A MATEMÁTICA VISTA PELAS OUTRAS CIÊNCIAS
Carlos Fiolhais
Centro de Física Computacional da Universidade de Coimbra
Departamento de Física da FCTUC
A RELAÇÃO DA FÍSICA COM A MATEMÁTICA
Há entre a Física e a Matemática uma relação de grande proximidade, pode mesmo dizer-se de grande intimidade. A Física – o conhecimento do mundo material – não se pode fazer sem a Matemática. A linguagem da Física é, sem qualquer dúvida, a Matemática. Segundo Galileu Galilei, "a Natureza está escrita em caracteres matemáticos" e, segundo Francis Bacon, o seu contemporâneo que teorizou o método científico, "à medida que a Física avança cada vez mais e desenvolve novos axiomas, ela exige uma ajuda pronta da Matemática". Não há nada que possa iludir ou contrariar a relação íntima entre Física e Matemática: sem Matemática não há Física. Quem não souber Matemática não poderá apreciar verdadeiramente a Física, nem os seus princípios nem as suas conclusões. A maneira mais sucinta, clara e elegante de exprimir as leis físicas – os enunciados que descrevem o comportamento do mundo material – é a Matemática. Mas, além disso e por outro lado, a Matemática é também a maneira de tirar, sem erros, as consequências dessas leis. Conforme afirmou há cerca de cem anos o alemão Wilhelm Roentgen, o primeiro prémio Nobel da Física: "O físico precisa de três coisas para o seu trabalho: Matemática, Matemática e Matemática".
Muitos dos físicos mais importantes ao longo da história foram também matemáticos. Alguns, mais raros, criaram a Matemática de que precisavam para a sua descrição do mundo. Por exemplo, Isaac Newton inventou o cálculo diferencial para descrever o movimento dos corpos, fossem estes maçãs ou luas. Como disse Albert Einstein, uma autoridade sobre a mecânica de Newton a ponto de a ter alterado (sem necessidade de inventar Matemática nova), "a equação diferencial entrou como criada de servir e ficou até se tornar a amante". Não "uma" amante, mas "a" amante... De facto há, mais do que uma promiscuidade ocasional, uma autêntica e permanente concubinagem entre Matemática e Física. Trata-se de comunhão não só de cama como de mesa e roupa lavada.
Se há físicos que foram matemáticos, há, inversamente, muitos matemáticos que gostam de fazer Física. Segundo o matemático alemão David Hilbert, contemporâneo de Einstein, "a Física é demasiado difícil para ser deixada apenas aos físicos..."
O físico de origem húngara Eugene Wigner explicitou a conexão profunda, entre Matemática e o mundo real, declarando em 1960, num artigo que ficou justamente célebre:
"A linguagem da matemática revela-se desrazoavelmente eficaz nas ciências naturais. É um presente misterioso que nem compreendemos nem merecemos. Devemos estar agradecidos por ele e esperamos que continue a ser válido na investigação futura e que até mesmo se estenda, para o melhor e para o pior, para nosso prazer e apesar talvez da nossa admiração, a ramos mais vastos do conhecimento."
Wigner não foi, porém, original. Já Einstein tinha escrito antes dele: "Há um enigma que desde sempre tem perturbado as mentes. Como pode a Matemática, sendo ao fim e ao cabo um produto do pensamento humano independente da experiência, ser tão admiravelmente apropriada aos objectos da realidade?"
Há numerosos exemplos dessa "apropriação": O cálculo diferencial e a mecânica newtoniana, a teoria da relatividade geral e a geometria diferencial, a análise funcional e a mecânica quântica, a teoria dos grupos e as partículas elementares. Porquê? Ninguém tem resposta definitiva para este enigma, mas decorrem hoje tentativas, no domínio da neurobiologia e do funcionamento do cérebro, para entender melhor porque a nossa mente "matematiza" o mundo.
Se a Física não dispensa a Matemática, já é controverso se a Matemática pode ou não dispensar a Física. Poderia a Matemática existir sem a Física? Para o matemático inglês deste século G. H. Hardy, que escreveu nos anos 40 um livro famoso fazendo a apologia da Matemática (não traduzido em português), não só pode como existe. Para muitos matemáticos, o seu trabalho, monótono, contínuo e ilimitado, pode ser feito interiormente, sem olhar à volta para ver o mundo. Haverá um certo prazer solitário nesse trabalho isolado. Mas será difícil negar que a Física acrescenta à Matemática um certo "picante", uma excitação adicional. Ganha-se alguma coisa se se olhar "para fora" e encontrar alguma correspondência com aquilo que se vê "cá dentro". Pode até ganhar-se juízo! A seguinte frase é demolidora de algumas concepções mais puristas da Matemática. Para o físico norte-americano Joshua Willard Gibbs, também contemporâneo de Einstein: "Um matemático pode dizer o que quiser, mas um físico tem de ter alguma sanidade mental."
Decerto que a Física e a Matemática usam metodologias diferentes. Na Física, a intuição vence a dedução de um modo claro. O conhecimento do mundo processa-se por adivinhação baseada no conhecimento anterior. O exercício criativo da imaginação é "domesticado" por esse conhecimento.
O físico Richard Feynman, em "O Que É uma Lei Física" (Gradiva, 1989), faz a apologia da intuição dos físicos contrastando-a com a dedução dos matemáticos:
"Quando sabemos do que estamos a falar, quando sabemos que alguns símbolos representam forças, outros massas, etc., podemos utilizar o senso comum, o sentido intuitivo do mundo. Vimos algumas coisas e sabemos mais ou menos como é que algum fenómeno se vai passar. Todavia, o pobre matemático traduz tudo em equações e, como os símbolos não têm para ele qualquer significado, não dispõe de nenhuma orientação, a não ser o rigor matemático e o cuidado na argumentação. O físico, que sabe mais ou menos qual vai ser a resposta, pode adivinhar uma parte e, assim, progredir mais rapidamente. O rigor matemático não é muito útil em Física."
Em contraste com a Física, a Matemática pode avançar e às vezes avança por dedução, uma vez fixos certos princípios mais ou menos abstractos. Tem uma validação interna. Em contraste com Feynman, G. H. Hardy, um matemático puro ("um verdadeiro matemático", segundo o físico e romancista C. P. Snow no prefácio de "A Mathematical Apology"), dispensa o "sentido intuitivo do mundo". Hardy revela-se radical:
"É bastante comum, por exemplo, que um astrónomo ou um físico pretenda que descobriu uma prova matemática de que o universo físico se tem de comportar de uma determinada maneira. Essas pretensões, se levadas à letra, são um completo disparate, não pode ser possível provar matematicamente que haverá um eclipse amanhã, uma vez que eclipses e outros fenómenos físicos não formam parte do mundo abstracto da Matemática".
Hardy não só diz que a ocorrência de eclipses não se prova matematicamente como acrescenta que nunca se poderá provar. Por outro lado, para um físico cujo trabalho é prever eclipses, estes sempre ocorreram quando as equações os previram. Por que razão haveriam estas de falhar amanhã? Os físicos prevêem os eclipses baseados na Matemática, na qual confiam ilimitadamente. Mas têm uma confiança igualmente ilimitada no seu "sentido intuitivo do mundo" e sabem que o mundo é irremediavelmente matemático.
Diga-se que a posição extrema de Hardy é incompreendida pela maioria dos físicos. Têm, dadas por Hardy, boas razões para isso. Nomeadamente, eles sabem que Hardy se enganou quando, no seu livro, escreveu que a relatividade e a mecânica quântica – as duas traves-mestras da Física deste século – não têm qualquer utilidade. De facto, os modernos sistemas de posicionamento geográfico (GPS) usam correcções relativistas e os lasers e os transístores, hoje correntes por todo o lado, são "produtos" da relatividade e da mecânica quântica...
De facto, os matemáticos também usam, nos seus impulsos criadores, a intuição como os físicos (tal como estes, de resto, usam a dedução). A investigação matemática moderna é, bem pode dizer-se, mais intuição do que dedução. Adivinha-se um resultado antes de o provar (que é uma conjectura senão o exercício da intuição?). Então, que diferença há entre o físico e o matemático, entre o trabalho do físico e o trabalho do matemático? A grande diferença entre os dois tipos de trabalho é o primado que os físicos dão à experiência, enquanto os matemáticos preferem dar o primado aos postulados e à lógica. Cada um tem seguramente o seu lugar.
Há, portanto, uma cultura própria da matemática e uma cultura própria da Física. Uma cultura passa sempre pela sua expressão por uma linguagem. Por exemplo, um matemático tem uma linguagem muito própria, inconfundível. Um físico também. Muitas vezes entender a linguagem é entender tudo. Um matemático a quem peçam para contar a história da carochinha não dirá que o lobo comeu a avó, mas sim que a avó ficou um subconjunto do lobo... Se soubermos teoria dos conjuntos perceberemos logo a história. Um físico teórico, mais próximo do matemático, considerará um lobo e uma avó esféricas para simplificar. Um físico experimental, por seu lado, irá examinar o lobo para saber se a história é verdade.
As duas culturas – a dos físicos e a dos matemáticos – não são duas culturas desavindas, mas são, ao fim e ao cabo, subculturas de uma das culturas de Snow, a cultura científica. São culturas próximas, aparentadas e de modo nenhum inimigas da outra cultura de Snow, a cultura literária (por exemplo, o sentido estético desempenha um papel tanto na investigação física como na investigação matemática). Mas, precisamente por serem as duas partes de uma cultura comum, há espaço para uma maior interculturalidade, para um maior encontro de culturas, pois é nesses interfaces culturais, nesses choques de culturas, que se encontram hoje as fontes mais férteis de criatividade científica.
Dificilmente se compreende, por exemplo, que haja hoje cursos de Matemática sem cadeiras de Física dadas naturalmente por físicos, cursos de Matemática que se confinam às paredes do departamento que os albergam (assim como seria incompreensível um curso de Física sem cadeiras de Matemática dadas por matemáticos). Não se entende que um matemático formado hoje e aqui não conheça as equações de Maxwell, as equações da relatividade restrita de Einstein ou as equações da mecânica quântica de Schroedinger e de Dirac... Tais exemplos revelam tanto falta de cultura matemática como falta de cultura física. Revelam falta de cultura científica.
Dificilmente se compreende também que haja entre nós tão poucas unidades de investigação onde coexistam físicos e matemáticos. A rígida divisão departamental das nossas universidades não ajuda muito à fecundidade de alguns esforços de cooperação que estão em curso. Dificulta o empreendimento de novos esforços de cooperação. Muito há a fazer, em Portugal, para o encontro das ciências físicas e matemáticas.
Foi no convívio fecundo da cultura dos físicos e a da cultura dos matemáticos que as ciências básicas, que são a pedra angular de todas as ciências naturais e de todas as ciências de engenharia, têm sido cultivadas e será nesse convívio que elas, com evidentes benefícios mútuos, têm de ser continuadas e alargadas. Oxalá que o Ano Mundial da Matemática, que agora se comemora, ajude nesse propósito.