Parecer sobre o documento "REFORMA DO ENSINO SECUNDÁRIO - Linhas Orientadoras da revisão curricular, Ministério da Educação, 2002"
elaborado por

Jaime Carvalho e Silva

Departamento de Matemática

Universidade de Coimbra

24 de Janeiro de 2003
 
 
 
 
 
 

Em termos gerais entendo que o documento tem uma fundamentação escassa e muito pouco clara, não indicando, por exemplo, quais são os estudos em que se baseia para propor um certo número de opções (referir-me-ei a algumas mais adiante). Ainda por cima tratando-se de uma revisão curricular que pretende ser mais ambiciosa que outras, ao abrir as portas a uma "reforma do ensino secundário" (pg. 2).

Nos últimos anos têm sido publicadas, em Portugal e no estrangeiro, várias análises e estudos que podem e devem fundamentar opções de revisões curriculares ou reformas. No caso do Ensino Secundário, podemos citar os estudos do GAVE sobre os exames ou vários estudos promovidos pelo DES, tais como:

• Documentos de apoio ao debate - 1, DES - Setembro de 1997.

• Documentos de apoio ao debate - 2, DES - Dezembro de 1997.

• Análise das Consultas aos Parceiros Educativos, FERNANDES, D.; NEVES, D.; ROQUE, H.... e outros, DES - Julho de 1998.

• Reflexões de Escolas e de Professores, FERNANDES, D. ; NEVES, A.; GIL, D., DES - Julho de 1998.

• Conferência Internacional - Projectar o Futuro: Políticas, Currículos e Práticas, FERNANDES, D.; MENDES, M. R. (org.), DES - Julho de 1998.

• Ciclo de Conferências - Comunicações, FERNANDES, D.; MENDES, M. R., (org.), DES - Fevereiro de 1999.

Se é verdade que faltam estudos e estatísticas sobre muitos aspectos do sistema educativo português, também é verdade que alguns estudos estão disponíveis, como os estudos do IIE, o estudo coordenado por Roberto Carneiro intitulado "O FUTURO DA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL - TENDÊNCIAS E OPORTUNIDADES", assim como diferentes trabalhos académicos. Os estudos internacionais do TIMSS e do PISA, são também importantes. Estes últimos mostram, por exemplo, que o ensino da matemática e das ciências em Portugal tem enormes debilidades. O meu parecer é que a presente proposta não só não corrige as insuficiências da proposta anterior, como ainda as agrava: todas as disciplinas de ciências exactas e naturais, excepto a matemática, passam a opções; a matemática passa a opção no "CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS" e, no "CURSO DE LÍNGUAS E LITERATURAS", onde não havia qualquer disciplina de ciências, apenas aparece uma disciplina de Matemática como opção (o que até é um retrocesso em relação à situação actual, em que existe uma disciplina anual obrigatória de Matemática, "Métodos Quantitativos"). Não é claramente assim que se melhoram os conhecimentos de matemática e ciências dos alunos portugueses. E não se pense que o problema ficará resolvido se a disciplina "Física e Química A" passar a ser obrigatória, ficando apenas "Biologia e Geologia" como opcional. A Biologia é tão importante na actualidade, a ligação com todas as outras ciências aumenta de tal forma, que não tem sentido ter um curso de Ensino Secundário de Ciências digno desse nome sem a Biologia. Assim, o "CURSO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS" não poderá, na minha opinião, deixar de ter "Física e Química A" e "Biologia e Geologia" como disciplinas bienais obrigatórias.

Outra questão: a proposta anterior da criação de um "módulo inicial" em cada disciplina, tentativa séria mas insuficiente para debelar as deficiências que os alunos trazem do ensino básico, não só não é referida na presente proposta, como não se vislumbra nenhuma medida que ataque esse problema. É fundamental pensar em estruturas de apoio nas escolas para debelar as carências que os alunos (mesmo aqueles que são aprovados com a actual legislação ou possam vir a ser aprovados com o exame nacional do 9º ano) trazem no início do 10º ano. Tanto se poderia reforçar esse módulo inicial, como se poderia melhorar a actual estrutura do APA-"Apoio pedagógico acrescido", prevendo que cada escola elaborasse um plano de ataque às dificuldades (que variam de escola para escola) que os alunos habitualmente revelam em disciplinas tão importantes como Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras, Matemática e Ciências. Outras alternativas certamente haverá. O que não se pode é ignorar o problema.

Há uma preocupação, muitas vezes repetida, de diminuição da carga horária dos alunos. O documento não refere os estudos em que se baseia para defender essa medida. E muito menos aparece uma única justificação para que essa diminuição incida exactamente sobre as "disciplinas da componente de formação específica." (ponto 6.4 da pg. 9). Nem uma única linha de justificação!

Na minha opinião não há carga horária excessiva no Ensino Secundário. Há dificuldades de gestão de turmas e equipamentos que levam a que os horários sejam muitas vezes absurdos. Os alunos reclamam muitas vezes por causa da carga horária, mas apenas porque não sentem, com razão ou sem razão, a escola como algo de importante na sua formação. Mas não me parece que esse problema seja minimamente resolvido com uma brutal diminuição da carga horária. Essa diminuição irá, na minha opinião, agravar ainda mais as desigualdades no acesso à educação, pois apenas os alunos mais favorecidos irão poder beneficiar da diminuição do tempo de presença na escola para se inscreverem em mais centros de explicações e escolas de línguas. Não me parece que ao diminuir o tempo de presença na escola a maioria dos alunos use esse tempo para ficar em casa a estudar mais…

Por outro lado, se se justificar a redução da carga horária, por argumentos não presentes na actual versão do documento, é preciso que se equacionam outros modos de diminuir essa carga horária. Por exemplo: justifica-se que no Ensino Secundário existam 3 horas de Educação Física por ano para alunos que praticam desporto federado em clubes locais ou participam no desporto escolar? Não teria mais sentido a Educação Física deixar de funcionar como uma disciplina como as outras deixando de interferir na elaboração de horários? A alternativa seria, por exemplo, a escola fornecer diferentes horários para praticar desporto escolar em diferentes modalidades e uma formação geral de Educação Física, dispensando dessa disciplina os alunos que pratiquem desporto federado em clubes reconhecidos pelas respectivas federações?

Outro ponto que me merece reservas é o da introdução da disciplina de TIC. Em que estudos se baseia o documento para concluir que, depois da nova disciplina de TIC no 9º ano, os alunos ainda precisam de ter mais uma disciplina generalista e obrigatória de informática? Onde estão os estudos que garantem que há recursos suficientes para o funcionamento desta nova disciplina? Na minha opinião, a disciplina de TIC dificilmente poderá funcionar em condições satisfatórias:

    1. Já actualmente há falta de docentes de informática; com o aumento das necessidades essa falta não poderá ser suprida - o mercado de trabalho absorve a esmagadora maioria dos especialistas que se formam;
    2. Tal como actualmente acontece com a disciplina de ITI, as aulas de TIC terão de ser desdobradas, pelo que é preciso prever o dobro de docentes e o dobro de horas de uma disciplina normal (tipicamente haverá laboratórios de informática com 12-15 computadores para 12-15 alunos com turmas de 25-30 alunos);
    3. Será virtualmente impossível ter laboratórios de informática para todos os alunos; senão vejamos: numa escola com 280 alunos no 10º ano, haverá tipicamente umas 11 turmas. Serão necessárias então 11*4,5*2 = 99 horas de TIC. Partindo do princípio que um laboratório de informática pode ser usado 7,5 horas por dia (das 8h 30m às 13h 30m - 3*1,5 + 2*0,25 - e das 14h 30m às 17h 45m - 2*1,5 + 0,25), ou seja, 37,5 horas por semana, serão necessários três laboratórios de informática em funcionamento contínuo; como uma escola precisa de mais laboratórios de informática para apoio às restantes disciplinas assim como à Área de Projecto, não serão possíveis menos de cinco laboratórios de informática (com 15 computadores por sala) numa escola desta dimensão (cerca de 600 alunos). Impossível!
    4. Se a escola tiver 3º ciclo e ensino secundário em simultâneo, então o número de laboratórios de informática necessários será verdadeiramente inimaginável!
    5. Funcionado a disciplina para todos os alunos em laboratórios próprios, será quase impossível ter horários adequados em todas as turmas; note-se que actualmente não há nenhuma disciplina que se compare com esta (obrigatória para todos os alunos, com desdobramento e com necessidade de laboratório próprio em todas as aulas).
Por outro lado, uma disciplina de TIC como a enunciada no documento em discussão, completamente separada das restantes, não favorece a utilização das ferramentas informáticas nas diferentes disciplinas. Tomando como exemplo de referência um país como o Canadá (um dos melhores no estudo internacional PISA), o que é proposto para Portugal não tem qualquer paralelo com o que está funcionar no Canadá. No Anexo 3, transcrevo o que os documentos oficiais do estado canadiano do Ontário (a educação canadiana é regionalizada pelos diferentes estados) dizem que deve ser o papel da tecnologia no currículo. Saliento: "Teachers should work collaboratively within and across disciplines to effectively plan for the integration of computers and information technologies into the teaching/learning process". Ou seja, a tecnologia não existe como uma entidade autónoma. No Anexo 4 transcrevo as recomendações específicas quanto à disciplina de Matemática: as TIC não se esgotam em nenhuma disciplina específica. Mas, tal como se pode ler no Anexo 5, nem a própria oferta da Educação Tecnológica no currículo do estado canadiano do Ontário é feita de forma separada das outras disciplinas: "Technological education promotes the integration of learning across subject disciplines". A transversalidade é total!

Esta não é uma discussão nova. Opções precipitadas levaram no passado à criação de software e equipamentos sem articulação com as escolas, o que levou a vários desastres ou desperdícios educativos, de que deveríamos tirar as devidas lições. Já em 1990, um especialista como Jacques Hebenstreit, um dos responsáveis pela introdução dos computadores nas escolas francesas, escrevia:
 

É tanto mais desolador constatar que o único domínio onde os computadores jogam hoje um papel negligenciável é a educação.

Não é que tenham faltado boas intenções e boas acções. Desde 1970, no ensino primário e no secundário, todos os ministros da educação que se sucederam fizeram, neste domínio, esforços que permitiram ao nosso país permanecer no pelotão da frente dos países desenvolvidos. Com efeito, a razão do número de estudantes por computador no primário e no secundário é da mesma ordem que nos EUA, na Inglaterra no Canadá ou na Alemanha, a saber, 50 alunos por micro-computador. Todos os estabelecimentos escolares em França dispõem de pelo menos um computador.

Infelizmente, o esquema não funcionou porque, em vez de ensinar aos alunos como utilizar os computadores nas disciplinas, para fazer de outro modo, com vista a fazer mais ou melhor, que é a única justificação do seu uso, serviram-se dos computadores seja para fazer a mesma coisa que antes seja para criar um ensino de informática que não deixa de ter interesse mas não responde à questão posta.

No ensino superior científico, a situação é mais dramática ainda. Este ensino deve desembocar numa actividade profissional. Ora, na maioria dos casos em vez de ensinar a "nova física", a "nova química", a "nova biologia" ou a "nova matemática", baseada no uso maciço dos computadores, que é a realidade profissional de hoje, contentam-se muitas vezes em ensinar estas disciplinas de modo clássico. Para se ficar com boa consciência juntam-se, para uso dos estudantes, alguns cursos de informática decorando a justaposição destes dois corpos estranhos com o nome pomposo de "dupla formação" ou "dupla competência".

Esta dita "dupla competência" esconde mal a ausência de uma tomada de consciência do corpo docente que a informática sempre e em toda a parte modificou os conteúdos, as técnicas, os métodos, as representações e as estratégias.

"Informática e educação: o mais difícil está por fazer"

Jacques Hebenstreit

Actas do colóquio "Les objectifs de la formation scientifique", "Ecole Polytechnique", 28-29 de Abril de 1990

Na minha opinião, a integração das TIC numa disciplina como a Área de Projecto (sendo esta leccionada por professores das outras disciplinas de cada turma) é claramente uma opção facilitadora do necessário trabalho colaborativo entre professores e disciplinas e do "ensinar a "nova física", a "nova química", a "nova biologia" ou a "nova matemática", baseada no uso maciço dos computadores, que é a realidade profissional de hoje".

A preocupação, legítima, com a garantia de uma formação básica mínima em TIC poderia ser suprida com a criação de um diploma autónomo que atestasse a capacidade mínima de utilização de ferramentas informáticas por um aluno do Ensino Secundário (e que até poderia servir como uma formação suplementar com vista ao mundo do trabalho). Para tal bastaria que cada escola garantisse um acompanhamento informático em horário livre, em salas devidamente apetrechadas e com professores para apoio. Quando um aluno se julgasse capaz de obter o diploma faria um exame (que até poderia ser feito de forma totalmente automatizada) devidamente creditado pelo Ministério da Educação.

Um outro problema da proposta em discussão é o de propor uma grande quantidade de opções logo no 10º ano. Como irão os alunos fazer uma escolha de forma consciente se os diferentes cursos não têm uma identidade própria clara? Na anterior proposta de revisão curricular, cada curso geral representava uma determinada via de acesso ao ensino superior, via essa devidamente identificada. Cada curso tecnológico desembocava numa profissão bem caracterizada. Na presente proposta essa clareza não está presente. Como mostra o Anexo 1, o "CURSO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS" e o "CURSO DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÓMICAS" podem tornar-se em irmãos gémeos indistinguíveis. Isto é, com as opções que são permitidas, podem tornar-se exactamente no mesmo curso. Dificilmente se pode considerar que um curso definido nestas condições tem uma identidade clara.

Muitas outras situações estranhas poderiam ser apresentadas. No Anexo 2, apresenta-se um exemplo de como o "CURSO DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÓMICAS" e o "CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS" podem diferir apenas por uma disciplina! Estes cursos ficariam mais próximos do que dois alunos do mesmo curso que escolhessem sempre opções diferentes!

Esta multiplicação de opções no 10º ano tem ainda outro grave inconveniente: provoca um aumento de despesas dificilmente controlável. Uma análise do passado recente revelaria que a existência de opções leva a que existam vários subgrupos de turmas, correspondentes às diferentes escolhas dos alunos, algumas a funcionar com apenas 2 ou 3 alunos, sendo necessário um docente para cada uma destas opções/subgrupos. Este é um dos factores que dificulta a elaboração de horários aceitáveis aos alunos. Na realidade, o documento, ao pretender reduzir o número de cursos de 7 para 5, está a aumentar esse número para 5*(arranjos de 5 opções 2 a 2) = 5*20 = 100 cursos!!!

Poderia referir muitos outros aspectos, mas penso que os que já referi mostram a necessidade de uma reformulação cuidada do documento apresentado para discussão. Espero que nova versão seja colocada à discussão proximamente. Nessa altura terei oportunidade de referir outros aspectos que aqui não é possível abordar como, por exemplo, a avaliação e o formato dos exames, a formação de professores ou a elaboração de materiais de apoio.
 

Em face do que escrevi proponho que:


Sendo assim, sou de parecer que, para quatro dos cursos gerais, a estrutura seja a apresentada nas páginas seguintes.

Para terminar, coloco-me à disposição do Ministério da Educação para qualquer esclarecimento suplementar sobre as diferentes opiniões expressas neste documento.
 
 

Coimbra, 24 de Janeiro de 2003

Proposta 1:

CURSO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS
 
Componentes de Formação Disciplinas Carga horária Semanal
    10º 11º 12º
Geral Língua Portuguesa 

Língua Estrangeira I ou II a) 

Filosofia 

Educação Física 

3

3

3

3

3

3

3

3

3

-

-

3

Específica Matemática A 4,5 4,5 4,5
Física e Química A 4,5 4,5 -
Biologia e Geologia 4,5 4,5 -
  Opção - - 4,5
  Opção - - 4,5
Subtotal   25,5 25,5 19,5
  Área de Projecto com TIC 3 3 3
Total   28,5 28,5 22,5

 

Proposta 2:

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIO-ECONÓMICAS
 
Componentes de Formação Disciplinas Carga horária Semanal
    10º 11º 12º
Geral Língua Portuguesa 

Língua Estrangeira I ou II a) 

Filosofia 

Educação Física 

3

3

3

3

3

3

3

3

3

-

-

3

Específica Matemática A 4,5 4,5 4,5
Economia A 4,5 4,5 -
História B 4,5 4,5 -
  Opção - - 4,5
  Opção - - 4,5
Subtotal   25,5 25,5 19,5
  Área de Projecto com TIC 3 3 3
Total   28,5 28,5 22,5

 
 

Proposta 3:

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
 
Componentes de Formação Disciplinas Carga horária Semanal
    10º 11º 12º
Geral Língua Portuguesa 

Língua Estrangeira I ou II a) 

Filosofia 

Educação Física 

3

3

3

3

3

3

3

3

3

-

-

3

Específica História A 4,5 4,5 4,5
Matemática Aplicada às Ciências Sociais 4,5 4,5 -
Geografia A 4,5 4,5 -
  Opção - - 4,5
  Opção - - 4,5
Subtotal   25,5 25,5 19,5
  Área de Projecto com TIC 3 3 3
Total   28,5 28,5 22,5

 
 

Proposta 4:

CURSO DE LÍNGUAS E LITERATURAS
 
Componentes de Formação Disciplinas Carga horária Semanal
    10º 11º 12º
Geral Língua Portuguesa 

Língua Estrangeira I ou II a) 

Filosofia 

Educação Física 

3

3

3

3

3

3

3

3

3

-

-

3

Específica Latim A 4,5 4,5 4,5
Literatura Portuguesa 4,5 4,5 -
Matemática Aplicada às Ciências Sociais 4,5 4,5 -
  Opção - - 4,5
  Opção - - 4,5
Subtotal   25,5 25,5 19,5
  Área de Projecto com TIC 3 3 3
Total   28,5 28,5 22,5