Justifica-se neste momento uma reflexão sobre os rumos que os estudos de História da Matemática poderiam ou deveriam tomar no nosso país.
Se se procurar, vê-se que há exactamente quatro obras de alguma dimensão que se podem considerar "Histórias da Matemática em Portugal":
Memorias históricas sobre alguns matemáticos
portugueses, e estrangeiros domiciliados em Portugal,
ou nas conquistas - António Ribeiro dos Santos,
1812
Ensaio histórico sobre a origem e progressos
das Matemáticas em Portugal - Francisco de Borja
Garção Stockler, 1819
Les Mathématiques en Portugal - Rodolfo Guimarães,
1900-1909
História das Matemáticas em Portugal -
Francisco Gomes Teixeira, 1934
Atente-se nas datas. É significativo que nos
últimos 60 anos não haja uma única
tentativa de síntese neste terreno. E é
significativo porque as "Histórias"
existentes de alguma forma fixam um paradigma, uma
maneira de ver as coisas, que influencia qualquer leitor
que tente obter informação sobre o assunto.
Fique desde já claro que todos os quatro textos
citados são de grande valor, e cada um a seu
modo foi importante contribuição para
os estudos de História da Matemática
no nosso país. Rodolfo Guimarães, por
exemplo, depois de uma nota histórica, tem como
objectivo listar todos os textos matemáticos
de autores portugueses, ou publicados em Portugal,
até ao fim do século XIX. Gomes Teixeira,
por seu lado, dedica grande parte da sua História
à análise aprofundada de quatro grandes
figuras, Pedro Nunes, Anastácio da Cunha, Monteiro
da Rocha e Daniel da Silva. Quanto a Stockler, foi
um pioneiro, e o seu Ensaio foi obra marcante. O que
se vai dizer a seguir não pretende menorizar
estas personalidades e as suas obras.
A verdade é que os livros de Garção
Stockler, Rodolfo Guimarães e Gomes Teixeira
(o texto de Ribeiro dos Santos é um pouco marginal
nesta questão) reflectem uma visão que
se poderia chamar "antiquada" da História
de Portugal, e essa visão tende a obscurecer
certos períodos e a distorcer a abordagem ao
nosso passado, no caso o nosso passado matemático.
A visão em causa é a visão, digamos
assim, "dominante" da História geral
de Portugal no século XIX. É a visão
das Luzes, da influência da Revolução
Francesa, do liberalismo. Muito natural e compreensivelmente,
esta visão tem uma leitura quase "de combate"
sobre o passado recente, e nessa leitura é praticamente
um axioma que os dois séculos anteriores a Pombal
foram uma época de trevas, de obscurantismo,
de intolerância e de ignorância. O negrume
é ainda maior quando se pensa no Humanismo de
meados do século XVI, que em Portugal esteve
ligado ao florescimento da arte, da cultura e da ciência
que acompanhou a era dos Descobrimentos.
Esta visão é reflectida exactamente no
Ensaio de Stockler, que, recorde-se, é de 1819.
Portugal tem na Matemática um período
de esplendor no século XVI, em que se destaca
Pedro Nunes, depois um período de decadência
que dura 200 anos, até à Reforma Pombalina
da Universidade de Coimbra, em que aparecem figuras
importantes como José Anastácio da Cunha.
Quase 100 anos depois da publicação do
Ensaio de Stockler, Rodolfo Guimarães retoma
ponto por ponto, na nota histórica com que se
inicia a sua obra, a mesma visão, chegando quase
a transcrever partes do livro anterior. Quanto a Gomes
Teixeira, não imita nem transcreve, mas a visão
geral é ainda a mesma.
Ora bem. O estudo da História Geral do nosso
país evoluiu muito do século passado
até hoje. Em particular, a distância aumentou
em relação à época da Inquisição
e da influência dos jesuítas na sociedade
portuguesa, e esse período é hoje estudado
e analisado como qualquer outro na História
de Portugal.
Mas na História da Matemática não
se saiu do sítio! A visão geral continua
a mesma. Como os estudos sobre autores particulares
e pontos de pormenor são raros (devem citar-se,
entre os poucos nomes relevantes, além de Gomes
Teixeira, os de Vicente Gonçalves e Luís
de Albuquerque), temo-nos visto reduzidos à
repetição sem fim dos mesmos pontos de
vista, sem nova informação, e remetendo-nos
permanentemente às mesmas fontes, que são
basicamente as indicadas.
Neste momento é apropriado ter as ideias claras
e propor o que pomposamente se poderia chamar uma "mudança
de paradigma". A visão atrás descrita,
sem prejuízo do grande valor e importância
de autores como Stockler, Guimarães e Teixeira,
parece hoje esgotada, redutora, irremediavelmente datada
e, pior, anestesiante. A continuar assim, longos períodos
e muitos autores permanecerão em obscuridade
na História da Matemática em Portugal.
Para tal mudança adiantam-se como possíveis
as seguintes linhas:
1) Prioridade ao estudo do período que medeia
entre a morte de Pedro Nunes, em 1578, e a Reforma
Pombalina, em 1772, e também do século
XIX. Estes são os períodos que menos
atenção têm recebido e surgem quase
envolvidos numa aura de mistério.
2) Prioridade àquilo que se costuma chamar "História
positiva": listagem de autores e obras (estendendo
e completando o extraordinário trabalho de Rodolfo
Guimarães), localização de obras
impressas e em manuscrito e sua microfilmagem, programa
de edição (ou reedição)
das mais significativas. Estudo dessas obras. Estudo
da recepção em Portugal dos grandes avanços
matemáticos dos séculos XVII e XVIII.
Quanto ao século XIX, estudo das teses de Coimbra
e das comunicações e memórias
da Academia das Ciências de Lisboa. Tudo isto
dentro da consciência perfeita de que a História
da Matemática em Portugal tem que ser uma História
de fontes primárias, com total abandono da repetição
acrítica de fontes secundárias.
3) Estudo, com base no material recolhido, de algumas
hipóteses, que poderiam servir de baliza e orientação
neste esforço. Exemplos (entre outras possíveis):
- Existiu ou não ênfase quase exclusiva
na "Matemática Aplicada" em Portugal
nos séculos XVI a XVIII?
- Se sim, teve isso ligação essencial
com o esforço dos Descobrimentos, a rotina das
grandes viagens oceânicas, as necessidades concretas
resultantes do contacto com os territórios de
destino e respectivas populações?
- A confirmar-se um panorama de grande pobreza na nossa
Matemática no período 1578-1772, será
adequado o uso da expressão "decadência",
que sugere queda de alguma (ainda que pouca) altura?
Por outras palavras, terá Pedro Nunes sido o
expoente de uma plêiade, mais ou menos numerosa,
de matemáticos quinhentistas, ou tratou-se de
uma singularidade absoluta?
- Mantiveram-se os matemáticos portugueses no
século XIX minimamente actualizados em relação
à Matemática europeia?
Termine-se com o óbvio. Nada disto será feito se não houver ninguém que o faça. Temos de acreditar que esta é uma tarefa que vale a pena, e que ela cabe a matemáticos, em particular a matemáticos portugueses. Quem sabe se dentro de alguns anos que nunca poderão ser poucos não se estará em condições de escrever uma nova História da Matemática em Portugal?
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