Neste período, e aliás em toda a História
da Matemática portuguesa, destaca-se em primeiríssimo
plano a figura de Pedro Nunes (1502-1578), o primeiro
ocupante da nova cadeira de Matemática da Universidade,
após a transferência definitiva desta
para Coimbra. Os seus livros têm sido analisados
e comentados, por autores nacionais e estrangeiros,
e, sem prejuízo da necessidade de estudos e
investigações adicionais, é hoje
possível ter uma ideia da importância
e do significado da obra do grande matemático
português.
Destacamos a seguir algumas obras de Pedro Nunes:
1) Numa sucessão de estudos, culminando no De
arte atque ratione navigandi (Opera, Basileia, 1566),
Pedro Nunes, na sequência de uma pergunta de
Martim Afonso de Sousa regressado de uma viagem ao
Brasil, esclareceu que as linhas de rumo isto é,
as rotas seguidas quando se mantém constante
o ângulo com a agulha magnética não
são geodésicas (arcos de círculos
máximos) e compreendeu a sua verdadeira natureza:
com excepção de casos triviais (os meridianos
e os paralelos) em que são circulares, as linhas
de rumo são curvas em espiral que se aproximam
dos pólos dando um número infinito de
voltas em redor deles. Num dos estudos em que tratou
das linhas de rumo, o Tratado em defensam da carta
de marear (Lisboa, 1537), Pedro Nunes enuncia duas
propriedades desejáveis para os mapas: a de
preservação de ângulos, e a representação
de linhas de rumo por linhas rectas. Estes requisitos
são exactamente o que tornou o grande mapa do
mundo de Mercator (1569) tão útil na
navegação. Uma eventual inspiração
de Mercator em Pedro Nunes permanece matéria
de controvérsia.
2) A obra De erratis Orontii Finæi (Coimbra, 1546,
Basileia 1592) contém uma lista de severas correcções
de Pedro Nunes a dois trabalhos do matemático
francês Oronce Fine (1494-1555). Nesses trabalhos
o matemático francês expunha "soluções"
para vários problemas clássicos, incluindo
a duplicação do cubo, a quadratura do
círculo, a construção de polígonos
regulares (todas questões só completamente
esclarecidas no século XIX) e mesmo a determinação
da longitude. Esta obra de Pedro Nunes está
actualmente a ser objecto de pormenorizada análise
por Anabela Simões Ramos.
3) Uma das obras maiores de Pedro Nunes é o Libro
de Algebra en Arithmetica y Geometria (Antuérpia,
1567), que redigiu em espanhol. Desta obra se ocupou
longamente um especialista na história da Álgebra
quinhentista, H. Bosmans. O assunto central é
a resolução de equações,
sobretudo do 1(o) grau ao 3(o). Traço distintivo
são a abstracção e generalidade
com que são tratadas as teorias e apresentados
os problemas. Pela primeira vez aparecem demonstrações
algébricas gerais rigorosas. Pedro Nunes adopta
a notação literal, e os raciocínios
com letras são independentes de considerações
geométricas. São estudadas as operações
com polinómios. Importante obra de transição
antes de Viète (Bosmans diz de Pedro Nunes que
foi "um dos algebristas mais eminentes do século
XVI"), o Libro de Algebra foi muito conhecido
e citado na Europa (entre outros por Wallis). Teve
traduções em latim e francês, que
ficaram manuscritas.
4) No livro De Crepusculis (Lisboa, 1542; Coimbra, 1571;
Basileia, 1573) analisou Pedro Nunes, agora em resposta
a uma pergunta do príncipe D. Henrique o futuro
Cardeal-Rei , "a extensão do crepúsculo
em diferentes climas". Entre outros resultados,
determinou a data e a duração do crepúsculo
mínimo para cada lugar no globo. Este problema
ocupou os irmãos Bernoulli século e meio
mais tarde. Gomes Teixeira faz interessantes observações
comparativas dos métodos usados pelo português
e pelos irmãos suíços. O De Crepusculis
foi por vários comentadores considerado a obra-prima
de Pedro Nunes, e merece bem uma reanálise moderna
(há um estudo muito recente de Carlos Vilar).
Ao mencionar as repercussões da obra na Europa,
incluindo o aplauso de Tycho Brahe e as citações
que dela faz Clavius, diz Joaquim de Carvalho que ela
"logrou a consagração inerente às
explicações científicas, entrando
e fluindo, muitas vezes anonimamente, no caudal dos
conhecimentos exactos que constituem património
da Humanidade" (Anotações ao De
Crepusculis, <<Obras de Pedro Nunes>>,
vol. II, Lisboa, 1943). Esta apreciação
é adequada também ao Libro de Algebra
e, na verdade, a toda a obra matemática de Pedro
Nunes.
Pedro Nunes é o nosso primeiro exemplo de cientista
"puro", para quem as exigências de
precisão e rigor são uma constante. (A
este respeito, é interessante referir as querelas
que teve com contemporâneos, nomeadamente "práticos",
em que são frequentes as suas defesas altivas
da superioridade do saber científico.) O matemático
português foi, neste século e no seguinte,
um caso único, aliás não só
em Portugal como em toda a Península Ibérica.
"Fuera de una y otra nación [Portugal e
Espanha] vivió espiritualmente", diz J.
Rey Pastor (Los matemáticos españoles
del siglo XVI, Madrid, 1926).
A Academia das Ciências de Lisboa iniciou nos
anos 40 um notável projecto de publicação
das Obras de Pedro Nunes. Dos seis volumes previstos,
foram publicados quatro, estando a série interrompida
há quase 40 anos, praticamente desde a morte
do seu grande impulsionador, o professor de Coimbra
Joaquim de Carvalho. Seria uma pena que a publicação
não fosse completada, por exemplo a tempo do
5(o) centenário do nascimento de Pedro Nunes,
em 2002.
Deixamos a seguir um apontamento, muito resumido e incompleto,
sobre outras actividades matemáticas em Portugal
nos séculos XVI a XVIII.
Pedro Nunes foi cosmógrafo-mor do Reino a partir
de 1547, um cargo criado nessa data. Uma das obrigações
do cosmógrafo-mor era uma aula diária
de Matemática (aplicada à náutica,
já se vê). O cargo foi abolido em 1779
para dar lugar à Academia Real de Marinha.
No Colégio jesuíta de Santo Antão,
em Lisboa, funcionou desde fins do século XVI
até ao século XVIII uma Aula de Esfera,
pública, que chegou a ter frequência apreciável.
Para além da Matemática aplicada à
navegação, aí se estudava Astronomia,
Geometria, Aritmética, etc.
Além de Santo Antão e da Universidade
de Évora, tiveram os jesuítas aulas de
Matemática, por vezes públicas, em vários
colégios, nomeadamente em Coimbra. Para ajudar
a assegurar esse serviço, vieram muitos professores
estrangeiros, em particular italianos e alemães.
Dignos de registo, alguns com trabalhos de astronomia,
náutica e cartografia, são os nomes de
Grienberger (mais tarde sucessor de Clavius no Colégio
Romano), Borri (que na primeira metade do século
XVII divulgou entre nós as manchas solares e
Galileu), Stafford, Estancel, Capassi e Carbone. Os
dois últimos estão associados à
criação do Observatório Astronómico
do Colégio de Santo Antão.
Capassi partiu em 1729 para o Brasil com outro professor
jesuíta, Diogo Soares, em cumprimento do encargo
dado pelo Rei D. João V de elaborar o mapa do
grande Estado transatlântico. A elaboração
de mapas é aliás uma das vertentes principais
da actividade matemática neste período.
Já o jesuíta suíço João
König, chamado em 1682 para ocupar a cadeira de
Matemática da Universidade de Coimbra, vaga
há muito tempo, abandonou o ensino quatro anos
depois, por ordem do Governo, para elaborar um mapa
de Portugal.
A partir de meados do século XVII, com a guerra
da independência, recebem impulso os estudos
de Matemática aplicada às actividades
militares. Data desta altura a criação
da Aula de Fortificação e Arquitectura
Militar. Também em Santo Antão se deu
atenção a estes tópicos. Muito
mais tarde, no século XVIII, têm interesse
os estudos de Matemática aplicada à artilharia
em unidades e academias militares.
Desta breve resenha o que ressalta é a feição
prática, ou aplicada, que ela sugere sobre o
estudo da Matemática em Portugal neste período.
Com o patrocínio do Estado ou nas escolas da
Companhia de Jesus, estudam-se matérias vistas
como correspondendo a necessidades concretas imediatas
do País.
A consulta da lista dos trabalhos matemáticos
redigidos em Portugal ou por portugueses neste período
revela um panorama análogo. Nota-se uma clara
predominância de obras dedicadas a temas dentro
do que se poderá chamar Matemática Aplicada:
náutica, efemérides astronómicas,
atlas e cartas (incluindo plantas de fortalezas), geometria
aplicada à fortificação, aritmética
aplicada a actividades financeiras. Interessante é
a frequência de registos de observações
astronómicas (eclipses lunares, cometas). Pormenor
a reter é o de que muitas destas obras existem
apenas em manuscrito.
Parece inequívoco que, no período que
nos vem interessando, a Matemática portuguesa
não acompanhou nem tomou parte nos grandes avanços
da época, e ao não cultivo da Matemática
"Pura" poderá ser associada a necessidade
frequente de recrutar professores estrangeiros para
assegurar o ensino, mesmo da Matemática elementar,
nas nossas escolas, por cá não haver
quem o fizesse.
O quadro mental e cultural português no período
em causa está suficientemente documentado e
estudado e não é necessário recordá-lo
aqui. Os seus reflexos na nossa vida matemática
(ou falta dela) decorrem basicamente do facto de que
os grandes progressos científicos da época
estiveram em geral associados a propostas filosóficas
contra as quais as autoridades políticas e religiosas
nacionais estavam em prevenção constante,
o que produzia uma explícita atitude de recusa
genérica da novidade na instrução.
Quanto à situação geral do País,
menos ainda é preciso evocá-la como pano
de fundo para tudo o resto.
Na primeira metade do século XVIII, entretanto,
multiplicam-se os sinais de uma mudança de ambiente.
Dentro e fora do país, surgem vários
portugueses interessados nas modernas tendências
científicas. Ocorrem, entre outros, os nomes
de Jacob de Castro Sarmento (com uma newtoniana Theorica
verdadeira das marés, Londres, 1737), José
Soares de Barros e Vasconcelos, astrónomo muitos
anos em Paris, Manuel de Azevedo Fortes, engenheiro,
autor de uma Logica racional, geometrica e analytica
(Lisboa, 1744), Teodoro de Almeida, da Congregação
do Oratório, com a sua Recreação
Philosophica, e os jesuítas Eusébio da
Veiga, astrónomo em Lisboa, Manuel de Campos
e Inácio Monteiro. Todos estes autores merecem
análises modernas (só o último
deles foi estudado em trabalhos recentes, de Resina
Rodrigues e Ana Isabel Rosendo).
VOLTAR AO PRINCíPIO DA "História da Matemática"
This page was created using TextToHTML. TextToHTML is a free software for Macintosh and is (c) 1995,1996 by Kris Coppieters, e-mail: 100025.2724@compuserve.com