Fotografias de Pierre Verger
Museu Machado de Castro
Largo Dr. José Rodrigues
Horário: 14.00-17.30
Sábado/Domingo: 10.00-12.00, 14.00-17.30
Encerra à Segunda-feira
Entrada Livre
Chegou finalmente o momento da tão esperada viagem - seleccionar fotografias, conhecer um homem, Pierre Verger.
Da pequena casa vermelha - cor de Shango - de janelas estreitas, no bairro popular de Vila América, em S.Salvador da Baía, dia após dia os tesouros invadem a sala do rés-do-chão, iluminada por uma simples lâmpada sempre acesa. Os negativos bem arrumados em caixas de madeira, surgem uns atrás dos outros. Pierre Verger levanta os óculos para ver melhor, e uma outra viagem começa, no seu universo que pouco a pouco penetra e encontra o nosso. Para lá do tema fotografado, para lá do tempo e do lugar.
Cada um dos 65.000 negativos que desfilam nas nossas mãos, sublinha a obra adivinhada, o seu alcance humano. Só depois ocorrem as palavras, depois da nossa selecção encontrar o seu olhar e o seu rosto: um sorriso de acordo, um trejeito de descontentamento que nos faz hesitar, um franzir de sobrolho que faz regressar o negativo à caixa. A cumplicidade estabelece-se simplesmente, reforçada por cada nova escolha.Depois, a história da imagem - emoção, riso - confere-lhe uma segunda vida. Não queremos dar-lhe demasiada importância, porque a fotografia escolhida ficaria presa ao comentário. Deixamo-nos levar por essa relação imediata com a imagem. A análise não acrescentaria nada ao que é visto num centésimo de segundo, quase o tempo da pose, quase o tempo do prazer que faz parar o tempo e desafia a sua própria existência.
"Quando fotógrafo, não sou eu que fotografo, é alguma coisa em mim que carrega no disparador sem que eu verdadeiramente decida, não vou à procura um bom enquadramento; o lugar das pessoas e das coisas aparece evidente no visor. Depois, o disparo deixa a fotografia em suspenso, só muito depois passa a existir, no laboratório: o instante do seu verdadeiro nascimento". As imagens continuam a parar nas nossas mãos, uma redescoberta para Pierre Verger que há muito tempo não as olha assim. Para nós, uma descoberta que se torna imediatamente familiar.
Tendo como única fronteira o círculo do seu terceiro olho e o instantâneo do seu prazer, Pierre Verger fotografou a sua própria liberdade, deixando o seu olhar apaixonado correr mundo, o espírito reflectir noutras zonas, a sociedade envolver-se noutras guerras.
"Quando fotógrafo, fabrico as minhas memórias". Com a nostalgia de um presente impossível, Pierre Verger não se considera um observador mas um actor egoísta. "Quando me confronto com uma situação qualquer - que muitas vezes provoquei - encolho-me sobre mim próprio". Estar lá sem se impôr ao outro. Esse outro que ele sabe nunca poder possuir a não ser por uma troca de gestos ou de olhares. Uma liberdade vivida, não em teoria mas como um momento de desejo que guia um corpo. Um corpo de diferença e de ascese. Um corpo que balança entre o vento e o céu, prestes a levantar voo sem nunca procurar atingir o divino. Nem S.João Baptista, nem o corpo desmaterializado do sábio, o corpo em movimento de carne e pele das multidões que dançam nas festas, nos mercados, nos portos e nas estradas que povoam todas as suas fotografias. As paisagens da natureza e das arquitectura
"Não somos nós que escolhemos, são eles que nos escolhem". É assim que Pierre Verger se torna o mensageiro entre dois povos, entre dois continentes que não eram seus de origem. A diferença de cultura e de cor torna-se irrisória e ele é simplesmente humano, semelhante a eles. Pierre Verger pode renascer para uma nova humanidade.
Face a problemas fundamentais, Pierre Verger situa-se entre uma falsa humildade de não ser nada, de nada saber, e uma profunda humildade perante as coisas da vida que nunca quis explicar pelas ciências do seu mundo, porque sabia que explicar é tomar, reduzir e talvez matar. Se se tornou investigador e especialista, bastante tarde, foi para melhor convencer os outros da necessidade de reconhecer os outros povos e mesmos aqueles de quem é mensageiro. Mostra a existência de outras vias, de outras percepções da realidade, não demonstra. Mostra como alguns povos permitem que cada um exprima a sua personalidade, o seu universo, tornando-se alternadamente jovem e velho, negro e branco, louco e ajuizado, na sociedade e fora da sociedade. É sempre o ser humano e não o especialista que fala.
A casa silenciosa sem telefone e sem rádio, deixa entrar pelas persianas abertas os risos e os sons eléctricos de canções na moda dos vizinhos de bairro. O jardim, invadido pelas plantas que representam as diversas culturas de um mundo aberto, transforma os sons e faz desaparecer os telhados e os terraços das casinhas constantemente em obras. Mais adiante, jogadores de futebol retesam os músculos à procura duma bola, os corpos correm pelo corpo ao longo da baía. Os olhares cruzam-se e depois perdem-se ao longe sobre o mar de todas as viagens.
Na Baía. Na Baía mais do que em qualquer outro lado? Provavelmente não. Mas na Baía.
A selecção nas fotografias de Pierre Verger: um pouco de areia, de terra, de carne e de éter, para além do tempo e dos territórios.
Paris, Abril de 1993
Jean Loup Pivin /Pascal Martin Saint Léon