Dois problemas, uma só solução: o crescimento exponencial

Os problemas "NO TEMPO DE D. AFONSO HENRIQUES" e "UMA QUESTÃO DE LUCRO" baseiam-se no mesmo conceito matemático, embora este seja utilizado de forma um pouco diferente. Se fizeram as contas no primeiro problema verificaram que obtiveram exactamente 134217728 pessoas, ou seja, mais de 134 milhões. Porque é que eu falei em 125 milhões no texto anterior? É simples: não fiz as contas! Como davam muito trabalho, resolvi arranjar uma maneira de as evitar. A Matemática também é isto, arranjar a melhor maneira de obter um resultado sem ter que fazer as contas, mesmo que só consigamos obter uma aproximação. Fiz assim: Há 210 anos viveram 64 antepassados do menino Leocádio, ou seja, 26 antepassados. Há 240 anos, como havia o dobro de antepassados da geração anterior, havia 2 x 2^6 =2^7 =128 antepassados. Há 270 anos havia 2 x 2^7 =2^8 =256 antepassados. Há 300 anos havia 2 x 2^8 =2^9 =512 antepassados. Há 330 anos havia 2 x 2^9 =2^10 =1024 antepassados. Não aguento mais, estou farto de contas! Mas...espera aí. 1024 é aproximadamente 1000; o erro não é muito grande e o número 1000 é mais simples de utilizar nas contas. E se eu tomasse 2^10 =1024 que não é verdade mas está muito perto dela e continuasse as contas assim? Vejamos... Que tenho eu de calcular? Há 840 anos havia 2^27 antepassados do menino Leocádio. E agora apliquemos as propriedades das operações com potências (sempre se aprende algo de útil nas aulas de Matemática...),

2^27 = 2^10 x 2^10 x 2^7
= 1000 x 1000 x 128
= 1 000 000 x 128
= 128 000 000

tudo isto aproximadamente. E como é só um cálculo aproximado podemos dizer que são aproximadamente 125000 000, isto é, 125milhões de antepassados.
Qualquer que seja o modo utilizado para fazer as contas, é muita gente. Como é que pode dar um número tão grande se não parece, à partida, que possa dar tanto? Aqui é que entra o crescimento exponencial. Parece muito inocente estar sempre a multiplicar por dois mas se se multiplicar muitas vezes por dois o número que se obtém é inesperadamente grande. Por outras palavras

2^x

é pequeno se o número x for pequeno, mas à medida que x vai crescendo torna-se tão grande que é difícil imaginar. É nisso que consiste o crescimento exponencial . Vocês vão encontrar várias vezes a função que descreve esse crescimento. Verão, por exemplo, no 12º ano, que

lim
x->+[INFINITY] 2x x10000000000000 = +[INFINITY]

continuando o limite a ser +[INFINITY] mesmo que o expoente do x no denominador seja ainda maior.
Com isto tudo já devem ter percebido melhor o segundo problema. O primeiro ainda não acabou, mas talvez queiram reflectir melhor sobre o assunto. Façam um intervalo e depois continuem a ler a resposta...

...Já perceberam o segundo problema? Trata-se com efeito de comparar 2^29 escudos (não, não são 2^30 , verifica bem) com 30 x 100 000 escudos. Temos

2^29 = 2^10 x 2^10 x 2^9
= 1000 x 1000 x 512
= 1 000 000 x 512
= 512 000 000

Ou seja, a Gisela teve de pagar mais de 512 mil contos à Cecília enquanto que a espertalhona da Cecília apenas teve de pagar 3 mil contos. Claro que a Cecília não exigiu o pagamento à amiga, mas obrigou-a a passar a estar com mais atenção na aula de Matemática para não tornar a cair em esparrelas semelhantes.
Quanto ao primeiro problema, falta explicar como é possível o menino Leocádio ter mais de 125 milhões de antepassados. E se entrarmos em linha de conta com o facto de o mesmo raciocínio se poder aplicar a ti, leitor, a todos os teus amigos e conhecidos, aos teus inimigos, a todos os habitantes actuais de Portugal, os antepassados nunca mais acabam. Que aconteceu? Claro, estamos a considerar como sendo diferentes pessoas que na realidade não são diferentes! Quem me diz que os avós em 23º grau do menino Leocádio são todos diferentes? E que um, ou mais, dos teus avós em 12º grau não é também meu avô? Pode perfeitamente acontecer que numa família com dois (ou mais) filhos estes tenham dois (ou mais) filhos que por sua vez têm dois (ou mais) filhos e que 5 gerações depois dois dos descendentes (que até podem já nem saber que são primos) casem um com o outro. Os filhos destes terão alguns avós de 8ª geração iguais (embora possam não ser todos iguais). E como temos a certeza de que aconteceu isso mesmo, se não há praticamente registos dos nascimentos e casamentos de toda a gente ao longo destes 840 anos? Existe um princípio muito importante em matemática chamado "the pigeonhole principle", o princípio da gaiola, que diz que se temos apenas 10 gaiolas e 11 pombas então alguma gaiola deve conter mais de uma pomba. É evidente, não é? Então aplica este princípio ao nosso caso. Se no tempo de D. Afonso Henriques havia menos de um milhão de habitantes e, pelas nossas contas, o menino Leocádio tem mais de 125 milhões de antepassados é porque entre esses antepassados existem repetições, ou seja, antepassados que são contados em separado são na realidade o mesmo.
E ainda podemos tirar a conclusão interessante de em Portugal existir uma grande probabilidade de sermos todos primos pelo menos em 27º grau pois, se cada um de nós tem 125 milhões de antepassados, mesmo havendo muitas repetições, só muito por acaso é que não temos antepassados comuns. Dito doutro modo, na tua turma, provavelmente só existem primos pelo menos em 27º grau (pode até ser menos), ou seja, são todos da mesma família. E se calhar o teu professor ou professora de matemática também é teu primo (ou prima) pelo menos em 27º grau. Se tu o/a conseguires convencer disso pode ser que as próximas notas sejam melhores (não por serem primos em 27º grau mas por teres conseguido apresentar um bom raciocínio matemático, claro).
Alguns conceitos matemáticos relacionados com este último que discuti aprenderão vocês no capítulo de Análise Combinatória que é leccionado em Matemática no 11º ou 12º ano.

Se perceberam estes dois problemas, espero que consigam também resolver o Mistério da Carta Falsa: Já receberam se calhar uma carta a dizer que se enviassem imediatamente uma cópia dessa carta, no prazo de oito dias, a cinco ou dez pessoas vossas conhecidas iriam ganhar muito dinheiro a breve prazo; se não obedecessem às instruções da carta, uma grande desgraça vos aconteceria. Ora bem, pode-se provar matematicamente que esta carta é falsa, se entrarmos em linha de conta com um dado suplementar que costuma vir referido na carta; costuma dizer "esta cadeia de cartas foi iniciada em 1967 por X no país Y e nunca foi quebrada até hoje". Porque é falsa esta carta?

Por fim sugiro-vos a leitura de alguns livros onde poderão encontrar problemas deste género. Há três livros intitulados "100 jogos ... " editados pela Gradiva que contêm perguntas de índole geométrica, aritmética ou lógica. Todos os domingos sai no jornal "Público" uma secção intitulada 'Desafios' (no suplemento "Público Magazine") da autoria de Eduardo Veloso e José Paulo Viana, contendo um problema matemático no geral muito divertido, cuja solução sai na semana seguinte; todos os problemas que já sairam no primeiro ano de publicação da secção foram editados em volume que foi publicado pela editora Afrontamento e que se chama exactamente "Desafios". Por último recomendo-vos dois livros do matemático espanhol Miguel de Guzmán que contêm vários problemas importantes da história antiga e moderna da matemática escritos de uma forma muito simples e atraente, e que foram editados em Portugal pela Editora Gradiva na sua colecção "O Prazer da Matemática" (que aliás contém mais livros interessantes que têm a ver com a Matemática e os seus problemas).


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