Tentei fotografar a alma misteriosa, verdadeira e mágica da
Espanha popular com paixão, amor, humor, ternura, raiva, dor,
com verdade. Os momentos mais intensos e plenos da vida de personagens
tão simples como irresistíveis, com toda a força
interior, num desafio pessoal, que me deu força e
compreensão e no qual investi todo o meu coração.
Cristina Garcia Rodero
Cortesia: Cristina Garcia Rodero
Produção: Encontros de Fotografia
Que as crianças tenham a morte por espelho, que a festa seja pagã, à força de ritos exarcebados, que os anões tenham um lugar próprio, que misticismo e masochismo partilhem os favores dos crentes e que a sexualidade seja latente, sabemo-lo, no que concerne à Espanha, desde Lazzaro de Tormes, Vélasquez, Dom João e Goya.
No entanto, temos tendência a considerar todas estas generalidades como um dado cultural básico, um pano de fundo, nascido de uma história feita de particularismos, de invasões, de mestiçagens e de visionários, por vezes, sanctificados. Contudo, a Espanha, a que vive, à margem dos circuitos turísticos, das praias de betão, das migrações em bichas, dos entusiasmos para 1992 e das reconstituições folclóricas para encantar com cor os Europeus do Norte, existe, realmente.
É, ao mesmo tempo, um extraordinário conservatório de tradições arcaícas e vivas e a radicalização social das práticas da festa. Isso, que nós ignorávamos, foi necessário que uma fotógrafa o mostrasse, revelasse. Que nos obrigasse, além das ideias pré-concebidas, além da percepção dum folclore, a ver as imbricações da vida quotidiana e das práticas colectivas.
Por isso, Cristina Garcia Rodero foi incansável a percorrer a Espanha em todos os sentidos. De aldeias em aldeias, ela iniciou, logo que tomava conhecimento duma festa popular, duma pequena tourada, de procissões, de um carnaval, uma documentação obsessional.
Desde há 15 anos - e, à margem da sua principal actividade de ensino nas Belas-Artes de Madrid -, não soube o que era um fim-de-semana e o seu calendário é simplesmente ritmado por nomes de santos, de hipotéticos encontros com touros, de enterros, de procissões, de confrarias.
O tempo vulgar foi varrido por uma organização, vinda do fundo dos tempos, ritmado por encontros simbólicos e eternizado ainda por uma fotografia pura, cujo preto e branco sublinha, ao mesmo tempo, a abstracção e o surdo drama.
Desde que a fotógrafa encetou esta busca sem fim, certas festas desapareceram e o valor documental e etnológico do conjunto não tem preço. No entanto, não é, nem de perto, o principal interesse desta soma única. Porque se trata de fotografia, de configuração, pela acumulação de instantâneos, duma realidade que só não sabemos descobrir porque não temos a coragem de sair dos caminhos já percorridos e, porque não partimos à descoberta.
Quadro amplo e preciso, luzes desligadas, selecção do detalhe significativo, Cristina Garcia Rodero inventa um mundo que nunca nos revelera os seus dados temporais. De quando datam estas cenas, de onde vêm e quando foram registadas? Ninguém o saberá, de tal maneira o jogo da fotografia com o tempo e o classicismo da forma se sobrepõem para um panorama que nos parece não ter fim. No entanto, a fotógrafa não se deixa iludir.
Não nos apresenta nem o folclore e as suas seduções, nem práticas arcaícas. Mantendo sempre a distância, ela compreende, sem complacência, as contradições internas de qualquer prática colectiva rigorosamente arquitecturada.
O moderno está sempre presente, um olhar, um detalhe, a atitude
duma criança, o mau-estar evidente duma personagem percorrem
com um humor discreto a gesta duma Espanha, simultaneamente, oculta e
quotidiana. E, o mais extravagante, neste mundo, onde não
faltam surpresas, é que, de imagem em imagem, sempre nos
dizemos que podemos encontrar isso amanhã, ao deixar a
auto-estrada, passando pelo campo. E quem sabe se será um
cortejo fúnebre, uma procissão de acções
de graça, anões toureiros ou penitentes inquietantes
encapuzados debaixo das cogulas de qualquer confraria antiga.
Christian Caujolle
This unofficial page was written by Rui Salgueiro based in texts and images provided by the Photography Studies Centre (CEF).