Comentário ao
documento
“Perfil dos alunos à saída da Escolaridade
Obrigatória”
(parecer
enviado
ao responsável do respectivo grupo de trabalho)
João Filipe Queiró
Departamento de Matemática -Universidade de Coimbra
1. O dirigismo
Começo pela ambição dirigista que o "Perfil" afirma para si
próprio. Cito da página 7 ao fundo (sublinhados meus):
«O perfil dos alunos (...) estabelece uma visão de escola e um
compromisso da escola, constituindo-se para a sociedade em
geral como um guia que enuncia os princípios fundamentais em que
assenta uma educação que se quer inclusiva. (...) Professores,
educadores, gestores, decisores políticos e também todos os que
direta ou indiretamente têm responsabilidades na educação encontram
neste documento a matriz para a tomada de decisão sobre as opções
de desenvolvimento curricular, consistentes com a visão de
futuro definida como relevante para os jovens portugueses do nosso
tempo.»
O perfil, portanto, "estabelece uma visão de escola", "constitui-se
para a sociedade em geral como um guia que enuncia os princípios
fundamentais", é "a matriz para a tomada de decisão sobre as opções
de desenvolvimento curricular", e contém "a visão de futuro definida
como relevante". Seja qual for a forma jurídica que se
pretenda dar ao documento posteriormente, estas ambições de comando
e definição permanente da visão colectiva em matéria de educação,
num documento que, supondo-o necessário, deveria ter um carácter não
impositivo de mero referencial ou orientação, são claramente
excessivas e impróprias para a sociedade plural e livremente
determinada que a Constituição consagra.
2. O esquecimento do contexto histórico português
Em seguida, o documento faz as habituais referências à mudança
vertiginosa do conhecimento e da tecnologia, tomando-a como pretexto
para as suas propostas. Estas frases podiam ser -- e foram --
apresentadas nos últimos 50 ou 100 anos para tentar fundamentar a
necessidade de sempre mais mudanças e inovações na educação.
Salvo o devido respeito, o desenvolvimento da educação em Portugal
não devia perder de vista um factor de contexto muito mais profundo
e essencial. Portugal estava em finais do século XIX numa
situação de atraso educativo que contrastava de forma chocante, a
todos os níveis, com o norte da Europa. Recuperámos muito
desse atraso mas a recuperação ainda prossegue. Vivemos uma
mudança secular que é lenta e gradual mas não deve nunca ser
esquecida.
As questões da escola não se colocam em Portugal da mesma forma que
podem colocar-se na Holanda ou na Dinamarca, onde o cidadão médio
tem várias gerações anteriores na família com elevada escolarização.
As questões da escola em Portugal não podem ser vistas de forma
abstracta, baseada exclusivamente em análises momentâneas da
sociedade, da cultura ou do progresso tecnológico ou em modas
passageiras. Devemos persistir num rumo, resistindo à suposta
necessidade de "inovações". Não nos deixemos deslumbrar pela
(aparente) novidade, quando os desafios de Portugal são antigos e
ainda não foram vencidos. Portugal não pode desistir.
3. A desvalorização do conhecimento
O problema principal está em que a insistência no discurso das
"competências" desvaloriza o conhecimento, que nelas, segundo o
documento, deveria estar subsumido. Sublinho que várias das
competências apontadas -- como o raciocínio, a resolução de
problemas, o pensamento crítico, a comunicação -- não são passíveis
de aquisição fora do contexto do estudo de áreas disciplinares e do
contacto com elas. Não são competências abstractas,
apreendidas em abstracto, são competências concretas, exercitadas em
concreto no estudo e na aprendizagem dos conteúdos. São por
isso subordinadas ao conhecimento e não estão acima dele.
De modo análogo, as competências cívicas e de relacionamento, mais
do que ensinadas, devem ser adquiridas -- no que se refere à escola
-- na vida concreta desta, nas regras internas que se cumprem e no
respeito pelos outros.
Uma nota sobre a tecnologia. Os jovens vivem hoje imersos
nela, através dos dispositivos de comunicação móvel cada vez mais
baratos e versáteis. É uma corrida em que a escola não deve
entrar. Pelo contrário: essa tecnologia é factor de
dispersão e distracção mortais. A bem da atenção, da
concentração e do conhecimento, as escolas devem proporcionar um
tempo e um espaço de verdadeira libertação dos jovens em relação a
essa tecnologia, que os aliena e até escraviza.
4. Conclusão
Portugal não precisa em rigor de um documento destes, com o modesto
título de "Perfil dos alunos para o Século XXI". A intenção é
outra e está clara na frase, já citada, segundo a qual "Professores,
educadores, gestores, decisores políticos e também todos os que
direta ou indiretamente têm responsabilidades na educação encontram
neste documento a matriz para a tomada de decisão sobre as opções de
desenvolvimento curricular." As opções curriculares podem
sempre ser discutidas: mas é errado que tal discussão seja
vinculada ou moldada à partida, como a secção de "Implicações
práticas" deixa bem claro, por uma "matriz" onde a desvalorização do
conhecimento esteja já consagrada.
Se Portugal subordinar as suas opções educativas a um discurso que,
no meio de boas intenções e votos simpáticos, menoriza o estudo e as
aprendizagens reais, estaremos a criar uma espécie de "escola
aguada". Esta não ajudará os alunos a transcender o seu
contexto e a sua condição e a atingir o seu potencial, nem ajudará
Portugal a cumprir o desígnio secular de atingir altos níveis de
escolarização, conhecimento e qualificação para as sucessivas
gerações.
Coimbra, 13 de Março de 2017