alemanha e na Suíça.

Põe‑se assim o problema genérico do para quê estudar Ciência e Tecnologia ou Engenharias, no quadro de uma economia que não é muito avançada (embora haja lugar para o voluntarismo, e o voluntarismo tem dado alguns resultados em Portugal, que têm feito muito pelo desenvolvimento e na procura destes cursos).

Uma questão interessante que no estudo me chamou a atenção está relacionada com o facto de que em Portugal, há quase duas décadas, há uma espécie de desnatação de gerações. Há uma grande percentagem de jovens que, tendo terminado o ensino secundário com altas classificações nas áreas das Ciências exactas, não vão para cursos nessas áreas, e procuram cursos nas áreas das Ciências da vida.

Não vou analisar o assunto, embora creia que, por variados motivos, isto não vai continuar a ser assim por muito mais tempo. Mas o estudo tem uma informação que a mim me pareceu bastante interessante sobre isso, que é a detecção de uma diferença forte nos perfis psicológicos dos estudantes que procuram esses cursos, em relação aos estudantes que procuram cursos nas áreas da Ciência e Tecnologia. Foi uma coisa que me chamou a atenção: os alunos que procuram os cursos de Ciência e Tecnologia são mais “empreendedores”, enquanto que os alunos que apontam mais para os cursos relativos às Ciências da vida são em média mais passivos. Achei isto muito interessante, e merecia talvez ser explorado. Estas diferenças têm que ver, penso eu, com a maneira como funciona o mercado de emprego para os diplomados pelos respectivos cursos.

O debate da tarde terá mais que ver com o que de propositivo se pode extrair deste estudo. Há claramente trabalho a fazer sobre que medidas tomar, o que fazer para corrigir situações que parecem erradas do ponto de vista dos interesses do país. A proposta que faria era a de uma eventual tradução das principais conclusões deste estudo numa linguagem menos abstracta, menos académica, uma espécie de sumário que pudesse ter uma difusão maior.

A principal falta que noto no estudo é a de analisar – provavelmente isso não foi feito porque é muito difícil, mas valeria a pena fazer – analisar que papel tem, nesta questão da motivação e na escolha de cursos, a qualidade dos professores que os alunos tiveram nas áreas que aqui interessam.

Isto é muito difícil de fazer. Por exemplo, há um livro do Professor David Justino sobre os rankings, que correlaciona os rankings com muitos factores. É um livro muito interessante, é, que eu saiba, o único texto longo, de fôlego, que procura ir mais longe na análise dos rankings que saem todos os anos, feitos por vários jornais, mas o texto do Professor David Justino também peca por isso: não faz a correlação entre os resultados dos estudantes no fim do secundário e os professores que eles tiveram. Isto é muito difícil de fazer, porque se põe o problema de saber como se vão classificar os professores. Acho que se poderia começar por: quem são os professores? Como se formaram? Onde se formaram? Que formação tiveram? Este é um assunto que há muito tempo me interessa, e penso que é das variáveis em que seria mais importante intervir: fazer uma intervenção consistente e continuada, no sentido da qualidade da formação dos professores, inicial e contínua. Há muitos anos que me interesso por este assunto, e há muitos anos que penso que as políticas públicas, nestas áreas, não têm sido as melhores.

Outra variável que já foi mencionada, e que me parece muito importante, é a questão do reposicionamento da Matemática nos currículos e, em particular, o reconhecimento progressivo, que muitas pessoas estão a fazer, de que o combate decisivo faz‑se provavelmente nos níveis iniciais: talvez o ponto mais importante do trabalho que o país tem que fazer pela melhoria do ensino, nas áreas básicas, na língua materna e na Matemática, esteja não no ensino secundário, nem sequer no 3.º ciclo do ensino básico, mas nos níveis iniciais. E aí as políticas públicas de regulação e as políticas voluntaristas de promoção da qualidade têm muito a fazer.

Outro comentário refere-se a uma política que existe noutros países, mas que em Portugal creio que não existe. Essa política, no caso da Matemática, que é o que conheço melhor, é a seguinte: garantindo uma escolaridade mínima nos vários ciclos – o que ainda hoje não acontece no 1.º ciclo – essa escolaridade pode ser progressivamente diferenciada e, sobretudo no secundário, pode ser fortemente diferenciada. Em vários países do norte da Europa, o número de horas semanais de Matemática varia muito conforme os agrupamentos em que os alunos estão, e chega a ser fortíssimo nalgumas fileiras. Faria sentido em Portugal haver uma diferenciação maior do que aquela que existe.

Os autores do estudo disseram que estudaram sobretudo o Agrupamento 1, mas talvez valha a pena estudar também o Agrupamento 3, por uma razão que é chocante, mas que é real: muitos saberão que nas disciplinas de acesso aos cursos de Ciências e Engenharias, a Física, por exemplo, tem vindo a cair como disciplina específica de acesso. E, extraordinariamente, não sei se pela primeira vez este ano mas seguramente este ano, a Matemática também.

Uma maneira de atrair estudantes, hoje em dia, para certos cursos de Engenharia, em Portugal, passou a ser não exigir nada à entrada. Talvez no futuro venhamos a ver tabuletas à entrada de cada ponte dizendo que o engenheiro que projectou aquela ponte teve esta ou aquela formação e, depois, o cidadão automobilista passará na ponte ou não. Portanto, há aqui fenómenos interessantes que valerá a pena considerar: nos anos anteriores já deve ter havido muitos estudantes em cursos de Engenharia que vieram do agrupamento 3, porque não precisavam da Física, e este ano até já pode ter havido candidatos de Humanidades. Isto não está relacionado exactamente com o estudo, mas mostra que o universo de agrupamentos a estudar talvez seja maior do que se pensa (embora pelas más razões).

Volto ao princípio. Este estudo parece-me muito importante, apesar do seu carácter exploratório e aqui e ali um pouco abstracto, merece ser aprofundado, e depois dele (e de outros semelhantes) devem ser extraídas propostas e conclusões para orientação das políticas públicas em Portugal, nesta matéria.


DEBATE


Um comentário muito telegráfico às questões dos números, postas pelo Professor Júlio Pedrosa e pelo Professor Rui Santos. Quais são os números da crise? Há de facto uma crise?

É inequívoco que há um colapso quantitativo nos cursos de Ciências, de Matemática, Física e Química.

A primeira foi a Física, que começou há uns anos, a seguir veio a Matemática, há poucos anos, e agora está a começar a Química. Isto estará associado à percepção desses cursos, tradicionalmente, como cursos de formação de professores, e esse mercado de trabalho desapareceu.


Este fenómeno não é exclusivamente português, embora as causas variem de país para país. Isto é parecido com o que se passa, por exemplo, no Reino Unido.


Nos Estados Unidos a situação é diferente. Aliás, é muito curioso: nos Estados Unidos, a nível de estudos pós‑graduados em Matemática, como há uma procura de diplomados – uma necessidade por parte da economia – há uma importação de pessoas nessa área. Vão buscar essas pessoas a outros países. Quem vai a um congresso científico, na área da Matemática, nos Estados Unidos, invariavelmente encontra muitos investigadores indianos, chineses, coreanos e russos. A economia americana importa aquilo de que precisa. Mas em Portugal, de facto, nas chamadas “ciências duras” – a Matemática, a Física e a Química – há um colapso quantitativo, nos últimos anos, que é inequívoco.


Nas Engenharias, concordo, a questão é mais subtil. Não conheço os números, não sei se a descida tem sido acentuada, creio é que há uma alteração qualitativa e que se relaciona com aquilo que referi. Como o financiamento no ensino superior tem sido “por cabeça”, as instituições vão ao combate com todas as armas que têm, e, como disse, a Física caiu, de forma generalizada, como disciplina de ingresso em muitos cursos de Engenharia em Portugal, o que é extremamente chocante, e, de forma igualmente chocante, começa também a cair a Matemática.


Hoje em dia, para um curso de Engenharia que queira morrer, a maneira mais rápida que tem de o conseguir é exigir Matemática e Física como disciplinas de ingresso. Portanto, um curso que queira ser exigente é premiado com a morte rápida.


Outros números da crise são os números elevados de insucesso nas disciplinas básicas, nos cursos de Engenharia nos primeiros anos. De novo não tenho números, mas isso é uma realidade. Mas não é uma realidade recente, já tem alguns anos.


Para os cursos de Ciências, o problema da falta de estudantes pela razão apontada também pode transformar‑se numa oportunidade. E a experiência que existe em Coimbra é a esse respeito muito interessante. O número de estudantes candidatos a Matemática em Coimbra recuperou um pouco em relação ao ano passado, e uma das razões pode ser a seguinte. Há uns anos, começámos um projecto de identificação de saídas profissionais, para diplomados em Matemática, que não passem pela docência. E temos hoje um programa de estágios em empresas com bastante sucesso.
Isto pode criar problemas, a prazo, com os professores de Matemática em Portugal: o Estado há‑de querê-los – os bons, claro – e não os vai ter. Mas isso é outra questão.