João Filipe Queiró
Departamento de Matemática
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra
Diário de Coimbra, 9 de Fevereiro de 2006, p.11
Em entrevista recente a este jornal, o Reitor da Universidade de
Coimbra, Fernando Seabra Santos, sugeriu a possibilidade de
criação de “regiões académicas”, em que se coordenassem as
actividades de universidades e politécnicos. Em artigos
posteriores, o ex-Presidente da Escola Superior de Educação de
Coimbra, Rui Antunes, discordou dessa ideia e sugeriu que o
Instituto Politécnico de Coimbra seja transformado em
universidade.
A questão da natureza e missões da Universidade e do Politécnico é antiga, e muito se tem escrito acerca dela. As discussões são contaminadas por problemas e objectivos conjunturais, em que se perde de vista o interesse do país em matéria de ensino superior.
O Ensino
Politécnico foi criado nos anos 70, como ensino superior de curta duração visando
formar técnicos especialistas e
profissionais de educação de nível intermédio, formação vista
como importante para o país, e diferente da das universidades.
Foram criadas escolas novas, a que se juntaram outras que
existiam (por exemplo, as Escolas do Magistério Primário,
depois Escolas Superiores de Educação).
Ainda este sistema estava em fase de
instalação quando se deu a primeira alteração de fundo. A Lei
de Bases de 1986 criou, no Ensino Politécnico, cursos de dois
anos que, justapostos aos bacharelatos existentes, ficavam
equivalentes às licenciaturas universitárias.
Esta alteração foi o primeiro passo na
“deriva académica” do Ensino Politécnico, afastando-o da sua
missão original.
Com a revisão da Lei de Bases de 1997, o
Ensino Politécnico passou a conferir o grau de licenciado.
Datam dessa altura as reclamações, por parte de dirigentes do
Politécnico, da possibilidade de terem cursos de mestrado e,
depois, de conferirem também o doutoramento. E as mesmas vozes
começaram a defender a transformação dos politécnicos em
universidades, terminando assim com o carácter binário do
ensino superior em Portugal.
A expressão “deriva académica” é a
tradução do inglês “academic drift”. Mas não é por ter um nome
inglês que o fenómeno se torna positivo. A evolução do
Politécnico em Portugal, ao afastá-lo da sua missão original,
vai contra os interesses do país em matéria de ensino
superior, que têm que ver com as necessidades de formação de técnicos especialistas.
Estas necessidades continuam a existir, com as perspectivas de aumento da frequência do Ensino Secundário, através das vias tecnológicas e vocacionais. Todos reconhecem que este aumento, bem como o das formações pós-secundárias curtas, de pendor técnico e para públicos variados, são indispensáveis para a qualificação da população e o progresso económico.
É o que
acontece na maioria dos países: para uma procura
diversificada, um sistema diversificado, com oferta de
alternativas de formação aos jovens e aos adultos que delas
precisam. Isto é defendido pelas personalidades ligadas ao
lançamento do Politécnico em Portugal, e é recomendado por
organizações internacionais.
Quanto à procura de formações
universitárias, já estabilizou, e não é por aí que o ensino
superior vai crescer muito em Portugal. É assim estranho que
se queira criar mais universidades. Pelo contrário: de um
ponto de vista de racionalidade e qualidade, a consolidação do
sistema universitário em Portugal pode levar o número de
universidades a diminuir.
As mesmas considerações de qualidade
deveriam levar a uma diminuição, e não a um aumento, do número
das instituições que conferem os graus de mestre e doutor.
Esses graus só devem ser conferidos por instituições com um
corpo docente próprio de elevada qualificação e uma actividade
científica e tecnológica avançada.
A actual situação de deriva e confusão
de missões, má para Portugal, só é possível porque o Estado
não exerce os seus deveres de regulação do ensino superior.
Neste contexto, alguns dirigentes do Politécnico vêem como
estratégia a fuga em frente (a busca das formações
profissionais de tipo universitário), o que não é bom para o
Politécnico nem para o país. O rumo do ensino superior não
deveria ser determinado assim.
É neste quadro de falta de orientações
governamentais e legislativas que leio a proposta do
Reitor da UC. A ideia parece ser a de, na falta da regulação do
Estado, pôr ênfase na cooperação inter-institucional. Pode ser
que esta via funcione. Mas dificilmente funcionará se uma das
partes responder com acusações de “corporativismo” e de
“concorrência desleal”.
Não faz sentido que dois sistemas
distintos concorram entre si, mas sim que cada um faça bem o
que lhe cabe, podendo entre os dois haver colaboração e
coordenação de actividades.