UMA CONVERSA SOBRE MATEMÁTICA NA RÁDIO UNIVERSIDADE DE COIMBRA

 

Paulo Saraiva

Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra

 

João Filipe Queiró

Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra


Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática nº 42, p. 59-70, May 2000

 

Em 29 de Abril de 1998, nos estúdios da Rádio Universidade de Coimbra, no âmbito do programa “Histórias com Números”, teve lugar uma conversa entre Paulo Saraiva, responsável pelo programa, e João Filipe Queiró. O que se segue são excertos, revistos para melhor legibilidade, dessa conversa.
 

 

PS: Num livro que publicou pela editora Gradiva, “A universidade Portuguesa – uma reflexão”, defende que a dicotomia entre Ciência pura e Ciência aplicada é uma falsa dicotomia, digamos, uma maneira simplista de catalogar ou dividir a Ciência e a investigação de um modo geral. No entanto, esta divisão faz-se sentir, mesmo no seio da comunidade universitária. É também esta a sua opinião?

 

JFQ: Eu considero esta dicotomia falsa ou, melhor, não gosto dessa dicotomia porque não gosto de separar a Matemática em ilhas, nem a Ciência em ilhas, por um lado. Por outro lado, porque a designação Ciência aplicada é uma designação que me parece problemática. Não sei ao certo a que se refere, o que é que descreve. Mas pura e aplicada são duas designações que são introduzidas por facilidade de classificação, inclusive de cursos.

     Há uma tensão, mesmo na comunidade dos investigadores, acerca destas matérias, porque as aplicações, socialmente, têm melhor imagem. Pelo menos em certos momentos, os cientistas puros são vistos como uns inúteis, trabalham em coisas...

 

PS: Às vezes até como lunáticos...

 

JFQ: ...eventualmente até lunáticos, trabalham em coisas que não interessam a ninguém, mas são pagos como os outros. Isto pode provocar algumas tensões. E hoje damos com esta situação frequente de as pessoas dizerem que as coisas que fazem são úteis apenas por causa desse aspecto. Nós gostamos muito de dizer que a área que nós estudamos é importantíssima, que, se nós não trabalharmos mais nela, cai a torre da universidade e os automóveis deixam de andar. Acho pouca graça a isso, embora reconheça que, numa época de especialização, há pessoas que trabalham em problemas com um sentido mais teórico e outras que trabalham em questões que foram suscitados por problemas práticos. A Matemática é um instrumento poderosíssimo de tratamento e análise da realidade, e não deixa de sê-lo se for estudada com um sentido teórico. Há muito a dizer sobre isto. Há vários exemplos da História da Matemática – e são exemplos da maior relevância – em que teorias matemáticas que foram desenvolvidas sem estar a pensar num problema concreto e prático vieram muito mais tarde – as vezes muitas décadas ou mais de um século mais tarde – a revelar-se importantíssimas em problemas concretos. Se eu lhe falasse em certos aspectos da Física nuclear, seria capaz de, hoje em dia, estar um pouco fora de moda. Mas para dar um exemplo da maior importância na vida corrente das pessoas, recordo o caso da TAC – a tomografia axial computorizada – que é uma técnica de diagnóstico relativamente recente. Trata-se de obter uma imagem do corpo humano, mas de uma forma diferente da clássica radiografia. Obtém-se uma imagem de uma secção transversal do corpo humano, a partir de raios X. Coloca-se a pessoa dentro de um aro e ao longo desse aro há um feixe de raios X que percorre toda a circunferência com feixes lineares. E depois o resultado no écran, ou no filme, é uma secção no plano em que todos esses retratos foram tirados. Trata-se de recuperar, de reconstruir, uma secção de um corpo sólido, a partir de projecções unidimensionais tiradas em vários ângulos, todos eles dentro do plano da secção que se vai obter. E isto leva a um problema puramente matemático. Aqui há 20 ou 25 anos, um cientista americano e outro britânico tiveram a ideia de desenvolver uma tecnologia deste tipo e descobriu-se que a matemática para isso já estava feita há 80 anos, com outra intenção completamente diferente, e que não era de certeza aplicável nessa altura.

     Este é apenas um de muitos exemplos que sugerem que não se pode, não se deve ter uma visão demasiado estreita destes problemas. Claro que o tipo de discurso que eu estou aqui a ter pode ser usado para tudo, para uma pessoa se dedicar às coisas mais abstrusas e mais inúteis durante décadas, e estar sempre a dizer “Isto pode ser importantíssimo daqui a 100 anos. Não me tirem o financiamento”. Portanto, há sempre duas faces para a mesma moeda.

 

PS: Em todo o caso, é mais fácil obter financiamento para a Ciência aplicada.

 

JFQ: Em Portugal não é tanto assim. Aliás, tem havido reforços recentes do financiamento na investigação com este novo ministério, da Ciência e Tecnologia, reforços muito substanciais em que não se tem notado essa assimetria. Noutros países, creio que sim. Em particular, nos EUA. Mas mesmo aí, não me parece que sejam problemas excessivamente graves. Nesta como noutras matérias, há uma questão de equilíbrio, e sobretudo de não repentismo nem improviso. É preciso ter uma visão relativamente sofisticada destas matérias.

 

PS: Para o cidadão comum, que entende que, se calhar, em Matemática está tudo inventado, o que é que tem a dizer acerca da importância da Matemática hoje em dia? As pessoas utilizam-na de facto no seu dia-a-dia?

 

JFQ: Essa é uma questão interessante, porque permite precisar uma característica da Matemática aplicada, se quisermos utilizar essa expressão, e que é a seguinte: A Matemática tem uma importância enorme e decisiva em inúmeros aspectos do nosso quotidiano, nomeadamente nos aspectos tecnológicos. Mas essa contribuição da Matemática é, as mais das vezes, invisível. Se nós usarmos um produto, ou assistirmos a uma técnica a ser aplicada, ou usarmos uma tecnologia de uma forma geral, vemos só o produto e essa tecnologia, vemos o produto acabado, mas não nos damos conta, muito naturalmente, do que está por trás daquilo que nos chega, daquilo que nós utilizamos. E isso que está por trás, com enorme frequência e em alto grau, tem um grande conteúdo matemático.

     Já referi há pouco uma técnica de diagnóstico, mas poderia falar por exemplo também nas telecomunicações, numa grande quantidade de tecnologias que nós usamos todos os dias, em que a parte da matemática é muito grande. Estas tecnologias põem problemas matemáticos muito variados e profundos. Mas nós não os vemos. Portanto, uma das características da contribuição da Matemática na tecnologia de hoje, que é permanente, é a sua invisibilidade. Isso cria problemas, primeiro na época em que nós vivemos, e segundo num país como Portugal. Primeiro, na época em que nós vivemos há muito a tendência para dizer que aquilo que não se vê não existe. Isso é particularmente verdade em certos domínios da actividade humana, mas é uma tendência geral. O segundo problema, mais relativo a Portugal, é o de que no nosso país há uma tendência crescente para não se fazerem as coisas, e se comprarem feitas. E em particular os produtos tecnológicos...

 

PS: O satélite português é um exemplo disso...

 

JFQ: Esse foi um caso que eu não estudei, mas é uma reputação que tem. Os produtos tecnológicos, num país como Portugal, tendem a entrar feitos e, portanto, fica desvalorizada a contribuição, grande e substancial, da Matemática nos países de origem. É uma atitude que eu acho preocupante se se generalizar em Portugal, porque tudo parece muito fácil. Hoje em dia, para, como se diz, navegar na Internet, o que é que é preciso fazer? É só preciso ir a uma loja de computadores, onde estará de certeza alguém dizendo, de forma insistente, que, quem não souber usar computadores, dentro de cinco anos é analfabeto. Normalmente, são pessoas interessadas em vender computadores que nos dizem isso. Portanto, num país como Portugal, a Matemática tem esse problema adicional, que é o de ficar desvalorizada a sua contribuição, que é muito generalizada, muito profunda, permanente e crescente nas tecnologias que nós usamos.

 

PS: Em todo o caso, para o português comum subsiste ainda a questão de saber para que é que a Matemática serve. E essa ignorância não passará também por uma falha ao nível da divulgação da Matemática?

 

JFQ: Pode passar. Na maior parte dos países chamados evoluídos há um reconhecimento na comunidade matemática de que há um esforço a fazer de explicação, de informação sobre a importância da Matemática. E, aliás, não só da Matemática, mas da ciência em geral. Passa com certeza por um esforço também na área do ensino. O ensino da Matemática é tradicionalmente impopular. Não sei se há estudos sobre isso. Eu recordo-me de uma imagem que me marcou. Há uns 15 ou 20 anos, estava a ver um concurso na televisão, e há uma concorrente que está na entrevista preliminar e perguntam-lhe qual é a sua profissão. Era um daqueles concursos televisivos que se passam num teatro, com centenas de pessoas a assistir. E ela disse: professora de Matemática. E seguiu-se, ipso facto, uma enorme vaia. Foi uma coisa de que nunca mais me esqueci. Não sei se isto serve para ilustrar a tal fama que a Matemática tem.

 

PS: Outra ideia que a pode ilustrar, é o facto de os pais serem mais condescendentes para com uma negativa a Matemática do que perante uma negativa a outra disciplina.

 

JFQ: Exacto. O professor de Matemática tem uma imagem duvidosa. Um professor de Matemática, socialmente, o que é? É uma pessoa que nos reprovou, ou que nos há-de reprovar um dia. Isto é uma coisa que cria preocupações às pessoas de Matemática. Ou devia criar (os matemáticos são frequentemente distraídos). E tenho assistido a discussões interessantes, por exemplo, sobre a seguinte questão: deve dizer-se, à partida, que a Matemática é difícil? É uma discussão que tem havido. Por exemplo, o Doutor Graciano de Oliveira tem a posição de que não se deve dizer às pessoas que a Matemática é fácil, que isso é estar a enganá-las. Mas há outras pessoas que dizem que, se se diz que a Matemática é difícil, se agravam ainda mais os problemas das pessoas com a Matemática, porque isso terá um efeito inibidor. Sobre esta matéria nunca consegui tomar posição. Creio que uma boa analogia seria a seguinte. A Matemática é uma linguagem com uma característica que não é às vezes suficientemente frisada: é que é uma linguagem extremamente abreviada. É talvez a linguagem mais abreviada de que a humanidade dispõe, pela progressiva introdução de notações várias e muito precisas, para resumir frases, afirmações e definições, que, de outra forma, seriam intoleravelmente longas. (Aliás, há 500 anos, quando não havia esta preocupação simbólica, os textos matemáticos eram longuíssimos e muito prolixos.) Como exemplo dessa característica da Matemática, vejamos uma frase que se diz todos os dias: “a derivada do seno é o coseno”. Esta frase, se explicada – não digo demonstrada, a demonstração é outro negócio que viria depois – mas se explicada em linguagem corrente, por extenso, não se consegue fazer isso em menos de duas páginas, ou mais. Explicar o que é o seno já é de si uma complicação; explicar o que é o coseno é uma complicação parecida; e depois explicar o que é a derivada. Explicar por extenso! A derivada é um conceito que se pode explicar em linguagem corrente, mas que demora algum tempo. Resultado: a Matemática exige um esforço de processamento de informação que é maior do que em relação à maior parte das outras áreas do conhecimento. (Nesse aspecto, eu acho que a única área que é comparável, para pior, digamos, é a Física. Mas entre a Física e a Matemática não há fronteiras. Não são a mesma área, mas não há uma fronteira nítida que as distinga.) Este aspecto da Matemática faz com que seja necessário algum esforço para se entrar nela. E a analogia que eu faço é esta: é como correr a maratona. Correr, qualquer um corre. Portanto, estudar qualquer matéria não matemática qualquer um estuda. Correr a maratona, já exige alguma dedicação, algum esforço. Eu não digo ganhar a maratona, isso será, mantendo a analogia científica, para os prémios Nobel e coisas parecidas. Não é ganhar a maratona. Não é ser a Rosa Mota ou o Carlos Lopes. É conseguir fazer uma maratona. Exige alguma dedicação, e esta característica da Matemática é que faz com que não se entre nela com tanta facilidade como se entra noutras áreas.

 

PS: E é um erro fazer crer aos nossos alunos que de facto a Matemática é fácil.

 

JFQ: Levanta-se este problema: como conseguir – e há divergências, não há respostas – como conseguir a adesão do aluno a este esforço mínimo que a Matemática exige? Há pessoas que têm a concepção de que se deve ir lá por meios lúdicos, pôr os alunos a brincar. A isto responde-se com a preocupação de que, à força de tanto brincar, não se aprende depois nada. Os outros contestam a abordagem mais clássica: “mas isso depois mata metade... aniquila as pessoas”...

 

PS: Ainda não chegou a uma posição definitiva.

 

JFQ: Não, e não há. Não encontrei uma resposta final, porque não há. Este esforço de se entrar na Matemática, este bilhete de entrada é mais caro que noutras áreas. Isso parece-me a mim inequívoco, e pode explicar os problemas que existem. E não há nenhuma resposta final, definitiva. Há visões intermédias, compromissos. Portanto, se não há, muito menos eu posso dá-la.

 

PS: Falámos já acerca das aplicações da Matemática...

 

JFQ: Se me permite, eu interrompia-o, porque queria frisar um outro aspecto da Matemática que a mim me atrai muito e que pode atrair também outras pessoas. Temos falado muito da relevância decisiva da Matemática na sociedade, hoje em dia, e essa relevância é um facto. A Matemática é uma linguagem e uma ferramenta absolutamente indispensável para todas as áreas da ciência e da tecnologia, e para outras áreas. Mas há um aspecto adicional da Matemática que a mim me atrai bastante, e que gostaria de frisar aqui. A Matemática é uma área do saber de enorme perenidade, de enorme estabilidade. E numa época em que tudo muda muito depressa – inclusive muitas coisas que são verdade hoje, amanhã já são mentira – a perenidade da Matemática é para mim uma característica positiva. Não digo a sua cristalização, mas há uma permanência do edifício matemático que pode ser atraente para muitas pessoas, e para mim é.

 

PS: Em que sentido essa permanência pode ser atraente?

 

JFQ: Uma ideia que provavelmente já conhece é esta. Se nós quisermos dialogar com os antigos gregos, só o podemos fazer de forma a isso ter algum sentido – dialogar de forma real, não é fazer História – só o podemos fazer nalgumas (poucas) áreas: na Literatura, na Filosofia em sentido lato, e na Matemática. Dialogar de forma produtiva, repito, não é fazer História ou Arqueologia. E isso atrai-me muito. O conhecimento matemático, de uma forma geral – não estou a dizer este ou aquele facto, este ou aquele capítulo da Matemática – tem uma grande continuidade. Talvez por lidar com entidades que não são contingentes, ou não tão contingentes como outras que são objecto de outras áreas do saber.

 

PS: Essa é uma característica que permite que, por exemplo, a Geometria de Euclides possa ainda ser ensinada hoje tal como na época dos antigos gregos.

 

JFQ: Sim. Não exactamente na sua forma original. Há um ponto ou outro diferente, mas no essencial os Elementos de Euclides são um texto que se pode ler hoje de forma não histórica, isto é, da forma como se lê um texto publicado nos nossos dias. É a isso que eu me refiro.

 

PS: Outro assunto sobre o qual eu gostaria de falar é acerca da investigação nas universidades. Podemos dizer que ela é incentivada já desde os primeiros anos da universidade?

 

JFQ: Esse é um problema que se põe com alguma frequência, sobretudo por comparação com outras áreas, como, por exemplo, a Química ou a Biologia. Ora, a palavra investigação não tem exactamente o mesmo sentido, creio, na Matemática. Ou, melhor, deve ter o mesmo sentido, mas não é concretizável essa actividade da mesma forma que noutras áreas. Enquanto noutras áreas é concebível que se ponha um estudante dos primeiros anos – por maioria de razão, dos últimos anos – num laboratório a trabalhar numa equipa, e o director da equipa de investigação diz “vá lá lavar estes tubos de ensaio” ou “observe, ponha ali, misture acolá e aqueça aquilo”, e se pode dizer em rigor que o estudante está a participar num esforço de investigação, na investigação matemática isso não faz tanto sentido. Em todo o caso, eu devo dizer que a atitude mental, a atitude de espírito de um estudante do primeiro ano de Matemática que tenta resolver um problema que lhe é posto, é exactamente a mesma atitude que tem um investigador quando procura resolver um problema que tem entre mãos. A única diferença é que, provavelmente, no primeiro caso esse problema já foi resolvido por outros, enquanto que no segundo caso, idealmente, normalmente, esse problema não tem uma resposta conhecida. Mas a atitude mental é a mesma.

 

PS: Podemos dizer contudo que ela é incentivada desde os primeiros anos da licenciatura pelos professores?

 

JFQ: Boa pergunta.

 

PS: Estou a perguntar-lhe isto porque num dos problemas que aponta no seu livro “Universidade Portuguesa – uma reflexão”, fala bastante das mudanças que tem havido na Universidade Portuguesa, com a massificação do ensino universitário. Essa massificação trouxe com certeza problemas de vária ordem, nomeadamente, ao nível da qualidade de ensino.

 

JFQ: Bom, isso parece-me bastante evidente. Quer dizer, se eu tiver 200 alunos à frente numa sala de aula, é mais ou menos inevitável que a qualidade da nossa actividade, da minha actividade com eles e da deles comigo, não será a mesma que se tiver só 10 ou 5 alunos. Não há remédios fáceis para isto. Eu tenho a ideia de que o trabalho universitário é um trabalho muito individual, muito próprio do estudante. Se não é, devia ser. Não vejo com simpatia esta ideia de que cabe ao professor seduzir, estimular o estudante, não sei, talvez fazendo o pino na sala de forma a atrair o estudante e a tentar levá-lo a estudar. Não sei como é que isto se resolve. Também não sou a favor de dizer: “Eu venho para aqui, dou as minhas aulas, e vocês entendam-se! Façam como quiserem! Estudem, que eu também já passei por aí!” Também não me agrada isto. Há aqui um problema de equilíbrio. De novo não tenho uma resposta mágica, nem uma solução definitiva. Estão postos os problemas. A massificação agrava esses problemas. Problemas de desmotivação, de alienação do estudante, de dúvida, de maiores dificuldades no estudo. Porque o estudante tem de ser alertado para o seu papel exacto, e de que há uma mudança, um salto do ensino secundário para a universidade.

     Voltando à questão da resolução de exercícios, que é uma faceta clássica do trabalho do estudante universitário, eu acho que será bom tudo o que estimule o estudante a pensar por si. Isto é que é decisivo: pensar por si, defrontar-se com os problemas, defrontar-se ele e o problema na tal atitude que depois é análoga à atitude do investigador, com a diferença de que, num caso, o problema pode estar resolvido, no outro caso pode não estar.

 

PS: Um assunto final que gostaria de debater consigo é o da formação de professores de Matemática. Este problema é tão actual dado o recente despacho ministerial, que alarga sobremaneira a lista dos cursos que concedem habilitações próprias para o ensino de Matemática, no terceiro ciclo e no secundário. Esta medida, de certa maneira, descredibiliza os ramos educacionais dos cursos de Matemática. É também essa a sua opinião?

 

JFQ: Já não é a primeira vez que surge um despacho desse tipo. Na década de 80 aconteceu uma ou duas vezes uma coisa parecida, que se traduz em dizer que têm habilitação própria para o ensino da Matemática, no ensino básico e no ensino secundário, licenciados em cursos muito variados, a maior parte dos quais de engenharia. Este despacho provocou uma certa emoção, mas a questão da formação de professores é uma questão complicada e tem de ser vista sob uma perspectiva mais lata.

 

PS: Na sua opinião, as universidades devem ou não formar futuros professores?

 

JFQ: Eu creio que sim. Muito rapidamente, o problema da formação de professores põe-se assim. Há 30 anos formavam professores de Matemática para o ensino não superior, mas também não primário, apenas três escolas no país: as Faculdades de Ciências de Lisboa, do Porto e de Coimbra. E estes cursos de formação de professores eram rigorosamente iguais nas três, formando professores que iam ensinar uma população escolar que, comparada com a de hoje, era reduzida. Nestes grupos de idades, no antigamente chamado liceu, frequentava o sistema de ensino uma percentagem que eu não sei quantificar exactamente, mas que era muito mais pequena que a de hoje, que se aproxima dos 100% no básico, e no secundário já não andará longe disso.


PS: Portanto, as exigências do sistema vão no sentido de se precisar cada vez mais de professores de Matemática.

 

JFQ: Nestes últimos 30 anos houve essa transformação. O crescimento deu-se nestes 30 anos. O crescimento neste momento está já quase estabilizado. Houve esta explosão da população escolar. Há portanto um problema de números. E depois há também um problema da composição desta população escolar. Enquanto se podia argumentar, aqui há 30 anos e nas décadas anteriores, que havia uma certa homogeneidade dessa população, agora não há. Essa população é hoje mais variada, e chegam ao sistema de ensino alunos com perfis muito variados, no plano das expectativas, dos seus hábitos, dos ambientes de que provêm. E isto causa tensões. Mas, falando do problema do número, isto criou ao longo destes 30 anos necessidades súbitas para as quais o país não se preparou. O número de estudantes cresceu, e depois o país tentou acompanhar, ao nível dos professores, de uma maneira qualquer. Criaram-se necessidades de professores, e em particular de professores de Matemática, que foram satisfeitas, como em Portugal é uso, de forma mais ou menos improvisada. Remendo aqui, remendo acolá.

 

PS: E estes despachos sucessivos que vão saindo são esses tais remendos.

 

JFQ: Exacto. A justificação, digamos, nobre destes despachos – admito que haja outras menos nobres, não sei – é de que é preferível ter no sistema e espalhadas pelo país pessoas licenciadas, por exemplo, em engenharia, a ensinar Matemática, do que não ter ninguém e tapar esses buracos da forma mais desqualificada que é possível. Eu estou convencido de que esse é um problema que tenderá a resolver-se, porque a população escolar está a estabilizar, precisamente porque já se aproxima do pleno, e além do mais há problemas de não crescimento e até diminuição demográfica, que têm o mesmo efeito. Isto, na minha opinião, diminuirá a necessidade de recurso a pessoas não profissionalizadas da forma habitual, e que é a dos cursos específicos para a formação de professores.

     Há muitas polémicas sobre se esses cursos devem ser desta forma ou daquela, como é que devem ser compostos. Há uma grande discussão sobre isso, e aliás, por um acidente circunstancial, tenho participado nessa discussão num grupo a que pertenço no Ministério da Educação. Eu creio que num sistema estabilizado faz algum sentido os professores provirem de cursos concebidos para formarem professores. Há quem diga que, por exemplo, um engenheiro pode perfeitamente ensinar Matemática; até tem com a Matemática uma relação mais concreta, etc. Eu acho que essa é uma ideia com pés para andar no dia em que os matemáticos puderem construir pontes também, e fazer casas e estradas, porque os matemáticos são mentes muito versáteis e com certeza que também saberiam pôr um tijolo em cima do outro – creio que é disso que se trata ao construir pontes e casas. Em todo o caso, é uma controvérsia que existe. Este despacho que saiu em Fevereiro de 98 – e que aliás produziu efeitos imediatos, uma vez que estava a decorrer um concurso nacional – não sei se será para ficar. Quer dizer, se não for revogado por outro despacho ou por outro tipo de legislação, ficará com certeza. Eu creio que não deveria ficar quando deixasse de se justificar por uma emergência de necessidades de professores, e portanto deveria ser revogado já. Já produziu efeitos neste concurso nacional – não conheço os números, mas devem ter entrado ao abrigo deste despacho muitos licenciados em engenharia. Assim que seja conhecido o número de vagas nacionais que, apesar do despacho, não foram preenchidas, se esse número for muito baixo o despacho deve ser imediatamente revogado. Se esse número for alto, está posto um problema. Em todo o caso, creio que o problema deve sempre ser resolvido com uma grande preocupação de qualidade, de coerência, e a pensar no futuro, porque um professor que se “injecta” no sistema de ensino tende a ficar lá muito tempo.

 

PS: E não esqueçamos que, neste momento, estão a ser formados professores de Matemática já não só nessas três universidades...

 

JFQ: Exacto. Nestes 30 anos em que se processou a explosão da população escolar, de três universidades passámos para 12 ou 13 públicas, mais umas tantas particulares, e depois um tipo novo de escolas, que são as politécnicas...

 

PS: As ESE’s.

 

JFQ: No caso da formação de professores, as Escolas Superiores de Educação, das quais também há muitas públicas, e umas quantas privadas. Ou seja, o panorama mudou completamente. E devo aliás dizer que por causa disto é que está em curso a preparação de uma completa mudança da regulação jurídica do sistema de formação de professores em Portugal, porque se percebeu rapidamente que o Estado já não pode pretender continuar a fazer o que fazia até aos anos 60 e 70, que era regular de forma muito próxima e muito estrita as três Faculdades de Ciências (no caso das Letras seriam outras três), com planos de estudo iguais, e com um controlo muito próximo. Realmente, em 30 anos o país mudou neste aspecto muito. Portanto, as regras têm de mudar. É impossível tentar regular 30 ou 40 ou 50 instituições, todas dessa maneira. Têm que ser reguladas de outra maneira. Como? Não fazem mais sentido os despachos de habilitações conferindo habilitações pelo nome dos cursos: um curso que se chame de Matemática, pode formar professores de Matemática. Isto é um nadinha ridículo! Tem de se olhar para o conteúdo dos cursos. Olhar para o conteúdo dos cursos ainda pode ser feito de várias formas. O último afloramento da velha maneira de olhar as coisas (e era um esforço com virtualidades, mas que depois não vingou) foi uma tentativa de portaria das habilitações que pretendia regular, planear os cursos ao milímetro dentro das instituições. Era uma maneira. Eu creio que o Estado agora mudou de atitude. Em vez de pretender conceber e regular a priori os cursos, o que dá é umas indicações gerais de regras para os cursos, as suas componentes, o seu andamento, o seu corpo docente, exigências de qualidade científica, etc. E depois, e isto é que é verdadeiramente novo, cria-se a figura de um “polícia”, que é um organismo, um instituto público, que está em vias de criação legal, e que vai depois ver se estas regras gerais estão a ser cumpridas e se os cursos correspondem ao objectivo para que existem. Isto é verdadeiramente novo. É uma lógica diferente, a lógica da acreditação, que é a existente na Ordem dos Engenheiros. A Ordem dos Engenheiros tem um mecanismo para andar pelo país, pelas escolas que são, ou dizem que são, de Engenharia, e vai a um curso, uma engenharia de qualquer coisa,...

 

PS: Vê o elenco das cadeiras...

 

JFQ: ...vê as cadeiras, vê os professores, vê os programas, vê as várias áreas que são cobertas, e depois diz “Sim, isto é um curso acreditado”, ou diz “Não, não é”. E nós temos exemplos, aliás um pouco desagradáveis, de cursos que foram criados e depois não foram acreditados. Mesmo de universidades públicas. Ora, esta é uma lógica que a mim me parece muito civilizada. Isso corresponde ao momento que nós vivemos de uma enorme diversidade de modelos, de escolas, e de um número muito grande de escolas. Tem de ser assim. Já não se pode ir lá pela via da regulação apriorística, que depois não quer saber o que é que vem a seguir: “Se as escolas cumprirem, muito bem, se não cumprirem também muito bem, que ninguém vai lá ver.” Esta lógica extinguiu-se, não pode continuar. Os tempos que aí vêm para os cursos de formação de professores, e se calhar também para muitos outros cursos, são de fixação de regras gerais a priori, e depois de controlo do seu cumprimento a posteriori.

 

Nota de J.F.Q., Fevereiro de 2000 – O INAFOP (Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores) foi já criado e está a começar a sua actividade. Sem prejuízo das considerações feitas na parte final da conversa com Paulo Saraiva, parece-me oportuno neste momento dizer o seguinte. Ao contrário do que seria lógico e de esperar, o Estado não publicou até agora as regras de qualidade que o INAFOP vai “fiscalizar”. Essa demora pode ser devida a pressões corporativas de instituições a quem não interessam exigências de qualidade científica nos cursos e nos seus corpos docentes. Ora um “polícia” com más regras é capaz de ser pior do que polícia nenhum. Seria bom que todos os meios interessados na qualidade da formação de Professores estivessem atentos a esta situação, que pode vir a revelar-se muito grave.