Prefácio a “Primos gémeos, triângulos
curvos, e outras histórias da Matemática”,
de Jorge Buescu
Gradiva, Novembro 2014.
(com
um lapso corrigido)
De que é feita a nossa paisagem mental? Se retirarmos a esfera pessoal – hoje electronicamente amplificada – o que resta que seja importante?
Um bom teste é fazer o exercício seguinte: de tudo o que, hoje mesmo, nos parece relevante, quanto terá algum valor ou interesse daqui a um ano?
Para aqueles a quem a duração importe, o que passar este teste terá algum direito a ser considerado “relevante”. Para outros mais radicais, a sabedoria vem de tentar perceber o que manterá relevância, não daqui a um ano, mas daqui a dez ou a cem.
A Matemática é, das áreas de expressão humana, uma das que melhor passam o teste da duração. Há afirmações matemáticas provadas há 25 séculos que são tão verdadeiras hoje como eram quando foram estabelecidas. As afirmações matemáticas provadas hoje permanecerão verdadeiras enquanto houver alguém para as ler e compreender.
Claro que o pensamento lógico-matemático, apesar da variedade das suas áreas de aplicação, não esgota, nem de longe, as nossas formas de expressão e de estudo. Pensar o contrário relevaria do cientismo mais simplório. Mas esta restrição de âmbito da Matemática é compensada pela sua perenidade, quase única, a par da literatura e da filosofia, entre os discursos humanos.
Álvaro de Campos, na sua “Gazetilha”, diz isto bem:
Dos Lloyd Georges da Babilónia
Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egipto,
Dos Trotskys de qualquer colónia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.
Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geómetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.
[...]
O facto de as afirmações matemáticas terem prazos de validade superiores aos da maioria das outras, em particular as urgentes notícias do dia e crónicas da semana, precisa de uma explicação, que tem que ver com a própria natureza desta área do conhecimento.
A Matemática, ao contrário do que muitos possam pensar, não é a ciência das contas complicadas nem das figuras esquisitas. A Matemática é a ciência das conclusões necessárias, das afirmações que se provam, com rigor lógico, a partir de outras anteriores. Como escreveu o filósofo Jean Cavaillès, um matemático é um “revelador de necessidades”.
A busca dessas afirmações, anterior à prova, envolve muitas componentes, como a consideração de problemas em aberto, a intuição, as heurísticas, a indução a partir de casos particulares, o impulso abstractizante, a observação física, a simulação estatística ou computacional, a procura de padrões, a formulação de conjecturas. Tudo isto é parte importante da actividade matemática. Mas só depois do raciocínio lógico conclusivo há afirmações verdadeiramente matemáticas.
O que distingue a Matemática não é, então, o seu objecto, mas sim a metodologia de validação dos seus resultados. Por sua vez, o âmbito de aplicação da Matemática depende da identificação dos campos onde a metodologia pode com razoabilidade ser aplicável.
Os campos da quantidade (os números) e da extensão (a geometria) são os mais óbvios, e foram historicamente os primeiros. Mas há muitos outros, e cada vez mais. A busca da certeza no conhecimento, onde faça sentido, é sempre um impulso no sentido da matematização. Isto está bem compreendido há séculos, de Aristóteles a Kant. Por outro lado, desde o século XIX que os matemáticos vêm levando a cabo um severo questionamento da sua linguagem no sentido de obter maior rigor e precisão.
A perenidade da Matemática é um dos factores que tornam os textos de Jorge Buescu fascinantes. Ele conta-nos histórias surpreendentes, por vezes a partir de observações do mundo quotidiano, o que de resto ilustra mais uma vez a presença da Matemática na vida. Nem sempre essas histórias, ou as perguntas que elas suscitam, avançam muito no sentido da formalização e prova matemática. Mas o que as caracteriza ― apesar da enorme variedade de contextos ― é a sua relação, seja potencial seja já realizada, com a Matemática. E por isso são histórias que ficam ― e manterão o seu valor daqui a um ano, daqui a dez anos. O papel usado para imprimir este livro não estará amanhã a embrulhar peixe ou castanhas.
Um divulgador é um “intermediário” entre o mundo da Matemática e o grande público, incluindo, para cada assunto tratado, os matemáticos não especialistas. Com os seus artigos e livros, Jorge Buescu é um tal intermediário. Mas é-o de um tipo especial, primeiro porque é um matemático a sério, e sabe do que fala, e depois porque não tem medo de abordar temas difíceis, o que faz de modo a não afugentar os leitores dispostos a não desistir ao fim da primeira página. Este é um estilo arriscado, porque confia em que existem leitores abertos à gratificação diferida. Posso tentar ajudar, garantindo ao leitor que a gratificação está de facto lá. Mas o talento de Jorge Buescu reside no facto de que ele sabe contar as histórias e sabe prender a nossa atenção desde o início.
Dois dos capítulos, um dos quais o fantástico “Da liberdade à fraude”, que abre a colecção descrevendo uma aventura do autor, são atípicos. Não falam propriamente de Matemática ou das suas aplicações mas da corrupção que progressivamente se instalou no mundo da publicação científica, desde que contar artigos passou a ser, na avaliação do mérito, mais importante do que lê-los.
Um bom livro de divulgação da Matemática é sempre um acontecimento, porque proporciona mais oportunidades de contacto com esta área do saber, tão falada pela sociedade e tão desconhecida na sua verdadeira natureza, na sua vastidão e diversidade e na sua presença multímoda na nossa vida e na nossa cultura.
É desse vasto mundo que Jorge Buescu nos traz novas neste livro, que seguramente terá o sucesso dos anteriores, confirmando o autor como um dos melhores praticantes portugueses da difícil arte da divulgação científica.
João Filipe Queiró