Boletim da SPM,
nº 32, 1995, p. 101-114.
O pensamento pedagógico de
José Sebastião e Silva
- uma primeira abordagem -
Jaime Carvalho e Silva
Departamento de Matemática
Universidade de Coimbra
Em 12 de Dezembro de 1994 completaram-se
80 anos que nasceu em Mértola o matemático e pedagogo português
José Sebastião e Silva, um dos maiores, se não mesmo
o maior vulto português na área da Matemática e do
Ensino da Matemática neste século XX.
A sua obra não tem merecido,
na minha opinião, a atenção devida. A obra científica
foi reeditada em três volumes pelo extinto INIC e está em
preparação uma edição também em três
volumes dos seus mais significativos trabalhos pedagógicos (ver
Boletim da SPM, nº 15, 1990, pg 59). Contudo os seus "Compêndios
de Álgebra" (escritos em colaboração com J. Silva
Paulo) só se encontram por vezes nalgum alfarrabista, os "Compêndios
de Matemática", aparentemente ainda não esgotados, são
de muito difícil obtenção e outros trabalhos seus
não se encontram disponíveis. Nem o seu pensamento tem sido
objecto das análises que é necessário fazer para o
entendermos melhor pois a morte prematura não deu tempo a José
Sebastião e Silva de completar o que iniciara. A (um pouco impropriamente)
chamada "Reforma da Matemática Moderna" de sua autoria terminou
abruptamente sem nunca ser avaliada e nos últimos anos os responsáveis
pelo ensino da matemática em Portugal não têm dado
qualquer atenção aos seus escritos, o que faz com que pareça
estar sempre a começar-se tudo de novo. Faço votos para que
a publicação dos volumes com a sua obra pedagógica
faça retomar o interesse pelo pensamento de José Sebastião
e Silva.
Em termos gerais, Sebastião
e Silva teve relativamente ao Ensino da Matemática uma visão
globalizante capaz de compreender o que se passava desde o Ensino Primário
ao Ensino Superior. Via a Matemática não como um conjunto
de técnicas a dominar mas como um meio de conseguir a formação
integral de um cidadão. Como referia A. Franco de Oliveira (ver
"Ensino da Matemática - Anos 80", SPM, 1982, pg. 162): "uma directriz
essencial do projecto de modernização veiculado por José
Sebastião e Silva: dar ao estudante uma visão do porquê,
a par do como se faz." Contudo, nem sempre as suas ideias foram bem compreendidas,
tendo os seus "Compêndios de Álgebra" e a Reforma da Matemática
Moderna sido bastante criticados.
Neste trabalho vou evocar alguns aspectos
do seu pensamento, através de uma série de extractos de textos
seus, seguindo de bastante perto as intervenções que fiz
no Encontro Nacional da SPM de Aveiro em 1992 e no Encontro Regional da
SPM de Lisboa de 1993. A utilização de extractos permitirá
seguir mais fielmente o seu pensamento embora exista o risco de as citações
não descreverem rigorosamente as ideias de Sebastião e Silva,
por serem retirados de um contexto que as pode alterar; tentarei evitar
este último perigo, fazendo citações de trabalhos
diferentes para reforçar cada linha do pensamento de Sebastião
e Silva.
----Objectivos do Ensino da Matemática----
A primeira questão a pôr
é: para que serve o Ensino da Matemática? Sebastião
e Silva tinha ideias muito precisas:
A meu ver são principalmente
o sentido crítico e a autonomia mental as qualidades que
um professor de matemática se deve esforçar por desenvolver
nos seus alunos. ([9])
Os alunos não precisam, em geral,
de ser investigadores, mas precisam de ter espírito de investigação.
Intuição, experiência, lógica indutiva, lógica
dedutiva - todos estes meios se alternam constantemente na investigação
científica, numa cadeia sem fim em que é difícil destrinçar
uns dos outros.([5], p. 107-111)
Um dos objectivos fundamentais da educação
é, sem dúvida, criar no aluno hábitos e automatismos
úteis, como, por exemplo, os automatismos de leitura, de escrita
e de cálculo. Mas trata-se aí, manifestamente, de meios,
não de fins. ([5], p. 10-11)
E criticava o ensino tradicional:
O que é preciso é não
confundir cultura com erudição e sobretudo com o enciclopedismo
desconexo, imensa manta de retalhos mal cerzidos, que vão desde
as guerras púnicas até ao sistema nervoso da mosca. É
esse, a bem dizer, o tipo de cultura que tende a produzir o ensino tradicional,
baseado num sistema de exames que só permite apreciar memorizações
e automatismos superficiais, mais ou menos próximos do psitacismo.
([12])
-----Reforma do Ensino da
Matemática-----
Sebastião e Silva entendia que
o ensino da Matemática devia reflectir tanto a evolução
da própria Matemática como as necessidades sociais e isso
implicaria também o aparecimento no ensino de novas áreas
da Matemática. Ele próprio afirmava que a sua reforma de
modernização da matemática incluía no ensino
da matemática pela primeira vez em Portugal
os seguintes assuntos de grande importância
(...): lógica matemática, teoria dos conjuntos, álgebra
de Boole com aplicações a computadores, teoria das relações
(e respectivos grafos), programação linear, estruturas de
semi-grupo, anel e corpo, uso da régua de cálculo em associação
com o cálculo logarítmico, cálculo de valores aproximados
como base para uma introdução ao cálculo diferencial
e integral aplicado a problemas concretos e com a referência à
sua resolução por meio de computadores, elementos de cálculo
das probabilidades e de estatística matemática, cálculo
vectorial, espaços vectoriais e transformações geométricas
baseadas no cálculo vectorial [6].
Mas não esquecia o papel fundamental
dos métodos de ensino:
A modernização do ensino
da Matemática terá de ser feita não só quanto
a programas, mas também quanto a métodos de ensino. O professor
deve abandonar, tanto quanto possível, o método expositivo
tradicional, em que o papel dos alunos é quase cem por cento passivo,
e procurar, pelo contrário, seguir o método activo, estabelecendo
diálogo com os alunos e estimulando a imaginação destes,
de modo a conduzi-los, sempre que possível, à redescoberta.
([12])
Ensinar matemática sem mostrar
a origem e a finalidade dos conceitos é como falar de cores a um
daltónico: é construir no vazio. Especulações
matemáticas que, pelo menos de início, não estejam
solidamente ancoradas em intuições, resultam inoperantes,
não falam ao espírito, não o iluminam.([12])
Um ensino das ciências, que não
seja acompanhado de uma boa educação estética e que
não fale à imaginação dos alunos, está
condenado a priori, pela sua própria aridez, a afastar muitos dos
melhores talentos.([12], p. 46, [5], p. 125)
O professor não deve forçar
a conclusão: deve deixá-la formar-se espontaneamente no espírito
do aluno. ([12], p. 70)
(...) dar ao ensino uma orientação
de tal modo natural, que o aluno seja levado a aceitar os factos intuitivamente,
e com uma força de convicção semelhante à que
nos vem da demonstração rigorosa desses factos. ([7])
Evidenciava claramente o que considerava
mais importante:
Se não houver tempo - o que
é bem provável - podem-se omitir as demonstrações.
O que importa, por enquanto, são as intuições: essas
de modo nenhum devem faltar, (...) ([5], p. 81)
Isto sem deixar de referir as demonstrações
na altura própria:
(...) o ensino de qualquer assunto
deve (...) começar pela fase intuitiva. Mas a fase racional, que
se lhe segue, é igualmente indispensável. Especialmente em
matemática, nenhum resultado pode merecer inteira confiança,
enquanto não for sancionado pela razão, isto é, demonstrado
logicamente. Por isso, se é muito importante estimular no aluno
a intuição e a imaginação criadora, não
menos importante é desenvolver nele o espírito crítico,
o hábito da análise lógica e do raciocínio
rigoroso. ([5], p. 175)
Não deixava também de criticar
os métodos tradicionais:
É preciso combater o excesso
de exercícios que, como um cancro, acaba por destruir o que pode
haver de nobre e vital no ensino. É preciso evitar certos exercícios
artificiosos ou complicados, especialmente em assuntos simples.(...) É
mais importante reflectir sobre o mesmo exercício que tenha interesse,
do que resolver vários exercícios diferentes, que não
tenham interesse nenhum.(...) Entre os exercícios que podem
ter mais interesse figuram aqueles que se aplicam a situações
reais, concretas. ([5])
E observava que o formalismo em exagero
pode ser um perigo:
Chegou-se a fazer crescer os rapazes
numa planície matemática esterilizada e esterilizadora, capaz
de sufocar qualquer objecção, qualquer diálogo. Porque
se quisermos que o ensino da matemática seja autenticamente vivo
e fecundo, deveremos apresentar uma ciência que se faz e não
uma ciência já feita. A matemática não deve
desprezar o concreto, a matemática deve estar ligada à realidade
física em que o pensamento matemático mergulha as suas raízes.
E é sobretudo a geometria que serve de modo natural para a ligação
entre o mundo físico e a abstracção (carta a Emma
Castelnuovo, cit. em [1])
Sebastião e Silva preconizava a
introdução da Estatística desde muito cedo, mas avisava:
Tal introdução pressupõe,
evidentemente, um aumento do número de tempos lectivos de matemática,
no 1º e no 2º ciclos, elevando-o, se possível, até
seis horas por semana, à semelhança do que se verifica em
vários países estrangeiros. ([5], p. 93)
Sebastião e Silva achava ainda
fundamentais as discussões de professores e alunos sobre assuntos
da própria natureza da Matemática, que mais propriamente
se podem classificar na Filosofia da Matemática:
É este um momento oportuno
para um diálogo importante, relativo à existência de
entes geométricos no mundo físico. O diálogo poderá
fazer-se noutra ocasião, mais cedo ou mais tarde, com diversas variantes,
ao sabor das circunstâncias. Mas é necessário que o
assunto seja debatido alguma vez com os alunos (...) ([12], p. 46, [5],
p. 125)
---O Ensino da Matemática
e as Aplicações---
Um aspecto em que Sebastião
e Silva insistia muito era a ligação da matemática
com outras áreas científicas. Nos "Compêndios de Álgebra"
chamava a atenção para a importância deste aspecto,
apontando como especialmente recomendados os exercícios de "aplicação
à Geometria, à Física e à Técnica".
E, por exemplo, no "Guia para a utilização do compêndio
de Matemática"([12], p. 71-76) incluiu uma secção
com problemas elementares de programação linear. E afirmava:
O professor de matemática
deve ser, primeiro que tudo, um professor de matematização,
isto é, deve habituar o aluno a reduzir situações
concretas a modelos matemáticos e, vice-versa, aplicar os esquemas
lógicos da matemática a problemas concretos. ([5], p. 9)
Um ensino da matemática que
atenda exclusivamente ao aspecto demonstrativo, desprezando as intuições,
o método heurístico e as aplicações concretas,
pode tornar-se altamente deformativo, em vez de formativo que pretende
ser. ([5], p. 111)
Resolução e discussão
de problemas concretos por meio de equações: Este assunto,
como, dum modo geral tudo o que se refere a aplicações concretas
da matemática é da máxima importância, quer
formativa, quer informativa. É principalmente a propósito
de problemas concretos - e não em abstracto - que interessa fazer
a discussão de equações ou sistemas de equações.([10],
p. 135-136)
A propósito do crescimento exponencial
e do crescimento logarítmico:
O exemplo histórico do tabuleiro
de xadrez deveria ser familiar a todos os alunos que passam pelo ensino
secundário. ([5], p. 67)
Muitos exemplos concretos aparecem nos
compêndios de Sebastião e Silva. Por exemplo no capítulo
de Cálculo Integral, ao contrário das diversas tentativas
feitas nos últimos anos nos programas do Ensino Secundário:
Mas é na motivação
concreto-intuitiva do conceito de integral e na sua definição
que se deve pôr o máximo de empenho, procurando fazer sentir
ao aluno a beleza e o interesse empolgante do assunto. ([5], p. 81)
-Os Computadores no Ensino
da Matemática-
Num altura em que computadores e máquinas
de calcular eram objectos pesados e muito pouco práticos, Sebastião
e Silva tinha já uma ideia do papel fundamental que deveriam desempenhar
no ensino da Matemática:
Na verdade o uso dos computadores
tem vindo a acentuar a importância do método experimental
na investigação matemática, permitindo aperfeiçoar
processos ou mesmo abrir caminhos inteiramente novos.([5], p. 86)
(...) logo na primeira aula se deve
[pôr] o aluno em contacto com o conceito de aproximação.
(...) a ideia dos métodos de aproximação, que domina
toda a análise numérica moderna, ligada ao uso de computadores.
([5], p. 49,56)
(...) se alguém lhes perguntar
como se calculam todas as raízes de uma dada equação
algébrica, de grau arbitrário, com a aproximação
que se queira, terão de reconhecer que não sabem. Isto dá
bem nota de como o ensino tradicional tem sido afastado da realidade. ([5],
p. 70)
Os processos de recorrência (baseados
no princípio da indução matemática (....))
constituem um dos muitos assuntos da matemática que têm sido
postos na ordem do dia pelos computadores. ([5], p. 58)
Nos diversos livros de texto encontramos
abundantes referências ao papel dos computadores. Por exemplo, aparece
uma referência ao cálculo das casas decimais de 1 usando "a
potentíssima máquina electrónica de calcular ENIAC"
([8], p. 68), várias referências ao cálculo aproximado
de soluções de equações:
Este problema, como todos os que,
neste volume, exigem cálculo automático, foi resolvido na
Divisão de Mecânica Aplicada do L.N.E.C.([11], p. 123-128)
Encontramos várias referências
ao cálculo numérico de integrais, e à comparação
de diferentes métodos de aproximação. E quando ainda
não se falava nem se sonhava com a Internet:
O certo é que se começa
desde já a desenhar entre nós a necessidade de um grande
CENTRO NACIONAL DE CÁLCULO, munido de um computador de alta potência.
Este não eliminaria a necessidade de computadores de pequena ou
média potência, que poderiam ficar ligados telefonicamente
ao primeiro, a fim de transferirem para este a resolução
de problemas que não tivessem capacidade para resolver. ([11], p.
241)
Sebastião e Silva chamava a atenção
que o papel dos computadores iria ter implicações muito profundas
no ensino da matemática; não se trataria apenas de uma mudança
de conteúdos, mas também, mais uma vez, de métodos
de ensino:
Haveria muitíssimo a lucrar
em que o ensino destes assuntos fosse normalmente orientado a partir de
centros de interesse como o anterior - e tanto quanto possível laboratorial,
isto é, baseada no uso de computadores, existentes nas próprias
escolas ou fora destas, em laboratórios de cálculo. ([5],
p. 89)
---O Formalismo e o Ensino
da Matemática---
Em inúmeras ocasiões
defendeu a necessidade de se dar a devida importância à lógica
matemática:
A lógica matemática
constitui a forma actual, extremamente evoluída, da lógica
dedutiva (..) O objectivo do presente artigo é mostrar como a lógica
moderna ajuda a esclarecer os conceitos de ciência e de técnica
e a abordar os problemas do progresso científico e técnico
na vida do homem contemporâneo [4].
A lógica matemática é
um meio poderoso para habituar o aluno à clareza e ao rigor, [mas
sem] esquecer que, na investigação matemática, a intuição
precede normalmente a lógica, [e que] a ordem lógica dos
assuntos não é muitas vezes a mais aconselhável do
ponto de vista didáctico ([12])
É inteiramente justificável
a orientação intuitivo-racional, que se imprime ao
ensino da geometria, nesta fase de iniciação (...) o que
não podemos aceitar, é que muitas vezes se apresente como
demonstração, o que não é demonstração,
e como definição... o que nada define.([13], p. 4)
Mas também alertava para os perigos
do seu abuso.
Só um ensino tal como o preconizava
Courant, fiel às ideias geniais de Hilbert, e não decerto
a manipulação de fórmulas nem a abstracção,
igualmente mecanizante, de algumas orientações didácticas
actuais tendentes a isolar completamente a matemática da realidade,
pode fazer compreender o que seja a matemática.(carta a E. Castelnuovo,
in [1])
Quando hoje me acontece - o que não
é raro - ver alguns jovens portugueses caídos em êxtase
perante a obra desse admirável autor policéfalo que se chama
Nicolas Bourbaki (a quem devo aliás grande parte da minha formação),
apetece-me logo espicaçá-los, dizendo-lhes que estão
em perigo mortal de fanatização. (...) Devo a António
Monteiro o ter-me ensinado a descobrir os méritos reais da criança.
Mas foi Bento Caraça quem me ajudou a prever os possíveis
inconvenientes do estruturalismo de Bourbaki, bem como a maneira de os
combater. O seu ponto de vista neste caso, resume-se em poucas palavras:
´A intuição, que se adquire e afina no contacto
com os problemas reais, é cruel para quem a despreza: o seu castigo
é a esterilidadeª ([9])
Penso que actualmente Sebastião
e Silva observaria que o ensino da lógica matemática talvez
não devesse ser feito tão cedo como preconizava na altura.
A prática tem mostrado como é difícil a compreensão
dos seus aspectos mais abstractos por alunos mais jovens. Mas ele várias
vezes deu uma grande importância às lições colhidas
da experiência. A propósito dos programas do Ciclo Preparatório
afirmou:
Nessa programação foram
suprimidos ou simplificados, de comum acordo comigo, alguns assuntos do
programa, por se reconhecer que eram ou pouco acessíveis ou didacticamente
contra-indicados, fazendo perder tempo inutilmente (como por exemplo o
conceito de número natural a partir do de correspondência
biunívoca).[6]
Apresentava os seus pontos de vista teóricos,
mas dava uma grande importância às lições da
experiência.
----O Ensino e a História
da Matemática----
Sebastião e Silva atribuía
uma grande importância à história da matemática
na formação dos alunos. Defendia que se devia fazer a
(...) inserção das
matérias no quadro de uma cultura geral, que tempere e humanize
o abstractismo inerente à matemática, procurando explicá-la
como processo histórico (...) (Prefácio de [8])
A leitura deste número [parágrafo
sobre grandezas comensuráveis e grandezas incomensuráveis]
tem especial interesse para a cultura geral do aluno. O assunto aqui tratado
liga-se directamente ao da NOTA HISTÓRICA, cuja leitura é
igualmente recomendável por idênticas razões ([8],
p. 67)
Muitos exemplos aparecem nos seus livros:
o "Compêndio de Álgebra" está cheio de Notas Históricas,
o seu livro de "Geometria Analítica Plana" começa com duas
Notas Históricas, a introdução do conjunto dos números
complexos no "Compêndio de Matemática" segue a evolução
histórica com a discussão da Fórmula de Tartaglia
para as equações do 3º grau e a referência à
necessidade das "quantidades silvestres" de Bombelli para que a fórmula
de Tartaglia forneça todas as raízes reais. Nas notas históricas
do "Compêndio de Álgebra" encontramos referências históricas
muito diversas e abrangendo uma grande variedade de épocas, desde
o matemático português Pedro Nunes às "modernas" calculadoras
electrónicas (incluindo uma tabela sobre a capacidade de cálculo
e uma foto de uma "calculadora electrónica" que ocupava uma sala
inteira do "Instituto per le Applicazione del Calcolo" de Roma).
----Trigonometria----
O ensino da Trigonometria e das Funções
Trigonométricas tem sido um dos pesadelos de muitas gerações
de alunos. Como deve ser estudada a trigonometria no Ensino Secundário?
A introdução à
trigonometria poderá e deverá ser feita com
motivação concreta, apta a despertar interesse suficiente
no espírito do aluno (cf. Algebra e Trigonometria, para os
IV, V e VI anos liceais, Francisco Dias Agudo (1938). A introdução
à trigonometria adoptada nesse livro é em parte semelhante
à que aqui vamos preconizar, mas, que, como é de ver, não
se coaduna com a orientação estatuída pelo actual
programa clássico) ([5], p. 15)
E dava muito exemplos de como despertar
o interesse dos alunos:
(Entre as célebres obras de
ficção científica de Júlio Verne há
uma, particularmente interessante, que vem muito a propósito citar
aqui: "A ILHA MISTERIOSA". Nesta obra, o autor descreve como um dos personagens
- o Eng. Smith - consegue calcular a altura a que se encontra uma gruta
escavada numa rocha junto ao mar por meio de medições efectuadas
na praia). ([5], p. 18)
É preciso memorizar várias
dezenas de fórmulas trigonométricas? Deve usar-se antes o
computador?
Resta o problema das tábuas.
Existem tabelas de fórmulas (chamadas ëformuláriosí), como
existem tabelas numéricas, listas telefónicas, catálogos
ou enciclopédias. A finalidade é sempre a mesma: evitar um
esforço inútil e mesmo incomportável de memória,
dando maior grau de liberdade ao pensamento. Sem dúvida há
fórmulas e tabelas numéricas que o aluno deverá ter
sempre presentes, atendendo à frequência com que é
preciso utilizá-las: por exemplo, as fórmulas trigonométricas
da adição de ângulos e as tabuadas das operações
elementares da aritmética. É tudo, afinal, uma questão
de medida e de bom senso. ([5], p. 12)
Chegou agora o momento de dizer ao
aluno que se encontram já construídas por tais processos
tabelas numéricas, que fornecem, com certa aproximação
(...) as tangentes dos ângulos agudos (...). E convirá resolver
alguns problemas simples com tais tabelas (...) escolhendo o grau de aproximação
conveniente em cada caso concreto (...) Convirá, agora, informar
o aluno de que a sua régua de cálculo lhe permite resolver
rapidamente muitos destes problemas, com aproximação suficiente,
e adestrá-los no uso da régua para esse fim.. ([5],
p. 22)
Os cálculos exigidos por este
processo [valores aproximados por defeito e por excesso de sen 63û]
são laboriosos, mas, quando se dispõe de um bom computador,
podem ser efectuados rapidamente. No entanto, mesmo quando se trabalhe
com um bom computador, procura-se sempre, entre vários métodos
de aproximação, aquele que seja mais expedito e mais
fácil de programar (...) ([5], p. 46)
Tanto na Trigonometria como noutros capítulos,
deve existir alguma razão forte para se seleccionar o que se ensina:
Todo o conceito é introduzido
com uma determinada finalidade: quanto menos o conceito surgir ligado
à sua finalidade, menos interesse poderá despertar. Qual
é, por exemplo, o interesse das funções circulares
inversas? ([5] p. 47)
---As Influências---
Quais foram os matemáticos que
mais influenciaram o pensamento de José Sebastião e Silva.
Ele próprio declara que:
Existiu em Itália, na primeira
metade deste século uma plêiade brilhantíssima de matemáticos
humanistas, cujos nomes pertencem hoje à história da ciência:
Volterra, Levi-Civita, Enriques, Castelnuovo e Severi. Conheci de perto
os três últimos. (...) Este matemático [Enriques],
como não tivesse então nada que fazer, tinha a paciência
de me aturar em sua casa, em conversas que duravam tardes inteiras. E coisa
curiosa, enquanto ele falava, discutindo comigo, eu tinha às vezes
a impressão de estar a ouvir Bento Caraça: era afinal o espírito
de uma época, o que eu ouvia então.([9])
A influência dos matemáticos
italianos referidos é clara. Eis algumas citações
retiradas do obra "Didáctica de la matemática moderna" de
Emma Castelnuovo:
Se a matemática é frequentemente
considerada como carga inútil pelos alunos, isto depende em parte
do carácter demasiado formal que tende a tomar um tal ensino, por
um falso conceito rigoroso encaminhado a satisfazer a minuciosa exigência
de palavras, de uma crítica analítica e fora de lugar, da
qual somente bastaria reter o resultado sintético que põe
na experiência a base da geometria. Mas esta tendência reduz-se
a uma causa mais geral; isto é, ao facto de a matemática
ter sido estudada como um organismo em si, considerando-a como sistematização
abstracta, obtida depois de um desenvolvimento secular, e não da
íntima razão histórica. Esquecem-se de tal modo os
problemas concretos que conferem interesse às teorias, e sob a fórmula
do raciocínio não se vêm mais senão os factos
adquiridos desde há tempos, assim como o encadeamento sobre o qual
nós artificialmente os ajustámos.(Enriques, 1906)
Este é o equívoco primitivo
do espírito doutrinário que invade a nossa escola. Ensinamo-los
a desconfiar da aproximação, que é real, para adorar
o ídolo duma perfeição que é ilusória.(Guido
Castelnuovo, 1912)
Já atrás vimos como Sebastião
e Silva mencionou António Monteiro e Bento Caraça como suas
influências directas. Mas se Bento Caraça se empenhou na luta
política directa, Sebastião e Silva não tomou uma
atitude menos empenhada relativamente à sociedade, ao batalhar continuamente
em prol da melhoria do ensino da matemática. E as influências
são mais uma vez fácies de descobrir:
Perguntamo-nos algumas vezes se o
tempo que dedicamos às questões do ensino da matemática,
não seriam melhor empregues na investigação científica.
Ora bem, reconheçamos que é um dever social o que nos obriga
a tratar destes problemas. Não basta com efeito, produzir a riqueza;
é necessário procurar também que a sua distribuição
chegue sem atrasos nem dispersões. E não é a ciência
uma riqueza, a mais preciosa das riquezas, aquela que forma o nosso orgulho
e é a fonte das alegrias mais puras? Não devemos facilitar
pois aos nossos semelhantes a aquisição do saber que é,
ao mesmo tempo, poder e felicidade? (Guido Castelnuovo, 1914)
---Matemática/Física---
Um aspecto que Sebastião e Silva
não deixou passar em claro foi o da relação entre
o Ensino da Matemática e da Física no Ensino Secundário,
sem esquecer o problema básico da formação de professores:
Ao nível do Ensino Secundário,
também (...) se interessou pelo sector da Física, nomeadamente
no que toca à interdependência do respectivo ensino com o
paralelo ensino da disciplina de Matemática. (...) sugeriu [em 1971]
que um dos semestres da disciplina (...) Opção Metodológica
fosse consagrado ao tema "Estudo da coordenação dos Ensinos
da Matemática e da Física nos Liceus" (...) Sempre reputou
a Física motivação insubstituível do ensino
e do progresso da Matemática. (...) Sebastião e Silva sempre
se bateu pela inclusão nos planos de estudos das licenciaturas em
Matemática de uma disciplina de História do Pensamento
Matemático. E também de disciplinas de Física
(...)([3], p. 45)
---Pedagogia no Ensino Superior---
Sebastião e Silva tomou parte
activa em várias propostas para a reformulação da
Licenciatura em Matemática. Mas não elaborava simples listas
de disciplinas e conteúdos. Discutia os aspectos pedagógicos
e também os problemas da avaliação. Numa dessas propostas
encontramos:
No biénio geral o ensino deve
ser feito mais em extensão do que em profundidade, o que não
significa, de modo nenhum, que se ponham de parte preocupações
de rigor lógico. Aliás, a ideia de tratar exaustivamente
algum assunto do programa seria mesmo impraticável. O ensino deve
ser doseado e conduzido pedagogicamente e de modo que o aluno médio
tenha tempo e possibilidade de assimilar, efectivamente, as noções
fundamentais da análise infinitesimal, indicadas neste programa.
E haverá sempre que atender às tendências actuais da
matemática, bem como às múltiplas finalidades desta.
Por exemplo, no estudo elementar das equações diferenciais,
terá muito maior importância insistir no aspecto dos problemas
com dados iniciais e com dados nos limites, do que em receitas de quase
nulo interesse formativo e informativo, para a integração,
por quadraturas, de vários tipos de equações.
Segundo o testemunho de António
Andrade Guimarães:
(...) tomou a iniciativa, em sessão
do Conselho Escolar da sua Faculdade, de propor uma moção
formulando o voto de que aos assistentes dessa Escola fosse dada preparação
pedagógica além da científica (...)([3],p. 66)
A conversa derivou para assuntos de
pedagogia universitária. E então, mesmo a respirar artificialmente,
a paixão de sempre pela pedagogia fê-lo vibrar uma vez mais:
falando com dificuldade, reafirmou com energia as sua preocupações
pelo incerto futuro pedagógico do nosso ensino universitário.([3],
p. 75)
Preocupou-se também com a própria
natureza pedagógica dos livros de texto para o ensino superior:
Se eu tivesse hoje que voltar a escrever
esse Curso [Curso de Análise Superior], fá-lo-ia ainda em
termos de maior simplicidade, multiplicando muito os exemplos e, sobretudo,
intensificando muito mais a motivação dos conceitos.([3],
p. 58)
-Epílogo-
Podemos resumir um pouco as ideias
de Sebastião e Silva, com algumas frases tiradas de uma entrevista
que concedeu ao "Diário de Notícias" em 23-1-1968:
(...) a educação, na
era científica, não pode continuar, de modo nenhum, a ser
feita segundo os moldes do passado. Em todas as escolas o ensino das ciências
tem que ser intensificado e remodelado desde as suas bases, não
só quanto a programas mas ainda quanto a métodos. Uma
vez quer a máquina vem substituir o homem progressivamente em trabalhos
de rotina, não compete à escola produzir homens-máquinas
mas, pelo contrário, formar seres pensantes, dotados de imaginação
criadora e de capacidade de adaptação em grau cada vez mais
elevado.
O que se pretende acima de tudo é
levar o aluno a compreender o porquê dos processos matemáticos,
em vez de lhe paralisar o espírito, automatizando-o desde logo.
(...) No ensino tradicional o aluno é tratado, precisamente, como
se fosse uma máquina, enquanto no ensino moderno se procura, por
todos os meios, levá-lo a reflectir e a reencontrar por si as ideias
fundamentais que estão na base da Matemática.
Não foi nem será certamente
o único com preocupações deste teor. Já Anastácio
da Cunha teve algumas experiências desagradáveis ao tentar
inovações pedagógicas (ver [2], p. 386-387). Compete
a todos os que se identificam com estas asserções manter
estas ideias vivas. Para isso, muito ajudará a divulgação
da obra de José Sebastião e Silva e a reflexão sobre
as suas ideias.
Agradecimentos
Quero aqui agradecer ao Prof. António Guimarães
(recentemente falecido) à Profª Dirce Guimarães e ao
Prof. Campos Ferreira terem-me facultado cópia de alguns documentos
inéditos do Prof. Sebastião e Silva.
Bibliografia
1. Castelnuovo, E., A obra didáctica de
José Sebastião e Silva. 1982, SPM:
2. Ferraz, M.L., J.F. Rodrigues, e L. Saraiva, Anastácio
da Cunha - 1744/1787 - o matemático e o poeta. 1990, Lisboa:
INCM.
3. Guimarães, A.A., Vida e obra do Prof.
Sebastião e Silva. 1972, Porto: não publicado.
4. Silva, J.S., Ciência, Técnica
e Humanismo. s/d, (manuscrito):
5. Silva, J.S., Guia para a utilização
do Compêndio de Matemática (2º e 3º vol). 1965-66,
Lisboa: Min.Educação/OCDE.
6. Silva, J.S., Parecer sobre um projecto de programa
de Matemática do futuro 1º ano do Ensino Secundário.
s/d, (manuscrito):
7. Silva, J.S., A teoria dos logaritmos no ensino
liceal. Gazeta de Matemática, 1942. III(12): p. 10-13.
8. Silva, J.S. e J.D.S. Paulo, Compêndio
de Álgebra. 2 ed. Vol. 1. 1970, Braga: Livraria Cruz.
9. Silva, J.S.e., Bento de Jesus Caraça,
in DL. 25/6/1968,
10. Silva, J.S.e., Compêndio de Matemática,
1º vol-2º tomo. 1964, Lisboa: Min.Educação/OCDE.
11. Silva, J.S.e., Compêndio de Matemática,
2º vol. 1965-66, Lisboa: Min.Educação/OCDE.
12. Silva, J.S.e., Guia para a utilização
do Compêndio de Matemática (1º vol). 1964, Lisboa:
Min.Educação/OCDE.
13. Silva, J.S.e., A lógica matemática
e o ensino médio, in Gazeta de Matemática. 1941,