Prefácio a “O De Crepusculis de Pedro
Nunes, uma leitura actualizada”, de Carlos Vilar
Universidade do Minho, Braga 2006.
Pedro
Nunes (1502-1578) foi o mais importante cientista português de
todos os tempos, e um dos grandes nomes da ciência europeia no
século XVI. O seu nome é bem conhecido em Portugal, figurando em
ruas, escolas e institutos. A sua efígie aparece em estátuas,
moedas e selos. Como imagem histórica, tem no nosso país um grau
de reconhecimento comparável a Luís de Camões e Vasco da Gama.
Mas, ao contrário do que acontece com o poeta e o navegador, das
obras e actividades de Pedro Nunes o grande público pouco sabe.
Terá ouvido falar em certo instrumento de medida por ele
concebido, de que depois os franceses se teriam maldosamente
apropriado. Mas não mais do que isso.
A que se deve então tal reputação? Por um lado, aos ecos
longínquos do valor científico de Pedro Nunes, de que, nalgumas
épocas, personalidades cultas conseguiram dar eficaz testemunho.
Por outro, às necessidades hagiográficas de uma visão da
História que precisa de criar uma imagem do nosso passado com
grandeza e sem máculas, cheia de heróis e sábios. Nesta versão,
Pedro Nunes é o orientador científico da gesta dos
Descobrimentos, porventura empoleirado nas escarpas do promontorium
sacrum. Do outro lado do retrato, também se encontram
tentativas de diminuir Pedro Nunes, e de o reduzir a autor de
compêndios tributários de visões científicas já então obsoletas,
e sem nenhum interesse para a grande saga do progresso
científico.
Ora uma figura como Pedro Nunes não pode ficar sujeita às
flutuações de preferência associadas a conveniências políticas
de ocasião. Tem todo o interesse fixar e esclarecer os
principais aspectos da obra do grande cientista de quinhentos.
E aqui voltamos à afirmação inicial. Que sentido tem dizer-se
que “Pedro Nunes foi o mais importante cientista português de
todos os tempos, e um dos grandes nomes da ciência europeia no
século XVI”? Não estaremos a cair na atitude que há pouco
censurámos, a do louvor acrítico de alguém, ainda que com certo
valor, apenas por se tratar de um português? Pois bem, a
resposta é: não. As frases com que descrevemos o cientista
português foram usadas num sentido preciso, que tem que ver com
a relevância dos temas que estudou, a importância das suas
contribuições, o impacto da sua obra na ciência europeia.
Pedro
Nunes foi um cientista atento e interveniente, crítico,
actualizado, inovador. Esteve ligado à “fase madura” do esforço
das navegações portuguesas, com contribuições decisivas,
conhecidas na Europa das décadas seguintes, nas áreas da
cartografia, da teoria da navegação e do conhecimento da terra.
A sua maior dimensão é de cientista “puro” e rigoroso, que
intervém e publica, com impacto internacional, em temas de
Matemática e Física. Mas não esquecemos, entre outros
instrumentos que concebeu, o nónio e a sua utilização por
cientistas eminentes de outros países.
O número de estudos dedicados ao conteúdo da obra de Pedro
Nunes, que permitem sustentar, de forma cada vez mais nítida, o
que dissemos, tem vindo a crescer. Há vários textos publicados
que descrevem e analisam, no todo ou em parte, alguns dos livros
de Pedro Nunes. Para além das copiosas “Anotações” contidas na
edição das Obras do matemático promovida pela Academia
das Ciências entre 1940 e 1960 (e retomada em 2002 com o apoio
da Fundação Gulbenkian, sob a direcção de F. R. Dias Agudo e
Henrique Leitão), destacamos: H. Bosmans, “Sur le «Libro de
Algebra» de Pedro Nuñez”, Bibliotheca Mathematica, 3ª
série, t. 8, Leipzig, p. 154-169, 1907-1908, e “L’algèbre de
Pedro Nuñez”, Anais da Academia Politécnica do Porto,
vol. 3, p. 222-271, 1908; Francisco Gomes Teixeira, “Elogio
Histórico de Pedro Nunes”, Panegíricos e Conferências,
Coimbra, 1925; Raymond d’Hollander, “Historique de la
loxodromie”, Mare Liberum, 1, p. 29-69, 1990, e “La
théorie de la loxodromie de Pedro Nunes”, Petri Nonii
Salaciensis Opera, p. 63-111, Lisboa, 2003; Anabela Simões
Ramos, O «De erratis Orontii Finaei», de Pedro Nunes,
Coimbra, 1998; Henrique Leitão, “Uma nota sobre Pedro Nunes e
Copérnico”, Gazeta de Matemática, 143, p. 60-78, 2002, e
O Comentário de Pedro Nunes à Navegação a Remos, Lisboa,
Comissão Cultural de Marinha, 2002.
O De Crepusculis é por vários comentadores considerado a
obra-prima de Pedro Nunes. Nele o matemático analisa, em
resposta a uma pergunta do príncipe D. Henrique – o futuro
Cardeal-Rei –, o problema da “extensão do crepúsculo em
diferentes climas”, a que aplica o rigor do seu poderoso
raciocínio. Entre outros resultados, determinou a data e a
duração do crepúsculo mínimo para cada lugar no globo. O mesmo
problema ocupou os irmãos Bernoulli século e meio mais tarde. É
neste livro que Pedro Nunes concebe o engenhoso instrumento para
medidas de precisão a que mais tarde se veio a chamar “nónio”. O
instrumento terá sido usado por Tycho Brahe nas suas extensas
observações astronómicas.
Sobre
esta obra, a literatura não é abundante, podendo citar-se:
Carlos Vilar, “O «De Crepusculis»
de Pedro Nunes”, História e Educação Matemática, vol.
II, p. 65-72, Braga, 1996, e Eberhard Knobloch,
“Nunes’s «Book on Twilights»”, Petri Nonii Salaciensis Opera,
p.113-140, Lisboa, 2003. Essa rarefacção torna ainda mais
importante o livro que agora se apresenta.
Há muitas maneiras de conhecer e divulgar uma obra. A que Carlos
Vilar aqui nos propõe é, depois de uma síntese de apresentação,
uma leitura pausada e pormenorizada, com comentários e análises
explicativas, em linguagem e simbologia dos nossos dias, do
texto completo do De Crepusculis. Tal leitura tornará
muito mais acessível esta obra de Pedro Nunes.
Em anotação ao De Crepusculis, disse Joaquim de
Carvalho, ao mencionar as repercussões da obra na Europa, que
ela “logrou a consagração inerente às explicações científicas,
entrando e fluindo, muitas vezes anonimamente, no caudal dos
conhecimentos exactos que constituem património da Humanidade.”
Tal apreciação é adequada a toda a obra científica de Pedro
Nunes, cujo conhecimento mais generalizado ganharia com a
publicação de outros textos como este do Doutor Carlos Vilar.
Para os leitores interessados na história e na cultura de
Portugal, o autor é credor de felicitações e agradecimentos.
Coimbra, Setembro de 2005
João Filipe Queiró