A cultura das Matemáticas em Portugal na primeira metade do século XIX
Estado político do pais no referido período Ao abrir o século XIX estava no auge da sua glória Napoleão Bonaparte, encarnação do lendário Marte, que, por uma série de vitórias brilhantes, arrastara na sua esplêndida órbita tôdas as nações que cercam a França, exceptuando a Inglaterra, aonde não podia levar os seus exércitos. Pretendiam dominar em Portugal a Inglaterra, como velha aliada, a França, porque Napoleão se julgava destinado a ser o senhor da Europa, e a Espanha, porque mantinha sempre os seus sonhos de iberismo. Nestas circunstâncias, a nossa situação na política internacional era muito perigosa para nós e a primeira consequência disto foi, ao abrir o século, a guerra do nosso pais contra a França e Espanha coligadas, que teve como resultado final a perda de Olivença. Em 1808 começaram para o povo português dias mais duros, que mais tarde se haviam de transformar em honras de glória. O génio altivo de Bonaparte, que não conhecia limites ao seu poder, teve o sonho grandioso, ou loucura de quem se julga omnipotente, de vencer econòmicamente a Gran-Bretanha, aniqüilando-lhe o comércio por meio de um bloqueio continental, e impôs a Portugal fechar os portos aos seus navios. O nosso país hesitou e procedeu de modo que não agradou ao déspota, o qual mandou marchar para Lisboa um exército francês comandado pelo general Junot; exército que, depois de atravessar a Espanha, penetrou em Portugal sem resistência e por fim entrou na capital, onde já não encontrou a Côrte portuguesa, porque no dia anterior se tinha retirado para o Brasil, a-fim-de conservar, pelo menos nominalmente, a soberania. A notícia da entrada de Junot em Portugal estendeu-se rapidamente pelo país, e então o povo português, em quem estava ainda encarnada a alma heróica dos antigos Lusos, acordou alvoraçado e soltou um grito de guerra, semelhante a bramido de fera, e êste grito correu de terra a terra desde a fronteira espanhola até às praias do mar. Formaram-se então guerrilhas populares, que hostilizaram fortemente as guarnições militares que o general francês espalhara pelo país. Mas isto não bastaria. Esta massa formidável de gente patriota e valente, mas mal armada e desorganizada, não podia combater em batalhas campais contra os exércitos aguerridos da França. Valeu-nos neste momento a Inglaterra, que, diante da ameaça do bloqueio continental, acordara também e mandara a Portugal um exército, que acabava de desembarcar em Vagos. Comandava êste exército Artur Wellesley, general prudente, sagaz e sabedor, que mais tarde se havia de chamar Lord Wellington e a quem a sorte destinava um papel primordial no seguimento da Epopeia napoleónica. Seguiu-se uma luta culta entre o exército britânico e as tropas de Junot, que, depois de alguns revezes, foram obrigadas a render-se e a sair por mar a caminho da França. Os camponeses portugueses que se tinham levantado por todo o país contra o exército invasor eram patriotas, valentes, sofredores, capazes de árduos trabalhos, de privações, de actos de bravura, mas, para serem bons soldados, faltava lhes a instrução e a disciplina militar; ora aquela instrução e esta disciplina, foram-lhes dadas por instrutores inglêses, bem preparados para isso, e pôde-se assim formar em pouco tempo o exército anglo-luso, mistura bem equilibrada de serenos soldados britânicos e de bravos soldados portugueses, convenientemente preparado para repelir futuras invasões de tropas napoleónicas. E estas invasões não se fizeram esperar muito tempo. Veio primeiramente o exército comandado pelo Marechal Soult, que penetrou pela Galiza, caminhou até ao Pôrto, mas, repelido por soldados portugueses, foi obrigado a retirar disperso para Espanha por veredas escondidas das montanhas. A última invasão das tropas francesas foi a mais importante. Comandava-a Massena, o maior dos Marechais de Napoleão, o Anjo da Vitória, como êle lhe chamava. O exército anglo-luso expulsou-o de Portugal, onde lhe caíram as asas de Anjo, perseguiu-o na Espanha, onde o venceu em Vitória, teve a glória de o perseguir na própria França e de o bater em Tolosa, preparando assim o acto final da Epopeia napoleónica. Terminadas as guerras napoleónicas, regressou D. João VI a Portugal, que encontrou muito mudado. Durante a sua permanência no Brasil, as ideas políticas tinham avançado tanto no sentido liberal que, em 1820, foi obrigado a dar ao seu país uma constituïção; constituïção que êle próprio em breve rasgou por influência nefasta sôbre o seu espírito débil da Raínha D. Carlota Joaquina. Entretanto o Brasil, cuja civilização tinha progredido muito com a permanência durante alguns anos da Côrte portuguesa no Rio de Janeiro, proclamou a sua independência sob o cetro imperial de D. Pedro, filho primogénito do monarca português. Mais tarde, quando D. João morreu, D. Pedro, que não podia ocupar dois tronos, abdicou dos seus direitos à coroa de Portugal em sua filha D. Maria e nomeou, para governar o reino como regente durante a menoridade dela, sua irmã D. Isabel Maria, que depois, por motivos políticos, que é desnecessário aqui apresentar, foi substituída pelo infante D. Miguel, irmão de D. Pedro e noivo da nova raínha. Ao mesmo tempo D. Pedro concedeu a Portugal uma constituïção liberal. D. Miguel, logo que tomou posse do govêrno, traíu o juramento de fidelidade à constituïção e à raínha e perseguiu ferozmente os liberais. Seguiram-se seis anos de horrores em que as vítimas foram os liberais, e os algozes os absolutistas e fecharam êste período dois anos de lutas militares entre os exércitos de D. Miguel e D. Pedro, que tiveram para brilhante epílogo a vitória dos constitucionais em Almoster em 1834. Subiu depois ao trono português D. Maria II, mas a agitação política continuou, como rescaldo de grande incêndio, até aos meados do século XIX, em que começou um longo período de paz bem desejada e bem merecida. Não correu pois propícia à cultura científica em Portugal a primeira metade do século XIX e houve mesmo neste intervalo dois períodos inteiramente impróprios para esta cultura: o período das invasões dos exércitos de Bonaparte e o período das campanhas para a conquista da liberdade. O impulso dado pelo Marquês de Pombal no século XVIII à instrução pública portuguesa com a reforma dos estudos fôra porém tão enérgico, que continuou a exercer a sua acção benéfica nos primeiros anos do século XIX, emquanto viveram os sábios educados naquele século; mas depois veio a decadência cientifica, que só terminou quando terminaram as agitações que a causaram. As Memórias da Academia das Ciências de Lisboa revelam bem esta decadência, pois que, percorrendo-as, vê-se nos primeiros volumes riqueza de trabalhos que satisfaz, e depois, a aumentar de volume a volume, uma pobreza que desconsola. Além disso a publicação destas Memórias esteve interrompida desde 1800 até 1814. Também o estado de agitação do país durante a primeira metade do século XIX, a que nos referimos, impediu que os estadistas que passaram pelo poder durante êste período se ocupassem em melhorar a instrução nacional. Terminadas as campanhas da liberdade, pretenderam os vencedores reformar a instrução no sentido democrático, mas passaram o tempo em discussões estéreis e em reformas efémeras e só perto dos meados do século se conseguiu fazer a êste respeito alguma coisa de sólido. Extinguiram-se então a Academia de fortificação e as duas Academias de náutica fundadas no tempo de D. Maria I e criaram-se, para as substituir, em Lisboa, a Escola Politécnica, a Escola do Exército e a Escola Naval, com organizações mais perfeitas e estudos mais desenvolvidos do que os dos institutos suprimidos. Na Escola Politécnica preparavam-se os alunos com os conhecimentos matemáticos e físicos de que precisavam para os estudos da Engenharia civil e da Arte militar, que se faziam na Escola do Exército. Nos mesmos tempos transformou-se uma Academia elementar de comércio e marinha, destinada a preparar negociantes e pilotos, em uma Academia Politécnica, que tinha por principal missão preparar engenheiros civis. Na Universidade de Coimbra, onde, no que respeita às Matemáticas, os programas se vinham alargando e levantando desde a reforma pombalina, continuaram a alargar-se e a levantar-se, desdobrando cadeiras, passando algumas doutrinas mais elementares para os liceus, criados no período considerado, prolongando a duração da formatura de quatro a cinco anos e substituindo os livros de texto primitivamente empregados por outros mais desenvolvidos e mais modernos. A nacionalização do ensino, pelo emprêgo de livros de texto compostos por professores portugueses só começou a realizar-se na segunda metade do século XIX. No período que vai desde o comêço do século XIX até ao nosso tempo, foram publicados em Portugal numerosos escritos sôbre ciências matemáticas, mas são poucos os que merecem ficar assinalados na sua história. A maior parte dêles só têm interêsse didático, e, entre os que não estão neste caso, há muitos que são erróneos ou simples imitações de trabalhos estranjeiros. Pode-se ver a lista completa dêstes escritos no Catálogo de Rodolfo Guimarãis citado na nossa Introdução ao presente livro. Vamos mencionar os que têm algum interêsse cientifico, limitando-nos aos que foram compostos por autores anteriores ao meado do século XIX. Já dissemos algures que a Matemática é um Mundo de números com planaltos, colinas e montanhas. É fácil caminhar naquelas planuras e colinas, mas ha nêle altos montes a cujos cumes só podem subir os montanheses experimentados e ha píncaros escarpados a que só podem subir as águias do pensamento. Ora tais águias não apareceram no período que vamos considerar, mas apareceram homens inteligentes e sábios, dotados de mais ou menos engenho, uns enamorados dos encantos da arte sintética dos Euclides, dos Newton e dos Huyghens, . . ., outros da elegância de estilo analítico dos Euler, dos Lagrange, e dos Gauss, ..., a estudar as descobertas dos grandes geómetras de diversos tempos, para as explicar ou generalizar, ou para tirar delas proveito para fins determinados. É da obra dêstes sábios portugueses que vamos agora ocupar-nos, começando pelos que apareceram nos fins do século XVIII, discípulos ou continuadores de Monteiro da Rocha e Anastácio da Cunha. Recordemos primeiramente Garção Stockler, que foi aluno da Universidade de Coimbra, depois professor na Academia Real de Marinha e Secretário da Academia das Ciências de Lisboa. Stockler foi ao mesmo tempo historiador dentro das Matemáticas e cultor hábil da Análise. Como historiador legou-nos o Ensaio histórico das Matemáticas em Portugal, já por nós aqui apreciado, e escreveu com brilho literário e elevado conceito científico os elogios históricos do ilustre astrónomo português Soares de Barros e do grande geómetra francês D'Alembert, que foi, como já dissemos, sócio correspondente da nossa Academia de Ciências, elogio em que êste grande homem e magistralmente apreciado como matemático e como filósofo. Como analista, legou-nos Stockler, além de dois trabalhos didáticos sôbre a doutrina dos limites e dos infinitamente pequenos, cuidadosamente redigidos sob o ponto de vista lógico, quatro memórias publicadas nas colecções da Academia das Ciências de Lisboa, nas quais se nota muita sabedoria e notável engenho, mas falta de rigor no emprêgo das séries. Mas êste defeito não é estranhável, porque a doutrina dêste algorítmo estava ainda no seu tempo em estado muito vago e o mesmo defeito se encontra em escritos de grandes geómetras estranjeiros do mesmo tempo. O que acabo de dizer aplica-se em especial à memória que em 1797 publicou nas referidas colecções: Sobre os verdadeiros princíipios do cálculo das fluxões. Nesta memória procura o autor primeiramente explicar o que a respeito dêstes princípios escreveu Newton e depois procura dar uma solução geral do problema da determinação das fluxões, ou, como hoje se diz, das derivadas das funções. Mas, nesta segunda parte, a sua doutrina não é rigorosa. Parte, com efeito, da possibilidade de as funções de uma variável poderem ser sempre desenvolvidas em série convergente ordenada segundo as potências desta variável, sem a demonstrar, e depois faz depender o problema da derivação de cada função especial do problema do seu desenvolvimento em série. Notarei que esta doutrina é semelhante no modo de ser tratada e na falta de rigor à que foi apresentada por Lagrange na sua célebre Théorie des functions analytiques, publicada no mesmo ano, 1797, em que apareceu a memória de Stockler, obra que por isso o nosso matemático não conhecia. Em ambos os trabalhos as derivadas de cada função aparecem como coeficientes do seu desenvolvimento em série ordenada segundo as potências do aumento da variável, sem se demonstrar primeiramente a possibilidade de um tal desenvolvimento. Convém todavia notar que a memória de Stockler é muito inferior à obra de Lagrange, onde se admira muita doutrina sã e, além disso, a beleza de forma e elegância de cálculo que êste grande geómetra sabia dar aos seus escritos. Convém ainda recordar aqui que a doutrina dos desenvolvimentos das funções em série ordenada segundo as potências inteiras e positivas da variável só começou a ter rigor quando Lagrange, no seu Calcul des fonctions, entrou em consideração com o resto da série. Ajuntemos que a memória de Stockler foi atacada, ora bem, ora mal, na Monthly Review, de Edinburgo, e que, ora bem, ora mal, respondeu Stockler em um opúsculo publicado em 1800 sob o título de Lettre à Mr. le Rédacteur des Monthly Review. Outro trabalho notável de Stockler tem por título Memória sôbre funções simétricas e produtos infinitos (Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, t. II, 1799). Começa o autor por dar uma demonstração das fórmulas que na Álgebra ligam os coeficientes de uma equação algébrica às somas das potências de igual grau das suas raízes, fórmulas que tinham sido dadas sem demonstração por Newton na sua Arithmetica Universalis. Esta denlonstração, em que intervêm séries, é semelhante na essência, mas; menos simples no cálculo, à que dera Lagrange no seu Traité de la résolution des équations numériques, livro que fôra publicado em primeira edição no ano anterior e que certamente Stockler não conhecia. Depois o nosso matemático aplica as fórmulas mencionadas à transformação de produtos infinitos em séries e à transformação de séries em outras mais apropriadas ao cálculo numérico. Esta memória pertence a uma espécie de literatura matemática formalista, em parte empírica e em parte lógica que foi principalmente cultivada no século XVIII e no primeiro quartel do século XIX, na qual literatura as leis e regras relativas a somas ou produtos de um número finito de termos ou factores são estendidas sem demonstração aos casos em que êste número é infinito. É interessante notar que, a-pesar-da falta de rigor lógico, estas doutrinas levaram os matemáticos a resultados admiráveis na Física e na Mecânica dos astros. Recordemos que, com séries cuja convergência não demonstraram, conseguiram grandes geómetras dos séculos mencionados chegar à previsão de fenómenos celestes e que a comparação dos números obtidos por meio delas com os dados pelas observações directas dos fenómenos, mostrou que eram eficazes para o seu fim. A parte da Matemática a que nos estamos referindo, só começou a ter rigor perfeito, como já dissemos, depois dos trabalhos de revisão lógica dos princípios da Análise feitos no século XIX; mas, a-pesar-disto, os métodos anteriores são ainda hoje aproveitados nas questões de aplicação em que a doutrina é vaga ou a lei dos termos das séries empregadas desconhecida. É bem de notar que a doutrina da segunda das memórias de Stockler mencionadas, está, no que respeita à lógica, em condições diversas da primeira, porque nesta as séries intervinham para a demonstração de uma teoria fundamental e naquela aparecem com o fim de obter resultados numéricos que estão sujeitos a verificação. As séries podem ser empregadas sem grandes cuidados, pelo que respeita a convergência, como instrumentos de indagação, mas nunca como instrumentos de demonstração. A segunda memória de Stockler está no primeiro caso, a outra no segundo. Observemos finalmente que, sem a audácia no emprêgo das séries, a Matemática estaria ainda hoje muito atrasada no que respeita às aplicações. Dissemos anteriormente que nas demonstrações dadas por Lagrange e Stockler das fórmulas de Newton que ligam as somas das potências das raízes das equações algébricas aos seus coeficientes intervêm as séries. Esta doutrina sai assim fora da Álgebra, aparecendo vestida de roupagens elegantes, mas emprestadas. E todavia não é isto necessário. Com efeito, João Evangelista Torriani, professor na Academia Real de Marinha deu, em 1812 , no tômo III das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, uma demonstração das referidas fórmulas que tem a qualidade importante de ser puramente algébrica. Este mesmo distinto algebrista analisou profundamente e desfez a doutrina de Wronski relativa à resolução geral das equações algébricas em um trabalho premiado pela Academia mencionada e publicado na sua colecção de Memórias (t. VI, 1819). Ocupemo-nos agora dos trabalhos de Manuel Pedro de Melo, discípulo de Anastácio da Cunha em Lisboa e depois de Monteiro da Rocha na Universidade de Coimbra e por fim professor da Faculdade de Matemática desta Universidade. Residiu algum tempo em Paris, onde teve relações com Delambre e onde publicou uma edição em francês dos principais trabalhos astronómicos de Monteiro da Rocha com anotações que esclarecem alguns pontos. O mais notável escrito que temos de Pedro de Melo é uma Memória sôbre binomiais publicada nas colecções da Academia das Ciências de Lisboa (t. IV, 1815). Nesta Memória o autor começa por apresentar numerosas relações entre os coeficientes do desenvolvimento newtoniano do binómio; depois relaciona as factoriais de Vandermonde e Arbogast, isto é, os produtos de factores equidiferentes com aqueles coeficientes; e por fim, como conseqüência destas relações deduz muitas propriedades das factoriais e, em especial, a fórmula conhecida pelo nome de binómio das factoriais que Kramp tinha obtido por meio de uma indução imperfeita. A Memória de que acabamos de falar é digna de ser notada. Não há nela talvez fórmulas novas; mas há a unificação de duas doutrinas que se expunham por modos independentes, tornando-se uma corolário de outra. O matemático português de que estamos a falar teve a honra de ver premiado um dos seus trabalhos, consagrado à composição das fôrças, pela Academia das Ciências de Copenhague com uma medalha de ouro em concurso por ela aberto. Infelizmente êste trabalho perdeu-se por um concurso de circunstâncias impressionantes: o manuscrito foi destruído por um incêndio que devorou a biblioteca daquela Academia na ocasião do bombardeamento da cidade por navios da Gran-Bretanha e a cópia que o autor conservava em Coimbra foi destruída por outro incêndio que devorou a casa que habitava. Lastimando êste facto, disse-me há anos o ilustre matemático Zeuthen, Secretário daquela Academia, que a Memória perdida era certamente notável, porque, por uma acta desta corporação se via que tinham sido muitos os concorrentes ao prémio proposto. Não devemos também deixar de recordar aqui Mateus Valente do Couto, que foi professor na Academia Real de Marinha, e deixou trabalhos importantes sôbre Matemáticas puras e sôbre Astronomia. Agora vamos falar dos que consagrou àquelas ciências; mais tarde citaremos alguns dos que consagrou a esta. Comecemos por mencionar uma Memória importante sôbre métodos de aproximação em Trigonometria plana e em Trigonometria esférica, premiada e publicada pela Academia das Ciências de Lisboa (Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, t. III, 18l4). É bem sabido que em muitas questões de Astronomia e Geodesia se substituem os triângulos pequenos por triângulos planos, mais fáceis de resolver. Para esta substituição ser aproveitada com confiança, é necessário conhecer o limite do êrro que resulta dela para cada elemento desconhecido do triângulo dado. Ora, Valente do Couto, na sua Memória, considera os diversos casos de resolução dos triângulos esféricos e dá fórmulas e Tábuas para em cada caso se calcular o grau de aproximação com que se obtêm os elementos procurados. Deve-se ainda a Valente do Couto uma dissertação filosófica notável sôbre a génese das operações em Aritmética e Álgebra, publicada nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (t. III, 1814), digna de ser lida ainda no nosso tempo. Há mesmo nela doutrina muito próxima das ideas modernas no que respeita ao assunto a que é consagrada. Com efeito, o autor considera as operações algébricas como combinações de letras, que podem representar números ou objectos, sujeitos a certas leis que as caracterizam, leis que indica e que hoje se chamam propriedades combinatórias. Francisco Simões Margiochi, professor na Academia Real de Marinha, de que vamos agora ocupar-nos, publicou nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (t. VII, 1821) um trabalho sôbre a resolução geral das equações algébricas, em que pretende mostrar que as equações de grau superior ao quarto não são solúveis por meio de radicais. Seguindo o caminho aberto por Lagrange na célebre Memória que consagrou às equações algébricas, Margiochi reüne em síntese geral as doutrinas relativas às quatro dos quatro primeiros graus e, como nesta síntese não cabem as equações de grau superior ao quarto, conclue que estas equações não podem ser resolvidas algebricamente. A conclusão é exacta, mas a demonstração é defeituosa; a demonstração verdadeira foi encontrada mais tarde pelo génio de Abel. Da doutrina porém de Margiochi, fica de aproveitável uma forma das raízes que o levou a um método uniforme para a resolução das equações dos quatro primeiros graus. Rodolfo Guimarãis, no seu Catálogo, seguindo uma indicação de Brocard, atribue a Luiz Olivier o ter dado pela primeira vez aquela forma das raízes e este método, mas estão ambos em êrro, porque o trabalho de Olivier foi publicado em 1826 no Jornal de Crelle e o de Margiochi fôra já publicado antes, em 1821. Existe outra memória de Margiochi, publicada em 1812 nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (t. III), sob o título de Fundamentos da Algoritmia que devo aqui mencionar, porque há nela doutrinas que têm relações com doutrinas dos Princípios matemáticos de Anastácio da Cunha, anteriormente aqui analisados: quero referir-me à doutrina das séries e à doutrina geral das potências. O modo como Margiochi estuda estas duas questões não difere essencialmente da que empregara Anastácio da Cunha e é estranhável que o não cite. No que respeita às séries, apresentam ambos os mesmos teoremas, com as mesmas demonstrações e as mesmas lacunas. No que respeita às potências, recorrem ambos como definição a série da exponencial de Newton, mas a exposição de Anastácio da Cunha é mais perfeita. Ajuntemos que Margiochi pretende demonstrar a fórmula de Newton directamente para o caso das potências de expoente inteiro como meio de sugerir a definição de expoente qualquer, mas a prova que pretende dar, seguindo ideas metafísicas de Wronsky, é fundamentalmente falsa. Encontra-se neste mesmo trabalho um estudo interessante sôbre as operações algébricas consideradas sob o ponto de vista combinatório, semelhante ao de Valente do Couto, há pouco mencionado, mas tratado de um modo mais abstracto. Os dois matemáticos de que acabo de falar, Margiochi e Valente do Couto, publicaram conjuntamente uma Memória com o título de Cálculo das notações, que foi publicada em 1814 nas colecções da Academia das Ciências de Lisboa (t. III). Os autores consideram seis símbolos, que representam respectivamente: o valor que toma uma função quando às variáveis se dão aumentos determinados, a operação inversa da anterior,; diferença entre os dois estados da função, a operação inversa desta, a diferencial da função e o seu integral; estudam as propriedades destas operações que são independentes da função e formam assim uma Álgebra simbólica que, manejada como a Álgebra ordinária, evita longos cálculos em vários assuntos em que intervêm estes símbolos. Inspiraram-lhes esta Memória trabalhos de Leibniz, Lagrange e Laplace sôbre certas questões desta natureza. Leibniz notou a analogia entre as potências e diferenciais na fórmula que dá a derivada de qualquer ordem do produto de funções. Lagrange, seguindo na mesma via, notou a analogia entre as potencias e as diferenças de qualquer ordem das funções. Laplace quis ir mais longe, pretendendo criar um cálculo simbólico desta natureza com força de demonstração, mas Lorgna mostrou que a não tinha. Margiochi e Valente do Couto pretendem remediar os defeitos da doutrina de Laplace na exposição sistemática do cálculo das operações feito na Memória mencionada, mas os resultados a que tal cálculo conduz não são nela estabelecidos com a clareza que deve ter uma boa demonstração. Todavia, aplicando-o a diversas questões, obtiveram por meios simples resultados que pelos métodos ordinários exigem longos desenvolvimentos. A Memória de que acabamos de falar juntou outra Francisco de Paula Travassos, que muito esclarece a doutrina daquela, sem contudo levar à convicção de que não se trata de um modo de demonstração, mas sim de analogias. É justo mencionar também aqui José Maria Dantas Pereira, professor na Academia dos Guarda Marinhas, que, entre outros trabalhos, deixou um intitulado Reflexões sobre certas somações dos termos das séries aritméticas aplicadas às soluções de diversas questões algébricas, publicado nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (t. II, 1799), trabalho que merece atenção porque nêle se encontra um método para a resolução das equações numéricas do qual não difere essencialmente o que deu mais tarde, em 1819, o matemático suíço Horner nas Phylosofical Transactions de Londres, como fèz notar o falecido professor da Universidadc do Pôrto Dr. Luiz Woodhouse em uma comunicação apresentada no Congresso das Associações Portuguesa e Espanhola para o Progresso das Ciências. Este método apareceu a Dantas Pereira como conseqüência de um estudo sôbre o círculo dos valores numéricos de um polimónio inteiro, correspondentes a valores inteiros da variável, por meio de adições de series aritméticas. Pelo que respeita à Mecânica, o único tratado de interêsse que se publicou em Portugal no período a que nos estamos referindo, tem por autor Francisco de Paula Travassos, já aqui mencionado, e apareceu em 1799 nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, sob o título de Ensaio sôbre as brachistochronas, etc. É bem sabido que o problema da curva de mais breve descida foi considerado pela primeira vez pelos irmãos João e Jacob Bernoulli, depois por Leibniz e Euler e por fim por Lagrange, que lhe aplicou o seu método das variações. Paula Travassos aplica-lhe o método de Lagrange, supondo que o corpo é atraído por fôrças quaisquer e acaba por mostrar a falsidade de duas proposições dadas por Euler no seu tratado de Mecânica. Na lista dos sábios que em Portugal se ocuparam das Matemáticas no período que estamos a considerar, figuram em maioria os astrónomos. Não admira; a Astronomia tinha entre nós tradições fortemente enraízadas. A sua cultura começara em Sagres com o Infante Navegador, atingira o seu esplendor com Pedro Nunes e rejuvenescera com Monteiro da Rocha, que, vivendo em tempos de maior prosperidade nacional do que os que se seguiram ao da morte do grande cosmógrafo de D. João III, teve maior número de discípulos e continuadores distintos do que aquele tivera. Mas os trabalhos dos astrónomos dêste período referem-se geralmente a questões de índole técnica: composição de Tábuas numéricas úteis, medidas de coordenadas geográficas, observações de fenómenos, etc., e nenhum deles subiu ao estudo de problemas cosmológicos difíceis ou de questões altas de Mecânica dos Mundos. Os únicos trabalhos de astrónomos portugueses posteriores a Monteiro da Rocha que oferecem algum interêsse sob o ponto de vista científico são os seguintes: 1.º Duas Memórias importantes publicadas por Mateus Valente do Couto nas colecções da Academia das Ciências de Lisboa (t. VIII, 1823) sôbre os princípios em que se deve fundar qualquer método de calcular a longitude geográfica de um lugar tendo em atenção a figura da Terra e sôbre a influência do êrro que pode cometer-se nos ângulos horários do Sol e da Lua quando se não atende à figura da Terra. 2.º Um opúsculo de Francisco de Paula Travassos intitulado Método da redução nas distâncias observadas no cálculo das longitudes (Coimbra, 1805), onde o autor apresenta um novo método para o cálculo das distâncias lunares, que mais tarde foi reinventado pelo astrónomo inglês Wils Brown, que não conhecia o opúsculo de Travassos, e aprovado pela Academia de Ciências de Paris(1).
Além dos serviços feitos à Astronomia com a publicação de trabalhos sôbre esta ciência que lhe foram apresentados, outros prestou a Academia de Ciências de Lisboa à mesma ciência com a publicação de Efemérides para uso das navegações, antes de aparecerem as da Universidade de Coimbra, e com a fundação de um observatório no Castelo de S. Jorge. Entre os astrónomos que trabalharam neste observatório distinguiu-se Custódio Gomes Vilas-Boas, e, entre as observações que nêle fêz, recordaremos as que se referem à determinação das suas coordenadas, cujos resultados foram publicadas no volume III das Memórias da referida Academia, conjuntamente com uma notícia histórica muito interessante sôbre os trabalhos realizados anteriormente por astrónomos nacionais e estranjeiros no Colégio de Jesuítas de Santo Antão e no Colégio dos Nobres para determinar aquelas coordenadas. Os trabalhos astronómicos foram inaugurados no Brasil pelos portugueses antes de êste país se separar da nação-mãi. Inaugurou-os Bento Sanches Dorta, que residiu muitos anos naquela colónia portuguesa e ali fêz nos anos de 1781 a 1788, além de numerosas observações meteorológicas muitas observações de alturas do Sol e de eclipses dos satélites de Júpiter com o fim de determinar as coordenadas geográficas do Rio de Janeiro. É bom recordar aqui que a primeira determinação da latitude desta cidade tinha sido feita por Mestre João, astrónomo da expedição de Pedro Álvares Cabral. As observacåes de Sanches Dorta são, para assim dizer, o prelúdio da cultura astronómica realizada mais tarde, depois da separação, pelo Observatório Astronómico fundado pelo Imperador D. Pedro II. As observações do astrónomo português considerado foram publicadas nos tomos I e III das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (1797 e 1812). No reinado de D. Maria I começou a cultivar-se em Portugal a Geodesia, ciência afim da Astronomia Começou-se com efeito em 1784 a fazer a triangulação do reino, trabalho de que foi encarregado o Dr. Francisco António Ciera, filho de um dos Matemáticos chamados de Itália a Portugal pelo Marquês de Pombal, quando organizou os estudos. As réguas empregadas nesta triangulação para medir as bases, foram inventadas por Monteiro da Rocha. Estes trabalhos principiaram com bastante desenvolvimento, mas foram depois interrompidos durante anos e só recomeçaram com regularidade nos meados do século XIX sob a direcção hábil do Dr. Filipe Folque . Este distinto astrónomo publicou nos volumes correspondentes a 1843, 1848, etc., das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, uma série de trabalhos notáveis consagrados à referida triangulação, onde são indicados os triângulos que se consideram, os ângulos e bases que se mediram, as fórmulas que se empregaram, etc., acompanhado tudo de uma critica judiciosa. Esta série de memórias constitue uma história muito bem feita da Geodesia em Portugal. Daniel Augusto da Silva, que escreveu os seus principais trabalhos nos meados do século XIX, será o último matemático de que aqui falaremos. Por dever de sucessão no título de sócio de mérito da Academia das Ciências de Lisboa, pronunciamos o seu Elogio histórico em 1916 em sessão solene desta Academia, realizada na sua sala nobre, Elogio que foi publicado nas Memórias daquela corporação e transcrita nos nossos Panegíricos e Conferências. Aqui vamos resumir o que de mais essencial dissemos sobre a vida e escritos do ilustre geómetra português no Elogio mencionado, e assim terminaremos o quarto dos períodos em que dividimos a história das Matemáticas em Portugal, e com isto fecharemos este livro. Daniel Augusto da Silva nasceu em Lisboa em 16 de Maio de 1814. Foi Oficial de Marinha, Bacharel em Matemática pela Universidade de Coimbra, professor na Escola Naval e sócio de mérito da Academia das Ciências de Lisboa. A sua actividade científica, que foi grande, começou em 1845, ano em que entrou para o professorado da Escola Naval. Entremeou desde essa ocasião o cumprimento dos seus deveres de professor com o estudo dos clássicos das Matemáticas e com profundas meditações, cujos frutos foram três Memórias notáveis que apresentou à Academia das Ciências de Lisboa no intervalo de 1850 a 1852. Vamos falar destas Memórias. O principal inspirador de Daniel da Silva nestes primeiros trabalhos foi Poinsot e creio poder afirmar que o geómetra português se revela nêles como um continuador digno do eminente matemático francês. Algumas vezes ocupa-se naqueles trabalhos com inteligência notável dos métodos do eminente matemático francês, outras vezes serve-se dêstes métodos para indagações próprias, manejando-os com suma habilidade. A Memória que primeiro compôs tem por título Da transformação e redução dos binários de fôrças. É bem sabido que Poinsot, no seu belo tratado de Estática, substituiu os momentos das fôrças, empregados antes dêle pelos geómetras como meios subsidiários para deduzir as condições de equilíbrio dos corpos, por binários de fôrças iguais, paralelas e de direcções opostas (couples), e que deste modo conseguiu simplificar e iluminar a maior parte das teorias da Mecânica. É à teoria dos binários que é consagrada a Memória de Daniel a que nos estamos referindo, teoria que o nosso geómetra simplificou em muitos pontos, e em especial na parte relativa a decomposição dos binários em outros colocados em planos coordenados oblíquos, empregando para isso uma representação geométrica nova dêstes grupos de fôrças. O segundo trabalho composto por Daniel da Silva tem por título Memória sobre a rotação das fôrças em tôrno dos pontos de aplicação. Apresentado à Academia das Ciências de Lisboa, foi publicado em 1851 e abriu ao autor as portas desta casa, onde entrou neste mesmo ano como sócio correspondente. Êste trabalho é muito mais importante do que aquele de que primeiro falámos. No primeiro trabalho há apenas demonstrações novas de doutrinas conhecidas, o segundo constitue um estudo cheio de originalidade e profundeza de uma questão que a si mesmo propusera. Nesta bela e importante Memória, em que o autor se revelou pela primeira vez como matemático de grande valor, mostra êle como variam os efeitos das fôrças aplicadas a um corpo, quando estas fôrças giram à roda dos seus pontos de aplicação, conservando-se porém constantes os ângulos que fazem entre si, e determina as diversas circunstâncias notáveis que acompanham esta mudança de orientação das mesmas fôrças. A teoria importante a que é consagrado este trabalho, constitue actualmente um capítulo de Mecânica racional a que se då o nome de Astática, a qual tem hoje aplicações notáveis em algumas questões de Física. Podemos resumir a história da Astática nos termos seguintes: Möbius ocupou-se dela, na sua Estática, publicada em 1837, mas limitou-se a abri-la e Minding enriqueceu-a com um teorema notável, publicado no tômo XV do Jornal de Crelle. Daniel da Silva sem conhecer aqueles trabalhos estudou o mesmo assunto, e, penetrando nele profundamente, organizou-o de um modo completo. Há no trabalho de Möbius uma proposição fundamental que devemos fazer notar, porque é falsa e na Memória de Daniel encontra-se a que deve substituí-la. Quero referir-me à determinação da orientação das fôrças de um sistema a que corresponde o seu equilíbrio. Möbius julgava que todo o sistema de fôrças que está em equilíbrio em quatro orientações diferentes, deve estar em equilíbrio em todas as outras orientações. Daniel da Silva chegou a um resultado diferente, mostrando que há em geral quatro posições de equilíbrio e só quatro. Este último enunciado, que deve substituir o de Möbius, foi confirmado pelos autores que, depois do geómetra português, se ocuparam deste assunto. Vinte e cinco anos depois da publicação da Memória do nosso matemático, Darboux, sem conhecer esta Memória, ocupou-se da mesma questão em uma comunicação feita, em 1876, à Academia das Ciências de Paris e em um trabalho publicado em 1877 nas Memórias da Sociedade de Ciências Físicas e Naturais de Bordéus, mas as proposições que deu estão contidas quási tôdas na Memória do geómetra português, a qual encerra ainda outros resultados interessantes que não vêm nem no trabalho de Möbius nem no de Darboux. A impressão que produziu no espírito do nosso geómetra a circunstância de se encontrar na invenção de uma teoria importante com dois matemáticos eminentes estranjeiros exprimiu êle de um modo comovedor em uma carta que me diriu em 1877 e que se pode ler nos nossos Panegíricos e Conferências. Os métodos usados por Daniel e Darboux para estudar a Astática são diferentes. Ambos empregaram simultâneamente meios geométricos e analíticos, predominando na Memória do geómetra português os primeiros, na de Darboux os segundos, ambos estudaram o assunto com profundeza, ambos o expuseram em estilo sóbrio, claro e elegante. Em conclusão o capítulo de Mecânica chamado Astática é principalmente obra portuguesa. Möbius abriu-o, mas errou em uma proposição fundamental, Daniel da Silva deu a proposição que deve substituir a proposição fundamental de Möbius e organizou-o completamente. A comparação dos trabalhos de Möbius, Minding, Darboux e Daniel foi cuidadosamente feita por Fernando de Vasconcelos em uma Memória notável publicada no tômo VII dos Anais da Academia Politécnica do Pôrto. A terceira das Memórias de Daniel da Silva anteriormente mencionadas tem por título Propriedades gerais e resolução das congruências binómias, e foi apresentada à Academia das Ciências de Lisboa em 1852. É um trabalho sobre a teoria dos números em que o autor não brilha menos no manejo do cálculo, do que brilhara nos trabalhos anteriores no manejo dos métodos da Geometria pura. Pertencem à alta Aritmética os assuntos estudados pelo nosso matemático nesta Memória. A êste respeito o autor conhecia os trabalhos de Euler, Lagrange, Legendre, Gauss e Poinsot. O principal assunto que considerou, foi o da resolução das congruências binómias, teoria pertencente simultâneamente ao domínio da alta Aritmética e da alta Álgebra, e enriqueceu-a com resultados tão importantes e gerais, que o seu nome merece figurar na lista dos que a fundaram. Foi com efeito Daniel da Silva quem primeiro deu um método para resolver os sistemas de congruências lineares, honra que tem sido indevidamente atribuída ao distinto aritmético inglês Smith, que só em 1861 se ocupou dêste assunto, e foi também quem primeiro fêz o estudo geral das congruências binómias. Contém ainda a mesma Memória outros resultados notáveis relativos à alta teoria dos números. O autor apresenta com efeito nela demonstrações novas das fórmulas dadas por Euler e Poinsot para determinar o número de números primos com um número dado que lhe são inferiores, uma fórmula nova para determinar a soma daqueles números; uma generalização de um teorema célebre de Fermat e Euler, a demonstração directa de uma fórmula de Gauss, a que este grande geómetra chegou por um caminho indirecto e que julgava difícil obter por meios directos, interessantes investigações sôbre propriedades e cálculo das raízes modulares, etc. Esta Memória importante ficou, como a Memória sôbre Mecânica há pouco mencionada, injustamente esquecida durante cêrca de meio século, até que, em 1903, um matemático italiano de muito mérito, Alasia publicou na Revista de Física, Matemática e Ciências Naturais de Pavia, uma apreciação dela muito desenvolvida e muito bem feita. Acabamos de falar dos principais trabalhos de Daniel da Silva. Depois de os escrever, uma grave doença impediu-o de continuar a trabalhar. Mais tarde melhorou um pouco e pôde continuar as suas indagações científicas, mas teve de descer a assuntos mais modestos. Apresentou então a Academia das Ciências de Lisboa uma Memória intitulada De várias fórmulas novas de Geometria analítica relativas aos eixos de coordenadas obliquas e Notas sôbre diversas questões de Geometria, Mecânica, Actuaria e Física, em tôdas as quais há alguma coisa de original. Viveu em luta pertinaz com aquela doença que o não deixava entregar-se quanto queria a ciência da sua predilecção, até que em 6 de Outubro de 1878, a sua alma desapareceu da cena do mundo, e o seu nome passou à história da ciência portuguesa, onde ficou a ocupar um lugar distinto. Está terminado o nosso programa: expor a história da cultura das Matemáticas em Portugal desde a origem até ao meio do século XIX. Quem leu êste livro notou de certo que nesta história sobressaem quatro nomes: Pedro Nunes, no século XVI, Monteiro da Rocha e Anastácio da Cunha, no século XVIII, e Daniel da Silva, no século XIX. É interessante compará-los e, a êste respeito, vamos reproduzir aqui o que dissemos nos nossos Panegíricos e Conferências: «Alguns matemáticos empregam todos os seus esforços na exploração de novas regiões do Mundo dos números ou no estudo daquelas que outros anteriormente abriram. Está neste caso Daniel da Silva. «Outros matemáticos procuram segurar lògicamente domínios anteriormente explorados. Está neste caso Anastácio da Cunha. «Outros vão principalmente buscar ao Mundo dos números os elementos de que carecem para estudar o Mundo físico. Está neste caso Monteiro da Rocha. «Outros emfim contribuem com os seus trabalhos ao mesmo tempo para o progresso do estudo do Mundo físico e do Mundo dos números. Está neste caso Pedro Nunes.. «Daniel da Silva, poeta das Matemáticas, foi procurar nestas ciências o que têm de belo; Monteiro da Rocha, um realista, foi procurar nelas o que têm de útil, o espírito de Pedro Nunes, inspirado ao mesmo tempo pelas teorias da ciência grega e pelas necessidades das navegações portuguesas, foi aí procurar simultâneamente o belo e o útil. «Daniel da Silva deu ao Mundo dos números a sua Astática, sem se importar com as aplicações dêste capítulo da Mecânica racional, que outros fizeram depois, e deu-lhes também as suas belas investigações sôbre as congruências binómias. Pedro Nunes deu àquele Mundo a sua Álgebra, que ficou célebre entre as obras consagradas a esta disciplina que fazem a passagem da Ciência helénica para a Ciência moderna, e foi lã buscar os elementos para resolver os problemas propostos à Astronomia pela Náutica do seu tempo e para resolver diversas questões da Física Celeste. «Anastácio da Cunha deu-lhe os Princípios Matemáticos, livro onde, a par de grandes defeitos há ideias finas para o seu tempo sôbre a exposição rigorosa das doutrinas então clássicas. «Monteiro da Rocha não concorreu para o progresso do Mundo dos números; o seu talento tinha principalmente uma feição prática; não criou teorias, resolveu com habilidade notável problemas geométricos e astronómicos mais ou menos difíceis. |
FIM