A espécie humana é a única que transmite conhecimentos de geração em geração. Um cão ou um gato de hoje sabem o mesmo que um cão ou um gato de há mil anos. Um cão ou um gato aprendem alguma coisa durante a sua vida mas não há transmissão acumulada às gerações seguintes; estas recomeçam o mesmo processo sempre de novo.
A transmissão de conhecimentos é o que distingue os humanos e processa-se essencialmente no contexto da família e da escola.
Em matéria de acção governativa, uma política educativa consistente faz perder votos, não ganhá-los. Os resultados positivos de uma tal política só se vêem vários anos depois, o que faz desaparecer o seu valor nos cálculos eleitorais de muitos dirigentes partidários. Fica assim aberto o caminho para os erros.
Só se encontra genuína preocupação com as questões educativas entre alguns dos que estão na linha da frente – as famílias e os professores – e em quem pensa o país a prazo, incluindo os economistas, que bem observam nos seus estudos as consequências dos baixos níveis de qualificação da população.
Vem isto a propósito das mudanças anunciadas no ensino da Matemática em Portugal. Abrevie-se, já que os factos e as posições principais estão à vista de todos (artigos neste jornal, incluindo um da responsável pelas propostas de mudança, e parecer da Sociedade Portuguesa de Matemática): essas mudanças vão no sentido do triunfo da ignorância dos jovens, pela desistência de lhes transmitir o conhecimento matemático acumulado e apurado durante séculos ou milénios. A Matemática, a linguagem da ciência, é de resto quase única entre as áreas do conhecimento na sua permanência ao longo do tempo. A sua transmissão é agora substituída por pseudo-matemática supostamente mais próxima dos “problemas do quotidiano” e dos interesses dos alunos, na qual pouco ou nada se aprende e da qual pouco ou nada fica. A própria palavra “transmissão” passou a ser contestada.
Uma questão crucial é: porquê? Como pode haver quem proponha e defenda militantemente políticas educativas que vão traduzir-se no triunfo da ignorância dos jovens? Ao contrário do que podem afirmar os teóricos da conspiração, a razão não é uma vontade escondida de promover a ignorância da população para melhor a dominar.
Não, as razões são outras e muito simples. São essencialmente duas. Primeiro, a instalação do pós-modernismo há umas décadas fez nascer em alguns meios universitários ligados à educação e didáctica uma atitude de desvalorização do conhecimento (em todas as áreas), visto como parte das grandes narrativas passadas que se desmoronam.
A segunda razão tem que ver com o ambiente dominante nas
escolas públicas portuguesas, um ambiente difícil, turbulento,
com graves problemas de indisciplina. As escolas são
institucionalmente fracas e não têm instrumentos que lhes
permitam contrariar esse ambiente. Os professores ficam
sozinhos perante as turmas, perante jovens desinteressados e
agarrados aos telemóveis. Num tal contexto, que é tudo menos
propício à concentração, ao estudo, à aprendizagem, são
bem-vindas as doutrinas que racionalizem o falhanço, que
desvalorizem o conhecimento, que aconselhem a “negociar” com
os alunos o que eles querem aprender e como.
Sinal seguro da implantação dessas doutrinas são os slogans sobre “colocar o aluno no centro do processo de aprendizagem”, ver os professores como “facilitadores das aprendizagens”, “adaptar o ensino ao contexto e aos interesses do aluno” (como se, no coração da missão da escola, não estivesse, precisamente, levar o aluno a transcender o seu contexto). Um slogan novo diz que “A Matemática é um direito de todos”. Face ao que agora se propõe, isto é o mesmo que dizer que “A habitação é um direito de todos” e depois promover a construção de tendas esburacadas no meio do deserto. Pode haver correcções e melhorias a fazer nos objectivos, nos programas e nas metodologias activas mas não as que se anunciam.
Estas ideias não são de esquerda nem de direita, ao contrário do que pensam muitos jornalistas e observadores. As concepções acima referidas são tão fáceis e convenientes que encontram em todos os partidos terreno fértil para se expandirem.
Por ser um país ainda frágil em matéria de qualificações da
população, Portugal deveria combater as doutrinas e as
políticas que conduzem à ignorância. Daqui a 50 anos, se os
indicadores educativos portugueses estiverem próximos dos do
Norte da Europa, o país poderá baixar a guarda. Por enquanto,
não.