Educação: silêncios e problemas

João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra

Público, 9 de Dezembro de 1999, p. 9.


A educação esteve ausente do debate durante a campanha para as legislativas. Uma ou outra proposta, sugerida pela oposição no início da campanha, rapidamente foi votada ao esquecimento. Como é que isto pôde acontecer? Como é que o tema mais decisivo para o futuro de Portugal pôde ser o mais ausente do debate eleitoral?

Parece que isto não aconteceu por acaso. Parece que, segundo todas as sondagens, a educação não é assunto que esteja a preocupar os portugueses. Para isto haverá boas e más razões. Entre as boas está a postura do ministro cessante, séria e com imagem de competência. Entre as más está o facto de que os movimentos do sistema educativo não são percebidos por todos, e de que os efeitos das políticas erradas - como os das certas - só se revelam plenamente a prazo.

Ora há muito a dizer sobre o estado da educação em Portugal. E é pena que a opinião pública se interesse pouco pelas opções políticas de fundo nesta matéria. É pena porque a educação é assunto demasiado importante para ser deixado aos especialistas.

Na última legislatura foram feitas algumas coisas boas pelo Governo, mas restam muitas coisas para fazer e, infelizmente, algumas para desfazer. Falarei aqui de quatro: defeitos na gestão das universidades, cegueira do Estado no emprego de licenciados, indefinição do ensino politécnico e experiências não avaliadas no ensino básico.

1) A gestão das universidades é da responsabilidade delas próprias, de acordo com a Lei da Autonomia de 1988. Mas a lei impõe, nos órgãos centrais das universidades, a presença de um número excessivo de assistentes, funcionários e sobretudo estudantes. Isto descredibiliza seriamente a acção de órgãos que têm importantes competências na condução das universidades, incluindo voto em matérias como a organização de licenciaturas, mestrados e doutoramentos e da actividade de investigação. Quando é que este grave defeito da Lei da Autonomia será corrigido? Porque é que nesta matéria ninguém se preocupa com a aproximação à média europeia?

2) No mercado de emprego, o Estado tem uma presença forte do lado da "procura" de licenciados, mas essa presença é irracional, o que perturba seriamente as instituições de Ensino Superior. O Estado, muitas vezes, é cego ante a questão da qualidade.

Um sector em que isso é nítido é o dos professores do ensino básico e secundário, em que não existe nenhum mecanismo de concorrência. E aí a situação foi agravada com os recentes "despachos de habilitações", que conferem habilitação própria para o ensino, por exemplo, da Matemática, a diplomados com 1/3 da formação científica dos licenciados especificamente para a docência (enquanto estes começam a ir para o desemprego). É urgente a revogação destes despachos, e a fixação de critérios de qualidade precisos na formação de professores. E é urgente terminar com a cegueira do Ministério, que ordena os candidatos a professores pela nota de licenciatura, não querendo saber como, nem onde, essa nota foi obtida.

Neste como noutros casos, a equidade, e os interesses do país em matéria de qualidade, exigem que quem é melhor possa demonstrar que é mesmo melhor. É essencial acabar com as "lutas de secretaria", em que apenas se mede a capacidade das pessoas e instituições para influenciar o poder político.

3) Uma das medidas do programa do Governo fala da "afirmação do ensino politécnico". Como vê o Governo, precisamente, esta "afirmação" do politécnico? Como encara a reivindicação continuada e agressiva, por parte de alguns dirigentes do politécnico, de mais direitos e mais prerrogativas para essas escolas - nomeadamente a equiparação administrativa dos seus licenciados aos das universidades, para já não falar da espantosa reclamação da possibilidade de atribuir graus de mestre e doutor - acompanhada da recusa cuidadosa de mais deveres, nomeadamente na exigência da carreira docente? Para uma escola superior pode dizer-se: mostra-me o teu corpo docente, dir-te-ei quem és. E para um sistema de ensino superior: mostra-me o teu estatuto de carreira docente, dir-te-ei o que pretendes ser.

Sobre a "tentação universitária" de alguns dirigentes do politécnico, é preciso dizer com clareza que se o país concluísse que não se justifica um subsistema de ensino superior com vocação específica para a formação de técnicos, o caminho a seguir não seria a transformação dos politécnicos em universidades, mas sim a sua integração nas universidades. A pretender-se qualquer "convergência" com as universidades, haveria que proceder a exame cuidadoso e individualizado das qualificações e graus dos docentes do politécnico, distinguindo a categoria de cada docente da sua efectiva graduação académica, numa espécie de aplicação retroactiva do Estatuto da Carreira Docente Universitária. Um ensino superior com objectivos de qualidade exige graus credíveis, e não pode tolerar qualquer tipo de graduação administrativa.

4) O ensino básico tem sido palco de muitas experiências nos últimos anos. A pretexto das tensões provocadas pelo alargamento da escolaridade obrigatória para nove anos, multiplicam-se as iniciativas no sentido de aligeirar, flexibilizar e relativizar os conteúdos lectivos. Mas é preciso resistir à tendência de, sob a capa de ensinar diferente, ensinar pior.

Ensinar menos e pior, a pretexto da pobreza e da exclusão, é trair as crianças e jovens provenientes de meios desfavorecidos, e na prática proibi-los de terem expectativas de valorização. É não lhes dar oportunidade de se prepararem para profissões e carreiras de futuro e condená-los à perpetuação das suas condições de vida. A inclusão e coesão sociais são mais bem servidas se tivermos essa verdade simples em mente, e abandonarmos discursos mal orientados que levianamente equiparam vontade de instruir com vontade de excluir.

O Governo propõe-se agora, segundo diz no seu programa, desenvolver uma "cultura de avaliação" no ensino básico. Mais vale tarde que nunca. Avaliar as experiências, avaliar todo o sistema - alunos, professores, escolas, programas - é uma boa ideia. Fica a curiosidade de saber como é que a "flexibilidade" se compatibiliza com a "cultura de avaliação".

Talvez nenhuma das medidas necessárias na área da educação traga votos a curto prazo. Mas o que está certo é o que tem efeitos positivos a longo prazo, mesmo que provoque algum ruído e turbulência a curto prazo. Fazer o que está certo, fazer o que assegura o melhor futuro, é, como dizia alguém, o que distingue o estadista do simples político.