João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra
Gazeta de Matemática, 142, p. 28-31, Janeiro 2002.
Convida-me o Director da Gazeta de Matemática a escrever um
pequeno texto sobre a recente publicação dos resultados dos exames
do 12º ano por escolas e as ordenações das escolas produzidas com
base nesses resultados.
Essa publicação foi feita neste Verão em vários jornais, a partir
de dados fornecidos pelo Ministério da Educação, e na sequência de
um movimento que, já algum tempo, reclamava a divulgação dos dados
na posse do Ministério.
A publicação dos resultados dos exames nacionais e as ordenações
das escolas já foram objecto de inúmeros comentários e análises,
com alguma divisão de opiniões. Neste curto artigo, sem nenhuma
pretensão de originalidade, vou concentrar-me nas seguintes
interrogações: Deve ou não ser publicada a referida informação?
Devem ou não, com base nessa informação, ser elaboradas ordenações
(os famosos rankings)
das escolas? Qual é o valor de tal informação e de tais
ordenações?
Publicar ou não publicar?
Quanto à primeira pergunta, creio que a resposta é inequívoca: a
informação sobre os resultados dos exames nacionais do Secundário
por escola deve ser publicada. Essa informação existe, e não se vê
razão de interesse nacional para a esconder, ou para a reservar às
estruturas do Ministério. O sistema educativo precisa de mais
informação pública, e não menos. É por exemplo da maior relevância
política – e deveria ter consequências – o conhecimento das
diferenças entre as notas obtidas pelos estudantes em exames
nacionais e as classificações “internas” atribuídas pelas escolas.
Essas diferenças, que nalguns casos se têm de qualificar como
escandalosas (em particular pela chocante injustiça que introduzem
no sistema de acesso ao ensino superior), não se pode dizer que
constituam surpresas, mas estão agora oficialmente documentadas.
No caso do Secundário teria interesse complementar a informação
divulgada com outras. Por exemplo, a evolução dos resultados dos
exames ao longo de vários anos. Tais dados existem no Ministério
da Educação, e não daria especial trabalho criar séries temporais
para cada escola e disciplina; estas séries proporcionariam um
retrato mais fiel da realidade das escolas secundárias, ajudando a
perceber melhor o que contribui para os resultados dos estudantes
e, por outro lado, a não valorizar eventuais fenómenos de ocasião.
Seria também do maior interesse correlacionar os resultados das
escolas com aspectos como a formação profissional dos respectivos
professores, as instalações (laboratórios, bibliotecas, museus,
ginásios), etc.
Adiante mencionarei outras informações que seria bom conhecer, ou
precisar, no mesmo contexto.
Creio portanto que é positivo que a informação sobre os
resultados dos exames tenha sido publicada, e que deve ser
complementada e melhorada com muitas outras. A divulgação do maior
número possível de indicadores objectivos é de grande interesse no
plano da regulação interna e externa do sistema educativo. Numa
época em que, em tantos domínios, em particular no da Educação, o
Estado se apresenta cada vez menos como portador de qualquer
racionalidade e espírito de interesse nacional, a informação e a
liberdade são bons algoritmos de intervenção para a melhoria das
coisas. Terá que haver menos regulamentação central a priori – um conceito que já
mostrou claramente os seus limites e perversões – e mais regulação
a posteriori, seja pelo
próprio Estado (por exemplo na organização de exames e avaliações
nacionais) seja pela sociedade em geral, que para isso terá de
estar de posse da necessária informação.
Ordenar ou não ordenar?
Questão diferente é a de saber se, com base nos resultados dos
exames, devem ser elaboradas ordenações das escolas: a “melhor”, a
“segunda melhor”, etc., até à “pior”. Uma coisa é a publicação dos
resultados, outra é a ordenação das escolas a partir da
organização e tratamento desses dados segundo um qualquer
critério.
Aproveitando o facto de estar a escrever para leitores com
formação matemática, observo que, logo à partida, está aqui
presente a dificuldade de definir de forma razoável ordens totais
(isto é, em que todos os elementos são comparáveis) em conjuntos
com dimensão maior do que um. Isto porque para cada escola há
resultados de exames em mais do que uma disciplina. Se se olhar
para cada disciplina separadamente, claro que só há uma ordenação
possível das escolas, de resto com interesse.
A palavra-chave é “razoável”. Tudo depende do que se pretende. De
facto, pode até argumentar-se que qualquer critério que se
proponha contém previamente uma visão dos resultados que ele vai
produzir.
Seja como for, esta segunda questão é muito diferente da
primeira. Podemos exprimir uma preferência por dados “puros”, não
tratados. Mas é evidente que é impossível, depois de publicados os
dados “em bruto”, impedir a sua organização e apresentação de
qualquer forma. Resta-nos assim educar os nossos olhos de leitores
e observadores, e recusar as simplificações. Podemos, por exemplo,
apreciar o facto de, com base nos mesmos resultados, terem sido
publicadas este ano pelo menos duas ordenações diferentes das
escolas.
Alguma argumentação que se tem visto contra as listas ordenadas
de escolas parece insuficiente para recusar a divulgação dos
resultados. Mas é importante que cada lista ordenada dê ao
critério utilizado tanto relevo como à ordenação, para que todos
entendam do que se está a falar em cada caso.
E a este propósito volto às informações adicionais que seria bom
tornar públicas em conjunto com as listas de notas por escolas.
São exemplos de tais informações as seguintes: as políticas de
acesso eventualmente praticadas pelas escolas, a dimensão das
escolas e áreas disciplinares por elas cobertas e, last but not least, o número
de matrículas anuladas em cada escola, com a concomitante mudança
de escola ou apresentação aos exames em regime externo. O mundo
das escolas, mesmo sem considerar factores de natureza social (de
cuja invocação convém não abusar), é muito variado, e as
comparações serão tanto mais úteis quanto menos cegas forem.
A questão dos estudantes que entram em cada escola secundária é
relevante. Se houvesse avaliações nacionais credíveis no Ensino
Básico (o que, como se sabe, não acontece), poderiam ser
realizados estudos muito interessantes dos resultados dos
estudantes no fim do Secundário tomando em conta os resultados
obtidos pelos mesmos estudantes à saída do Básico. Iria emergir
então o conceito de “valor acrescentado” por uma escola, com
grande interesse informativo.
Vale a pena, já que estamos a falar de ordenações de escolas,
referir outra manifestação recente do mesmo tipo de ideias. Quem
acha que os rankings das
escolas secundárias com base nos exames têm muitos defeitos
deveria concentrar a sua atenção na tentativa, também este ano, de
elaborar um ranking das
universidades públicas, com resultados publicados num diário
lisboeta. Sobre esse exercício não direi muito, para além de
comentar que elaborar rankings
credíveis das universidades é uma arte difícil. Põe-se o
problema da elaboração dos questionários e dos pesos a atribuir às
respostas. E corre-se o risco de pouco mais medir do que a
disponibilidade dos gabinetes de relações públicas (quando
existem) para responder aos questionários dos candidatos a
ordenadores.
Sobre isto dos gabinetes de relações públicas, há quem ache bem e
há quem ache mal eles existirem. Para certo ponto de vista, que
cada vez mais governa o mundo, é fundamental uma universidade ter
um serviço de relações públicas, que bombardeie os jornais todos
os dias com a excelência da actividade que lá se desenvolve.
Alguma razão tem que se dar a este ponto de vista, pelos
resultados que vai obtendo no campo mediático e político.
Diversamente, há quem ache que o investimento nas relações
públicas não deve ser excessivo, e deve ao menos manter alguma
proporcionalidade com a real qualidade das instituições e do seu
trabalho. Mas, enfim, em certas matérias ninguém dá conselhos a
ninguém nos dias que correm.
O que valem os exames?
A terceira interrogação que aqui analiso, já um pouco sobreposta
às anteriores, é a de saber que valor informativo real tem a
publicação dos resultados dos exames nacionais e, por maioria de
razão, das subsequentes ordenações das escolas.
A contestação maior ao valor e interesse da publicação vem,
coerentemente, de quem contesta o valor dos próprios exames. Os
argumentos principais são conhecidos: os exames não testam
verdadeiramente as aprendizagens, os exames tendem a valorizar a
memorização e as práticas rotineiras, um exame pretende avaliar os
conhecimentos e as competências de um jovem em apenas duas ou três
horas de grande ansiedade.
Alguma verdade tem que se reconhecer nestas observações, mas,
salvo o devido respeito, esta argumentação é insuficiente para
retirar valor aos exames.
Em primeiro lugar, os exames são uma necessidade social. Para
vários efeitos, é necessário medir, de alguma forma objectiva, a
qualidade do trabalho realizado pelos estudantes, pelos
professores, pelas escolas. Contestar a existência de exames tem o
problema de ignorar completamente a necessidade de avaliação
sistémica por algum processo credível, que, repete-se, para vários
efeitos tem que ser nacional.
Na discussão destes assuntos há por vezes confusão entre dois
planos muito diferentes: o plano da “pedagogia de proximidade”,
com a importância da relação formativa individual entre professor
e aluno, e o plano das necessidades públicas de regulação e
avaliação do sistema educativo. Qualquer professor sabe como o
essencial da sua actividade se passa numa relação próxima com os
alunos, e não há maior sucesso para um professor do que ver os
seus alunos progredir. O sistema educativo, por seu lado, tem
necessidades de regulação por natureza impessoais. Ambos os planos
são importantes, e influenciam-se mutuamente, mas não convém
misturá-los.
Afirmar que os exames não testam verdadeiramente as aprendizagens
levanta um problema muito sério: como é então que as
aprendizagens, sejam elas quais forem, se podem testar de forma
independente e objectiva? Como valorizar ou preferir esta ou
aquela prática, este ou aquele método de trabalho (seja qual for o
critério), sem ser pelo discurso dos próprios protagonistas? Creio
que estas interrogações não podem ser ignoradas. Custa-me a crer
que os críticos dos exames defendam que não haja nenhuma avaliação
do sistema, nenhuma responsabilização dos seus agentes. Penso que
tal defesa é insustentável, que o sistema tem de ser avaliado, com
urgência e de forma sistemática. A crítica aos exames, acompanhada
de uma ausência de alternativas sérias, tem, entretanto,
contribuído largamente, como alibi, para a desvalorização global
dos processos de avaliação. Neste quadro, o próprio sistema, o
Estado e a sociedade em geral ficam indefesos perante as múltiplas
alterações de estratégias que se sobrepõem a outras alterações sem
nunca se medirem os efeitos das reformas que se fizeram e das que
se fazem. E os agentes reformadores de ontem por lá vão ficando,
na posição de reformar de novo, perpetuados pela ausência de
avaliação do que fazem e fizeram.
Outra crítica recorrente é que os exames tendem a valorizar a
memorização e as práticas rotineiras. Não vejo que isso seja um
problema. Ambas as coisas são importantes, contrariamente ao que
certo discurso fácil pretende fazer crer. Em primeiro lugar, não
há conhecimento, nem elaboração sobre o conhecimento, sem
memorização. Em segundo lugar, as chamadas “competências
rotineiras”, se verdadeiramente adquiridas, são a base sobre a
qual se constroem as competências avançadas. As competências
superiores adquirem-se depois e por cima das competências mais
básicas: isto é assim na arte, na música, na literatura, no
desporto, na ciência. Uma competência aprende-se, treina-se, e
depois utiliza-se e demonstra-se. Quem despreza a memorização e as
competências básicas acaba muitas vezes a defender competências
etéreas e, claro, não testáveis de modo algum.
Os exames são sempre desagradáveis, nenhum de nós gostou ou gosta
de ser submetido a provas e exames, mas trata-se de um mal
necessário, por motivos de avaliação do sistema e até de indução
do esforço de estudantes e professores. Sem dúvida que há
pormenores de organização que poderiam ser melhorados, seja nos
enunciados seja na logística. Por exemplo, cada estudante poderia
fazer duas provas por disciplina e ficar com a melhor nota das
duas. Outro aspecto que parece importante é que os estudantes não
deveriam fazer os seus exames na escola que frequentaram: as
escolas têm direito a que não se desconfie delas e da maneira como
organizam e controlam as provas.
Temos de reconhecer que, num sistema educativo difícil e
atravessado por tantas tensões como o português, os exames
constituem um imprescindível elemento de regulação e controlo, que
deveria ser estendido a outros ciclos, sobretudo e urgentemente ao
3º ciclo. O chamado 3º ciclo do Ensino Básico parece-me constituir
um elo muito frágil da nossa cadeia escolar, sendo essencial
repensar o seu posicionamento. A meu ver, o actual 3º ciclo
deveria estar, em todos os planos (na rede de escolas, nos grupos
de docência, na formação de professores, na avaliação), próximo do
chamado Secundário. A tendência inversa, que tem informado a
política educativa em nome de uma mítica “unidade do Ensino
Básico” (por confusão com a escolaridade obrigatória), é um erro
que conviria corrigir. Também aí temos alguma coisa a aprender com
a maioria dos nossos parceiros da União Europeia.
De resto, o princípio da realização de exames nacionais está a
surgir como necessário não só em níveis anteriores ao Secundário
como em níveis posteriores. Um exemplo é a certificação para
efeitos de contratação de professores do Ensino Básico e
Secundário, com o colapso da credibilidade e justiça do actual
modelo de contratação de professores pelo Estado.
Uma crítica de tipo diferente à publicação dos resultados dos
exames é a de que ela vem apenas revelar, de forma mais acentuada,
as diferenças sociais e económicas dos meios em que as escolas
estão inseridas e dos estudantes que as frequentam. Isto tem uma
parte de verdade, parecendo inequívoco que há correlação elevada
entre os meios sociais e económicos dos estudantes e os seus
resultados escolares. Mas, de novo, essa observação é insuficiente
para que se escondam os resultados nas gavetas ministeriais. Os
resultados, bem como a maior quantidade possível de informações
complementares (incluindo a do “valor acrescentado”, quando
disponível), devem ser conhecidos, e devem ser lidos de olhos
abertos. Sem prejuízo da diversidade das vias de estudo, os standards e as expectativas
mínimas em cada disciplina devem ser os mesmos para todos. A
nenhum jovem se deve, seja qual for o pretexto, transmitir a
mensagem de que dele se espera menos do que dos outros. Dizer isso
a um jovem é a maneira mais rápida de destruir o seu potencial.
Quando se constate, em certa região, um pior aproveitamento
escolar dos jovens atribuível a condições de fragilidade económica
e social, com muito mais razão o Estado poderá desencadear medidas
tendentes à correcção desses factores. Isso será dificultado
se se continuar a querer esconder os resultados escolares,
contribuindo para a perpetuação de tais situações.
Com certeza que os rankings podem
ser
aproveitados para algum darwinismo social. Se elaborados de forma
muito simplificada, não conterão surpresa nenhuma, e o seu valor
informativo ficará parecido com o de uma frase que, noutro
contexto, uma vez ouvi a um colega: “É melhor ser rico e saudável
do que pobre e doente.”
Conclusão
Em resumo, a publicação das classificações dos estudantes do Ensino Secundário é um facto positivo. Os exercícios de elaboração de rankings das escolas devem ser realizados com o maior cuidado, acompanhados do maior número possível de explicações e informações complementares, recusando as simplificações. E os exames nacionais são um instrumento indispensável de avaliação e regulação do sistema educativo, devendo ser estendidos a outros ciclos.