Recrutamento de professores
João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra
"Desastre no Ensino da Matemática: Como Recuperar o Tempo
Perdido" (Nuno Crato, coord.)
SPM – Gradiva, Lisboa, 2006, p. 143-149.
Introdução
Neste texto concentrar-me-ei na
questão do recrutamento de professores, mais precisamente no
recrutamento inicial (isto é, pela primeira vez) de professores
pelo Estado (isto é, pelo Ministério da Educação ou estruturas
dele dependentes). Algumas das considerações que farei poderão
valer apenas para os actualmente chamados 3º ciclo
e Secundário, que em conjunto constituirão o novo
(anunciado) Ensino Secundário.
Pode
parecer estranho que alguém se preocupe com isto, numa altura em
que este tipo de empregos diminuiu muito, e se fala em dezenas de
milhar de candidatos não colocados. Mas nunca é tarde para
melhorar as coisas, sobretudo em matéria tão importante. De resto,
a actual situação deriva ela própria de erros políticos do
passado. Não irei ao ponto de dizer que foi desejada, mas era
previsível e foi pelo menos consentida.
Os
erros não foram só de um governo, ou só de um partido. A razão
profunda para esses erros não deve procurar-se numa possível
maldade intrínseca deste ou daquele (embora houvesse muito a dizer
em matéria de pressões e interesses), mas sobretudo numa realidade
inerente à educação: as consequências dos erros em educação
observam-se numa escala temporal que excede em muito a duração
normal dos ciclos políticos, que são de 4, 8 ou mesmo 12 anos.
Estamos a pagar hoje, de várias maneiras, erros cometidos nos anos
90 e nos anos 80.
Os
erros a que me refiro têm todos que ver com uma questão simples:
Quem pode ser professor? É muito surpreendente o desinteresse
geral por esta questão, dada a importância central e decisiva da
qualidade e competência dos professores para a qualidade da
educação.
Quais são então os erros cometidos em Portugal a este
respeito?
1º erro: A multiplicação descontrolada de cursos
de formação de professores, com muitas dezenas de instituições a
oferecer centenas de cursos deste tipo, na maior parte dos casos
com um cariz estreitamente profissionalizante.
2º erro: A inexistência de qualquer tipo de
controlo sobre tais cursos e instituições de formação, seja no que
se refere ao corpo docente e aos planos de estudo seja em matéria
de instalações, funcionamento das instituições, etc.
3º erro: A acrescentar-se aos dois erros
anteriores, a publicação de legislação especial permitindo o
acesso à profissão docente de diplomados por centenas de cursos
que nada têm que ver com as respectivas áreas de docência.
4º erro: A ordenação dos candidatos pelo
Ministério da Educação, para efeitos de recrutamento, pela nota de
licenciatura, o que é algo de muito chocante dada a multiplicidade
e variedade de instituições e cursos de formação.
5º erro: A alteração da Lei
de Bases do Sistema Educativo de 1997, permitindo às Escolas
Superiores de Educação a formação de professores para o 3º ciclo.
Que efeitos tiveram estes erros?
1. Dezenas de milhares de jovens licenciados, por
cursos muitas vezes de banda estreita (isto é, com a única saída
profissional da docência), estão no desemprego. Dir-se-á que isso
não tem mal nenhum, que foi melhor esses jovens entrarem no ensino
superior e seguirem a sua vocação (se de facto era esse o caso),
mesmo que depois venham a ter dificuldades de inserção no mercado
de trabalho. Não vou aprofundar esta questão, que transcende o
caso particular dos professores. Direi apenas que existe a questão
da liberdade de estudo e ensino versus o acesso a
profissões (teoricamente) muito específicas e reguladas. Todos nos
lembramos da Medicina como exemplo do extremo oposto. Eu tendo a
pensar que houve aqui um erro por causa da questão da qualidade, o
que nos conduz ao erro seguinte.
2. Este erro foi gradual. Há 30 anos as
instituições e cursos eram poucos, todos iguais para cada tipo de
professor a formar, e estreitamente controlados pela administração
central. Depois, com o tempo e com a expansão do sistema, os
números foram subindo e as diferenças entre instituições e cursos
aumentando, com uma legislação permissiva e estática (a última
regulamentação geral é um decreto de 1989), até se chegar à
situação de hoje, em que não há nenhum controlo ou certificação de
qualidade sobre os processos de formação, nenhum mecanismo sequer
conceptual para realizar esse controlo. Ninguém acompanha e
fiscaliza as instituições de formação de professores, os seus
programas de formação, o seu corpo docente, etc. Há hoje – porque
em algum momento foram autorizados – cursos de formação inicial de
professores cujos corpos docentes têm as qualificações mais
diversas, desde os mais qualificados aos mais desqualificados.
Deve ser difícil encontrar em Portugal uma profissão cujo acesso
seja menos regulado do que a docência nos ensinos Básico e
Secundário.
3. Sobre a legislação especial, não vou entrar em
pormenores técnicos. Há – sempre houve – vias alternativas para
chegar à habilitação máxima como professor (a chamada qualificação
profissional). Compreende-se que seja assim por vários motivos,
desde necessidades de docentes em áreas para as quais não existem
cursos de formação específicos (é actualmente o caso das TIC) até
à conveniência de permitir a profissionalização seja a docentes
que entraram no sistema sem habilitações no período de expansão
rápida porque não havia outros candidatos, e que seria injusto
deixar em situação precária depois de muitos anos de serviço, seja
a pessoas que já tenham as necessárias habilitações científicas na
área de especialidade. Mas, a partir de 1998, quando o sistema já
estava estabilizado, quando a fase de expansão rápida já tinha
passado há muito, apareceu um despacho do Ministério da Educação
alargando muito o número e a natureza dos cursos que permitem
aceder à qualificação profissional. Isto foi ainda piorado em
1999. As disciplinas mais afectadas por estes despachos (que é
preciso ler para crer) foram a Matemática e o Português, sempre
apontadas como as mais sensíveis. Para estas duas disciplinas, os
despachos quase podem resumir-se dizendo que qualquer um pode ser
professor delas com acesso à qualificação profissional. No caso da
Matemática, é inequívoco que estes despachos precipitaram o
surgimento de inúmeros desempregados com habilitação profissional
obtida em licenciaturas específicas. E uma grande percentagem dos
professores de Matemática hoje efectivos não tem uma formação
matemática adequada. Nunca ninguém explicou o porquê destes
despachos. Deixo à imaginação dos leitores pensar o que seria um
despacho equivalente para acesso, por exemplo, à profissão de
médico.
4. A ordenação pelo Ministério da Educação dos
candidatos aos concursos de professores pela nota de licenciatura
é algo com efeitos chocantes. Assiste-se hoje aos maiores
oportunismos por parte de instituições que, tendo percebido que
ninguém fiscaliza nada e que o Ministério da Educação só quer
saber da nota final dos licenciados, fazem o que toda a gente pode
imaginar. Sei de muitos casos, mas não fiz nenhum estudo
sistemático. (Chamo só a atenção para que pode acontecer, e
seguramente já aconteceu, algo como isto: um estudante entra com
5, forma-se com 19, e é contratado como professor de uma escola
pública; outro entra com 14, forma-se com 14, e fica
desempregado.) Mas há situações oficialmente documentadas. Por
exemplo: as notas dos estágios. Os cursos têm normalmente cinco
anos, sendo o 5º ano preenchido com um estágio numa escola. O
estágio faz parte da licenciatura e tem uma nota como qualquer
disciplina (sendo normal um estudante ter no estágio uma nota um
pouco superior à média que traz dos primeiros quatro anos). O peso
que as disciplinas têm no cálculo da média final é normalmente
igual ao número de unidades de crédito dessas disciplinas, que por
sua vez reflectem a respectiva carga horária. Como o estágio é uma
actividade muito diferente, há uma certa latitude na fixação do
seu peso. Poderia pensar-se que deveria andar à volta dos 20% (um
ano em cinco), mas costuma ser maior, sendo de 33% nas
universidades públicas. Ora as comissões de avaliação das
licenciaturas em Matemática detectaram casos de instituições e
cursos em que esse peso é 50%. As comissões recomendaram a
correcção desta situação, mas tanto quanto sei nada aconteceu.
Eu creio que há poucas coisas mais
dissolventes numa sociedade do que a aceitação da batota nos
comportamentos sociais. A nota da licenciatura nestes casos é hoje
um indicador sem nenhum valor quanto à qualidade da formação, e
que pode ser manipulado livremente. A liberdade de ensino não pode
ser a liberdade da batota.
Acrescento que o
Provedor de Justiça foi consultado por um Departamento de
Matemática sobre esta questão específica dos estágios, tendo
respondido, essencialmente, que as instituições queixosas podem
fazer o mesmo que as instituições batoteiras.
5. A alteração da Lei de Bases do Sistema
Educativo de 1997, que criou a possibilidade legal de as Escolas
Superiores de Educação formarem professores para o 3º ciclo do
ensino Básico, felizmente não produziu efeitos até hoje, por falta
de regulamentação. Essa alteração foi um erro porque tais Escolas
não têm condições de corpo docente para formar professores para
esse nível, e porque em qualquer caso não havia, já então, motivo
para aumentar ainda mais o número de cursos de formação de
professores, para já não falar no erro geral de pôr instituições
de subsistemas diferentes de ensino superior a organizar cursos
nas mesmas áreas. O erro esteve prestes a ser corrigido em 2004,
com a nova Lei de Bases da Educação a redefinir o ensino Básico
para seis anos, e a colocar o Secundário também com seis anos, de
forma a abranger o actualmente chamado 3º ciclo (o que é uma boa
ideia, alinhando Portugal pela maioria dos restantes países da
União Europeia). Essa Lei, como se sabe, foi vetada pelo
Presidente da República. Seria muito mau para a qualidade do
ensino em Portugal retomar agora o processo de 1997. A
docência no 3º ciclo e no Secundário deve continuar a ser
reservada a diplomados por cursos universitários.
Como corrigir estes erros?
Todos
os erros referidos, com excepção do 5º, já produziram efeitos
impossíveis de inverter ou anular, embora não seja impossível
tentar corrigir ou atenuar alguns desses efeitos. Não vou entrar
em pormenores sobre isso. É melhor olhar para o futuro.
Tudo
gira em torno da seguinte questão: quem pode aceder à profissão de
professor? Simplificando (e isto seja qual for a entidade
contratante: a administração central, regional ou local, e mesmo
as escolas individuais, públicas ou privadas), só vejo duas
lógicas possíveis para responder a esta questão: a existência de
exames nacionais de acesso aos concursos, e a acreditação de
instituições e cursos. Alguns países adoptam um dos caminhos,
outros adoptam o outro. Para Portugal, dada a situação a que se
chegou, creio que se justificaria fazer as duas coisas em
simultâneo: exames nacionais, a que teriam acesso diplomados por
cursos acreditados. (Para mais pormenores, incluindo sobre o
conteúdo dos cursos, ver J. F. Queiró, Formação e contratação de professores, Actas do Seminário "O Ensino da Matemática: Situação
e Perspectivas", Conselho Nacional de Educação, Lisboa, 2003, p.
131-140.)
Houve uma experiência recente em
que se tentou introduzir a lógica da acreditação: o INAFOP
(Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores).
Este mecanismo surgiu, por iniciativa do Prof. Marçal Grilo, então
Ministro da Educação, na sequência da alteração da Lei de Bases do
Sistema Educativo de 1997. Fiz parte do grupo de missão que,
durante um ano, preparou os documentos (publicados
em
livro) que levaram à criação do INAFOP. O que veio a ser
feito não correspondeu exactamente ao que foi proposto, mas seja
como for o INAFOP foi extinto em 2002, quando da mudança de
governo.
Termino com uma
observação muito simples: o Estado tem autonomia para dizer quem
pretende recrutar para professor, e que regras têm que cumprir
as instituições cujos diplomados admite aos seus concursos. Mas
há muitos anos que os sucessivos governos não aplicam políticas
de qualidade nesta matéria tão sensível.