Finalidades do ensino da Matemática[1]

 

 

O ensino da Matemática pode ser justificado com base em muitas e excelentes razões. Pode-se argumentar que esta disciplina é necessária à vida quotidiana e essencial em muitas actividades profissionais. Pode justificar-se dizendo que a Matemática faz parte do património cultural da sociedade, sendo nossa obrigação transmiti-la às novas gerações. Pode defender-se que ela “ensina a pensar”, tornando-nos mais aptos, por exemplo, para pensar de forma abstracta e para fazer raciocínios dedutivos. Pode ainda salientar-se o facto de ela ajudar a desenvolver valores estéticos, nomeadamente a noção do belo. Além de tudo disso, pode dizer-se que trabalhar em Matemática constitui, em determinadas circunstâncias, um verdadeiro prazer.

A verdade é que as finalidades do ensino da Matemática de qualquer nível de ensino envolvem diversas dimensões, entre as quais se destacam aspectos culturais, sociais, formativos e políticos. A valorização que se dá a cada uma deles tem consequências profundas na elaboração do currículo, no processo de aprendizagem e no papel social desempenhado, em última análise, por esta disciplina.

 

1 - Dimensão cultural

 

Em tempos idos, a Matemática surge caracterizada como a ciência do número e da forma. Depois, é encarada como a ciência das estruturas. Actualmente, é vista por muitos como a ciência dos padrões e das regularidades. A sua evolução é permanente.

Para os egípcios e os babilónicos, a Matemática tem uma feição sobretudo utilitária, tal como hoje em dia acontece para muitos grupos sociais como os artesãos, os pescadores e os vendedores ambulantes. Para os gregos ela assume o papel de um jogo intelectual, apresentando-se como o grande paradigma de uma argumentação bem conduzida. Para os matemáticos europeus dos séculos XVIII e XIX, ela constitui uma linguagem indispensável para descrever o mundo físico e os fenómenos naturais. Mais recentemente, com as geometrias abstractas e os números transfinitos, começa-se a compreender que a Matemática também lida com conceitos criados pelo próprio homem, muitas vezes sem significado físico aparente.

A Matemática está sempre ligada aos grandes problemas da ciência e da técnica de cada época, que estimulam o desenvolvimento de novos conceitos e novas teorias. Isso verificou-se mesmo durante o período de mais intenso predomínio da escola formalista. Na verdade, o próprio David Hilbert, a grande figura desta escola, dedicou-se a diversos ramos da Matemática com aplicação a problemas físicos, como a teoria dos operadores e a teoria das equações às derivadas parciais.

O conhecimento matemático tem, assim, um carácter histórico e contingente, como qualquer outro domínio do conhecimento humano. O seu corpo de práticas e de realizações conceptuais está sempre ligado a contextos sociais e históricos concretos, sublinhando a importância da sua dimensão cultural. A Matemática apresentada como uma teoria axiomática e dedutiva sem história e sem qualquer relação com a realidade, não é mais do que uma opção cultural, entre outras formas tanto ou mais legítimas de encarar esta ciência.

 

A história e a cultura no ensino da Matemática

 

Por causa das preocupações da sociedade com os papéis práticos e sociais da Matemática, as escolas raramente dão ênfase aos seus aspectos históricos e culturais. Como todas as disciplinas, a Matemática é desumanizada quando é divorciada das suas contribuições culturais e da sua história. Na medida em que estes aspectos não são discutidos, os alunos tendem a ficar com a impressão que a Matemática é estática e ultrapassada. Embora seja comum as crianças em idade escolar estarem familiarizadas com conceitos modernos nas ciências tais como o DNA e a energia atómica, raramente elas chegam a contactar com aspectos da Matemática (tais como estatística ou topologia) descobertos há menos de um século. As crianças nunca aprendem que a Matemática é uma disciplina dinâmica e em crescimento e apenas raramente vêem a beleza e fascínio da Matemática. O currículo de Matemática não pode continuar a ignorar o século XX.

 

MSEB, 1990

Reshaping school mathematics

 

O ensino da Matemática pode valorizar uma abordagem mais ou menos formalista, mais ou menos geométrica, mais ou menos rica em aplicações e em referências históricas e mais ou menos próxima das práticas matemáticas informais em curso na sociedade. Por isso, no que respeita às dimensões culturais, qualquer currículo envolve sempre diversas grandes opções no modo como valoriza (ou não) a perspectiva histórica e as aplicações desta ciência, levando os alunos a compreender o seu papel na sociedade, e como relaciona (ou não) a abordagem própria de cada país (e de cada comunidade) com a Matemática universalizada em permanente desenvolvimento pela comunidade de investigação.

 

2 - Dimensão social

 

O conhecimento matemático forma-se socialmente, através de relações de interacção e comunicação entre as pessoas e é exteriorizado publicamente (pelo menos em grande parte). A Matemática é a linguagem essencial do desenvolvimento científico e tecnológico mas, hoje em dia, surge em todas as esferas de actividade da sociedade, constituindo o que alguns autores chamam uma “cultura invisível”.

 

Base social do conhecimento matemático

A Matemática permite comunicar, interpretar, prever e conjecturar. Dota a informação de objectividade e transforma-a em conhecimento fundamentado. A sociologia do conhecimento estabelece que as representações matemáticas, como de resto todas as representações científicas, são construções sociais. A perspectiva da construção social radica o conhecimento, a cognição e as representações nos campos sociais da sua produção, distribuição e utilização. O conhecimento científico é inerentemente social devido ao facto que a ciência está socialmente orientada e os objectivos da ciência estão sustentados socialmente (...) O conhecimento matemático, como todas as formas de conhecimento, representa as experiências materiais das pessoas que interactuam em contextos particulares, em certas culturas e períodos históricos. Tendo em conta esta dimensão social, o sistema educativo — e em particular o sistema escolar — estabelece uma variedade de interacções com a comunidade matemática, já que se ocupa que as novas gerações sejam introduzidas aos recursos matemáticos utilizados socialmente e na rede de significados (ou visão do mundo) em que se encontram situados; isto é, organiza um modo de prática matemática.

Luis Rico, 1996

Reflexión sobre los fines de la educación matemática

As finalidades de natureza social atribuídas ao ensino da Matemática incluem a qualificação profissional de mão de obra indispensável para atender às necessidades do mercado de trabalho, bem como às necessidades de funcionamento da sociedade actual. Outra finalidade importante de natureza social é proporcionar ao cidadão comum as ferramentas matemáticas básicas para o seu desempenho social, âmbito em que podemos distinguir três domínios essenciais de qualificação: o vocacional, o prático e o cívico.

A vertente vocacional visa ajudar os alunos a preparar-se para uma variedade de carreiras profissionais e científicas. É ela que proporciona a formação de especialistas competentes que usam ferramentas matemáticas, muitas vezes sofisticadas, produzindo conhecimento organizado, e que têm muitas vezes práticas profissionais distintas dos matemáticos. Esta vertente é concretizada através de cursos especificamente orientados para as diversas profissões, tanto no ensino secundário como no ensino superior.

A vertente prática visa ajudar os alunos a tornarem-se pessoas competentes na resolução de muitos problemas do dia-a-dia. Envolve não só um bom domínio da aritmética básica e da geometria, mas também a capacidade de analisar dados e situações complexas e de lidar com problemas da vida real.

Finalmente, a vertente cívica visa tornar os alunos cidadãos capazes de participar com sentido crítico numa sociedade cada vez mais matematizada. Ela inclui o conhecimento matemático necessário para que cada indivíduo possa desenvolver-se na sociedade, para comunicar e receber informação em geral, interpretar esta informação e tomar decisões correctas com base na sua interpretação.

Em muitas ocasiões, as finalidades sociais da educação matemática são condicionadas pelos aspectos de ordem vocacional, relegando para segundo plano os aspectos prático e cívico. A vertente mais utilitária do conhecimento matemático tende a ser sobrevalorizada por muitos grupos profissionais, que por vezes constituem lobbies poderosos. No entanto, muito embora a visão utilitária deva estar contemplada entre as finalidades sociais do ensino da Matemática, ela está longe de ser a única importante.

 

3 - Dimensão formativa

 

Os sistemas educativos, como instituições sociais, devem contemplar a satisfação adequada das necessidades individuais, incluindo o desenvolvimento integral dos indivíduos. Através da educação, pretende-se que todos os jovens desenvolvam uma adequada compreensão da Matemática e do modo como ela pode ser usada nos mais diversos contextos. Isto implica a aquisição tanto de conhecimentos e destrezas como também — o que é extremamente importante — o desenvolvimento de diversas capacidades, atitudes e valores.

O ensino da Matemática começou por ter uma função meramente instrutiva, em que se privilegiava a memorização de factos e a exercitação de procedimentos e técnicas de cálculo. Viria depois a assumir uma função formativa mais ampla, considerando o conhecimento matemático estreitamente ligado ao mundo da cultura e aos interesses, preferências e inclinações dos indivíduos. Deste modo, passou a haver uma forte preocupação em fomentar a criatividade, a intuição e o pensamento divergente dos alunos e em promover valores e atitudes positivas em relação à Matemática.

Os valores formativos desta disciplina envolvem aspectos cognitivos, metacogniti-vos e afectivos. Incluem as capacidades de raciocinar matematicamente, relacionar conceitos, usar definições, fazer demonstrações e resolver problemas, mas também construir e aperfeiçoar modelos matemáticos e discutir a aplicação desta ciência a situações de outras ciências ou da vida quotidiana. Incluem, igualmente, a capacidade de comunicar e interpretar ideias matemáticas expressas oralmente e por escrito. Incluem ainda o desenvolvimento no aluno do seu próprio autocontrolo e autoconceito como pessoa capaz de usar com desembaraço as ferramentas e ideias matemáticas, estabelecendo uma relação positiva com esta disciplina.

Considerando a Matemática como elemento dinâmico da cultura da nossa sociedade, deixamos de a conceber como objecto já construído que é preciso apreender e passamos a considerá-la como uma forma de pensamento aberto, cujo domínio deve ser desenvolvido em todos os alunos, respeitando a sua autonomia e o seu ritmo próprio de aprendizagem.

 

 

 

 

 

 

 

Desenvolver o poder matemático dos alunos

 

O poder matemático... refere-se às capacidades de um indivíduo para explorar, conjecturar e raciocinar logicamente, bem como à sua aptidão para usar uma variedade de métodos matemáticos para resolver problemas não rotineiros. Esta noção é baseada no reconhecimento que a Matemática é muito mais do que uma colecção de conceitos e capacidades a adquirir; ela inclui métodos de investigação e de raciocínio, meios de comunicação e noções de contexto. Além disso, para cada indivíduo, o poder matemático inclui o desenvolvimento da autoconfiança pessoal.

NCTM, 1991

Normas para o currículo e avaliação da matemática escolar

 

4 - Dimensão política

 

A Matemática tem, na sociedade actual, um papel bem visível de selecção. Além disso, tem outros papéis, talvez menos visíveis, de transmissão indirecta de determinados valores e atitudes. O ensino da Matemática, conforme o modo como for conduzido, pode contribuir para a democratização e a promoção de valores sociais de cultura, tolerância e solidariedade ou servir para reforçar mecanismos de competitividade e de selecção social.

O desempenho em Matemática tem constituído um critério decisivo para seleccionar os alunos, especialmente no que se refere ao acesso às profissões de natureza técnica e científica. Aqueles que tiram maus resultados nesta disciplina desencorajam-se de enveredar por uma carreira de engenharia ou um curso de ciências. Implicitamente, a Matemática leva muitos alunos a definirem-se em termos de carreiras profissionais.

De modo mais subtil, o ensino da Matemática corporiza mecanismos de transmissão de valores sociais para a esfera dos comportamentos individuais. Ele contribui para ajustar a conduta humana a determinados modos de racionalidade, dominantes na sociedade. Mas este ensino pode ser orientado para promover a difusão de valores democráticos e de integração social, como a capacidade de cooperação, a actividade crítica e a acção comunicativa. Trata-se, assim, de elementos importantes que devem ser tidos em conta na elaboração do currículo.

Uma escola orientada para a consecução de valores democráticos ao lado dos valores formativos de cunho individual deve dar ênfase ao conhecimento crítico de todo o sistema matemático e das suas relações com a cultura e a sociedade. Esta orientação crítica deve estar presente nas finalidades gerais do currículo da Matemática escolar. Por isso, entre as finalidades do ensino desta disciplina pode-se encontrar explicitamente a promoção de valores éticos e democráticos, que constituem um aspecto essencial da sua dimensão política.

 

Matemática e competência democrática

 

Os elementos da educação matemática que podem contribuir para uma competência democrática incluem um agregado de conhecimento matemático, tecnológico e reflexivo e uma atitude e disposição para agir de modo democrático. A educação matemática, adoptando a formação da competência democrática como um objectivo de longo prazo, apenas pode contribuir para a sua formação, mas as suas contribuições são de significativa importância.

 

C. Keitel, E. Kotzmann e O. Skovosmose, 1993

Beyond the tunnel vision

 

 



[1] Texto do capítulo 3.3 da brochura Didáctica da Matemática de Ponte, J. P., Boavida, A., Graça, M., e Abrantes, P. (1997), Lisboa: DES do ME.