Fotografias de Shanta Rao
Torre d'Anto, Rua de Sub-Ripas
Horário: 14.00-19.00
Sábado/Domingo: 10.00-12.30, 15.00-18.30
Encerra à
Segunda-feira
Entrada livre
De onde vêm estas imagens tão íntimas, tão familiares? Mauritânia do Sul, Kaedi junto ao rio Senegal, Etiópia, Addis-Abeba e seus arredores... As fotografias de Shanta Rao não se deixam esgotar nas categorias da geografia de viagem. Os seus retratos de mulheres não são "documentos" a arquivar num catálogo exploratório do insólito e do exotismo ocidental.
Não nos enganemos: não há estrangeiras nas fotografias de Shanta Rao. Mais do que o objecto fugidio de um encontro ao acaso, o que contemplamos é a intensidade de uma presença que podemos guardar. Os retratos têm a qualidade que Roland Barthes considerava essencial na paisagem fotográfica: são "habitáveis" e não apenas "visitáveis".
Se a fotografia não é o veículo de um compromisso ou de um testemunho documental, é porque ela é antes de mais uma prática social que se introduz no cerne da relação entre o fotógrafo e os seus modelos, perturbando literalmente a situação daquele que observa a imagem. A natureza desta relação e desta perturbação é essencialmente erótica. Porque o erotismo não se resolve numa cumplicidade com a carne e com o sexo, mas na consciência e na afirmação de um sedutor afastamento que é necessário eliminar.
Por isso, a experiência física e emocional do olhar é muitas vezes conduzida por um movimento que vai da superfície à profundidade, do nítido ao vago, do visível ao indistinto. Uma mão ou umas pernas sob um tecido em contre-plongée, conduzem o olhar até ao rosto, para lá do limite em que as aparências se começam a dissolver. Ao contrário destas perspectivas de fuga, os contra-luz muito violentos situam-nos num espaço vazio e sombrio, donde se observam entradas e saídas para a claridade. Esta retórica da transposição exalta o poder de fascínio das imagens. Shanta Rao anula a distância, ou melhor, faz-nos percorrê-la num arrepio de esbatidos ou pelo choque da luz. A irredutível sensualidade da sua fotografia manifesta-se também no movimento dos drapeados, no peso e na riqueza ornamental dos tecidos, no grão das matérias que retêm a forma no seu deslizar suave.
Entra-se assim numa experiência da representação, em que nada é possível fora do respeito de um consentimento, fora de uma dádiva recíproca. A manifestação deste acordo, onde cada um se apresenta como objecto de uma revelação, tem a raridade e a fragilidade de uma graça. Adivinha-se a compreensão e a paciência que ela supõe. Shanta Rao constrói o seu trabalho na procura de um fantasma de domínio do tema fotografado. É por isso que as imagens espantosamente calmas dessas mulheres na sua vida quotidiana, o bosquejo dos seus gestos, desses "pequenos nadas" muito aquém do anedóctico, nos parecem tão preciosos; não resultam da violência de um olhar exterior que julga mas da espera da conjunção do desejo. Ora, como se sabe, o desejo não tem valor de uso.
A jovem que ajeita o penteado, mirando-se num pedaço de espelho quebrado que segura na mão, a mulher em contra-luz que afasta um cortinado transparente para entrar em casa, ou aquela outra que, sorrindo, olha da cama para o marido deitado no chão à hora da sesta, ostentam um desapego, uma desenvoltura aristocrática em relação à objectiva. Parecem infinitamente disponíveis, quase indiferentes. Enuncia-se aqui uma erótica do sujeito que se sabe olhado, que o deseja e faz de conta que não se apercebe disso. O natural nunca se confunde com a inocência. É por vezes o fotógrafo que faz de conta que rouba o que lhe é oferecido, colocando-se no umbral de uma porta ou no entreabrir de uma cortina, cuja presença afirma o primeiro plano e contrói o espaço da representação. Este simulacro, verdadeiramente teatral, põe a nu a nossa curiosidade e faz vacilar o olhar no mais profundo de nós mesmos. Deixamos de ser testemunhas, passamos a ser os voyeurs de um jogo em que olhamos e somos olhados. Espelhos e reflexos, frequentemente inscritos na composição, denunciam a ambiguidade dos papéis.
Shanta Rao lembra-nos que a reportagem fotográfica pode construir-se com tacto e inteligência moral do tema. Como uma verdadeira retratista, situa-se muito perto do mito, da sua simplicidade e do seu imaginário universal, que obriga cada um a regressar à sua experiência interior, a esse lugar onde o erotismo surge, onde nascem e desaparecem as imagens.
Olivier Lebée
Cortesia: Galeria Nathalie Emprin