João Filipe Queiró
Departamento de
Matemática - Universidade de Coimbra
Os estudos de História da Matemática têm vindo a despertar interesse crescente em Portugal. Na principal origem deste facto estiveram as actividades de celebração do bicentenário da morte dessa figura fascinante que foi José Anastácio da Cunha, em 1987, e uma das primeiras manifestações do referido interesse foi a criação do Seminário Nacional de História da Matemática, que hoje se reune mais uma vez.
Penso que neste momento se justifica uma reflexão sobre os rumos que os estudos de História da Matemática poderiam ou deveriam tomar no nosso país. As curtas palavras que se seguem são a minha contribuição para essa reflexão. Elas contêm a minha opinião sobre o assunto, que aliás já exprimi em ocasiões anteriores.1
Se formos procurar, vemos que há exactamente quatro obras de alguma dimensão que se podem considerar "Histórias da Matemática em Portugal":
Memorias históricas sobre alguns matemáticos portugueses, e estrangeiros domiciliados em Portugal, ou nas conquistas - António Ribeiro dos Santos, 1812
Ensaio histórico sobre a origem e progressos das Matemáticas em Portugal - Francisco de Borja Garção Stockler, 1819
Les Mathématiques en Portugal - Rodolfo Guimarães, 1900-1909
História das Matemáticas em Portugal - Francisco Gomes Teixeira, 1934
Atentemos nas datas. É significativo que nos últimos 60 anos não haja uma única tentativa de síntese neste terreno. E é significativo porque as "Histórias" existentes de alguma forma fixam um paradigma, uma maneira de ver as coisas, que influencia qualquer leitor que tente obter informação sobre o assunto.
Fique desde já claro que todos os quatro textos citados são de grande valor, e cada um a seu modo foi importante contribuição para os estudos de História da Matemática no nosso país. Rodolfo Guimarães, por exemplo, depois de uma nota histórica, tem como objectivo listar todos os textos matemáticos de autores portugueses, ou publicados em Portugal, até ao fim do século XIX. Gomes Teixeira, por seu lado, dedica grande parte da sua História à análise aprofundada de quatro grandes figuras, Pedro Nunes, Anastácio da Cunha, Monteiro da Rocha e Daniel da Silva. Quanto a Stockler, foi um pioneiro, e o seu Ensaio foi obra marcante. O que se vai dizer a seguir não pretende menorizar estas personalidades e as suas obras.
A verdade é que os livros de Garção Stockler, Rodolfo Guimarães e Gomes Teixeira2 reflectem uma visão que se poderia chamar "antiquada" da História de Portugal, e essa visão tende a obscurecer certos períodos e a distorcer a abordagem ao nosso passado, no caso o nosso passado matemático.
A visão a que me refiro é a visão, digamos assim, "dominante" da História geral de Portugal no século XIX. É a visão das Luzes, da influência da Revolução Francesa, do liberalismo. Muito natural e compreensivelmente, esta visão tem uma leitura quase "de combate" sobre o passado recente, e nessa leitura é praticamente um axioma que os dois séculos anteriores a Pombal foram uma época de trevas, de obscurantismo, de intolerância e de ignorância. O negrume é ainda maior quando se pensa no Humanismo de meados do século XVI, que em Portugal esteve ligado ao florescimento da arte, da cultura e da ciência que acompanhou a era dos Descobrimentos.
Esta visão é reflectida exactamente no Ensaio de Stockler, que, recorde-se, é de 1819. Portugal tem na Matemática um período de esplendor no século XVI, em que se destaca Pedro Nunes, depois um período de decadência que dura 200 anos, até à Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, em que aparecem figuras importantes como José Anastácio da Cunha.
Quase 100 anos depois da publicação do Ensaio de Stockler, Rodolfo Guimarães retoma ponto por ponto, na nota histórica com que se inicia a sua obra, a mesma visão, chegando quase a transcrever partes do livro anterior. Quanto a Gomes Teixeira, não imita nem transcreve, mas a visão geral é ainda a mesma.
Ora bem. O estudo da História Geral do nosso país evoluiu muito do século passado até hoje. Em particular, a distância aumentou em relação à época da Inquisição e da influência dos jesuítas na sociedade portuguesa, e esse período é hoje estudado e analisado como qualquer outro na História de Portugal.
Mas na História da Matemática não saímos do sítio! A visão geral continua a mesma. Como os estudos sobre autores particulares e pontos de pormenor são raros,3 temo-nos visto reduzidos à repetição sem fim dos mesmos pontos de vista, sem nova informação, e remetendo-nos permanentemente às mesmas fontes, que são basicamente as indicadas.
Creio que neste momento é apropriado ter as ideias claras e propor o que pomposamente se poderia chamar uma "mudança de paradigma". A visão atrás descrita, sem prejuízo do grande valor e importância de autores como Stockler, Guimarães e Teixeira, parece hoje esgotada, redutora, irremediavelmente datada e, pior, anestesiante. A continuar assim, longos períodos e muitos autores permanecerão em obscuridade na História da Matemática em Portugal.
Para tal mudança adianto como possíveis as seguintes linhas:
1) Prioridade ao estudo do período que medeia entre a morte de Pedro Nunes, em 1578, e a Reforma Pombalina, em 1772, e também do século XIX.4 Estes são os períodos que menos atenção têm recebido e surgem quase envolvidos numa aura de mistério.5 Em ambos os casos nos arriscamos a ver estrangeiros a descobrir e a fazer o que talvez nos devesse caber a nós.
2) Prioridade àquilo que se costuma chamar "História positiva": listagem de autores e obras (estendendo e completando o extraordinário trabalho de Rodolfo Guimarães), localização de obras — impressas e em manuscrito — e sua microfilmagem, programa de edição (ou reedição) das mais significativas. Estudo dessas obras. Estudo da recepção em Portugal dos grandes avanços matemáticos dos séculos XVII e XVIII. Quanto ao século XIX, estudo das teses de Coimbra e das comunicações e memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Tudo isto dentro da consciência perfeita de que a História da Matemática em Portugal tem que ser uma História de fontes primárias, com total abandono da repetição acrítica de fontes secundárias.
3) Estudo, com base no material recolhido, de algumas hipóteses, que poderiam servir de baliza e orientação neste esforço. Exemplos (entre outras possíveis):
- Existiu ou não ênfase quase exclusiva na "Matemática Aplicada" em Portugal nos séculos XVI a XVIII?
- Se sim, teve isso ligação essencial com o esforço dos Descobrimentos, a rotina das grandes viagens oceânicas, as necessidades concretas resultantes do contacto com os territórios de destino e respectivas populações?
- Ainda nesse caso, teve tal ênfase influência na falta de professores de Matemática, mesmo a nível elementar, que parece detectar-se em Portugal no século XVIII?6,7
- A confirmar-se um panorama de grande pobreza na nossa Matemática no período 1578-1772, será adequado o uso da expressão "decadência", que sugere queda de alguma (ainda que pouca) altura? Por outras palavras, terá Pedro Nunes sido o expoente de uma plêiade, mais ou menos numerosa, de matemáticos quinhentistas, ou tratou-se de uma singularidade absoluta?
- Mantiveram-se os matemáticos portugueses no século XIX minimamente actualizados em relação à Matemática europeia?
Termino com o óbvio. Nada disto será feito se não houver ninguém
que o faça. Este Seminário, criado em 1988, surgiu já do
reconhecimento de que a História da Matemática em Portugal não
está feita. Creio que todos os participantes no Seminário
acreditam que vale a pena fazê-la, e que essa é uma tarefa que
cabe a matemáticos, em particular a matemáticos portugueses. Quem
sabe se dentro de alguns anos — que nunca poderão ser poucos — não
se estará em condições de escrever uma nova História da Matemática
em Portugal?
* Agradeço a Luís Saraiva, responsável pelo Seminário, o convite que me dirigiu. (regressar ao texto)
1 A Matemática (1537-1771), manuscrito de Julho de 1993, a publicar em História da Universidade em Portugal (dir. A. Ferrer Correia, L. A. de Oliveira Ramos, Joel Serrão, A. de Oliveira), vol. I, ed. Universidade de Coimbra e Fundação Gulbenkian; Minas: da prática à teoria, recensão do Ensaio sobre as Minas, de José Anastácio da Cunha, Boletim da SPM no 30, p. 79-80, 1994. (regressar ao texto)
2 O texto de Ribeiro dos Santos é um pouco marginal nesta questão. (regressar ao texto)
3 Devem citar-se, entre os poucos nomes relevantes, além de Gomes Teixeira, os de Vicente Gonçalves e Luis de Albuquerque. (regressar ao texto)
4 Claro que esta prioridade nunca poderia ser exclusiva. Há muito para estudar em Pedro Nunes e mesmo antes, como há em relação ao século XX. (regressar ao texto)
5 Sobre o primeiro destes períodos há trabalhos, nomeadamente, de Luis de Albuquerque e Tiago de Oliveira, e sobre o segundo, à parte o já mencionado estudo de Gomes Teixeira sobre Daniel da Silva, há os trabalhos recentes de Luis Saraiva. (regressar ao texto)
6 Deve aqui fazer-se referência ao "Modelo Lusitano", citado por Ugo Baldini, referente à formação matemática dos missionários jesuítas que de toda a Europa vinham para Portugal para partirem para o Extremo-Oriente. (Ver as futuras Actas do Encontro História das Ciências Matemáticas: Portugal e o Oriente, organizado no Convento da Arrábida, em 2-4 de Novembro de 1995, por L. Saraiva, J. F. Rodrigues e J. Dhombres.) (regressar ao texto)
7 A pergunta pode pôr-se
mesmo relativamente ao século XIX: na Universidade de Coimbra
chegou a "Matemática Pura" a ser excluída das matérias sobre que
podiam versar as teses de doutoramento e as lições dos
candidatos a lugares de professor (ver A Faculdade de
Matemática da Universidade de Coimbra (1872-1892), de Luis
da Costa e Almeida — agradeço esta indicação a António Leal
Duarte). A confirmar-se tal tendência "oficial" para as
aplicações, desde o século XVI (e quem sabe se até aos dias de
hoje), teríamos aqui um fenómeno surpreendente e sem dúvida
digno de estudo nas suas raízes e consequências. (regressar ao texto)