Como se vê a questão da língua do lado das Ciências?
 João Filipe Queiró

Actas da Conferência Internacional sobre o Ensino do Português, Lisboa, 2007



        Em Setembro de 1985 realizou-se na Universidade de Coimbra o VII Congresso do Grupo de Matemáticos de Expressão Latina. Como o nome sugere, este Grupo pretendia enquadrar matemáticos que se exprimissem em línguas latinas, nomeadamente em francês. Numa das sessões especializadas, o programa anunciava uma comunicação em… latim. Com a sala cheia, a comunicação foi apresentada, e no fim houve mesmo uma pergunta da assistência também em latim. Foi um momento raro de ironia, que ainda hoje recordo com gosto (o texto da comunicação foi enviado para as actas do congresso[1]). Este acabou por ser o último congresso do G.M.E.L., e foi a última tentativa de que tive conhecimento de uma política de afirmação de uma língua alternativa ao inglês no campo da Ciência internacional.

        Hoje o inglês é sem discussão a língua de comunicação universal, e portanto é-o também no campo da Ciência. A razão é a óbvia, e está à vista de todos: a predominância dos EUA em todos os planos – económico, comercial, científico, na cultura popular de massas (cinema, música, informática, Internet, o chamado soft power), no próprio vigor da projecção e circulação de ideias.[2]

        Quem quer ser ouvido internacionalmente na área das Ciências só pode hoje exprimir-se numa língua. Em Matemática, Física, Química, Biologia – as áreas do conhecimento menos ligadas à contingência cultural, geográfica ou histórica – todos os artigos de investigação são em inglês, e mesmo a comunicação de portugueses com franceses, italianos, e até espanhóis, se faz em inglês.

        Nessas áreas, é frequente encontrar aulas em inglês no 2º ciclo (de Bolonha), por exemplo nos países nórdicos. Entre nós há cada vez mais teses de doutoramento em inglês, sobretudo a pensar em membros estrangeiros do júri.

        Apesar de tudo isto, a língua portuguesa está viva nas áreas científicas. O português está vivo em Ciência porque se faz Ciência em Portugal, no ensino e na investigação.

        As línguas criam termos nas áreas em que as culturas respectivas estão activas. Se numa área do conhecimento uma língua é apenas uma língua de tradução, essa área acabará por desaparecer nessa língua. Em português existem as palavras para ensinar e investigar os temas científicos,[3] e há uma actividade consciente e continuada – formal e informal – de estabelecimento de uma terminologia científica portuguesa completa e actualizada.[4] Uma das maneiras de concretizar essa actividade é através da publicação de livros de referência (com efeito reforçado quando esses livros têm um percurso no Brasil). Esta situação é análoga à que se observa nos países europeus que não são de expressão inglesa.[5]

        A vitalidade de uma língua é a vitalidade da cultura respectiva. E uma cultura pode sempre render-se, ou achar que há assuntos que são só para outros.[6] A subserviência linguística – tão clara em certos “fazedores de opinião” da nossa praça – pode traduzir subserviência mental.

        O português teve também um papel como língua de conhecimento na História. Os séculos XV e XVI, em particular, foram momentos singulares de conhecimento do mundo, em que Portugal produziu língua que outros importaram. Um exemplo notável é o da ciência náutica, mas mesmo Pedro Nunes (1502-1578), cuja obra teve real impacto na Europa, publicou muito em latim. Em séculos posteriores, temos vários casos de importantes cientistas cuja obra teve repercussão internacional escassa – ou atrasada – por terem divulgado os seus trabalhos em português. Como exemplos, destaco os matemáticos José Anastácio da Cunha (1744-1787), José Monteiro da Rocha (1734-1819) e Daniel da Silva (1814-1878). Com Gomes Teixeira (1851-1933) ganha-se maior consciência da importância da publicação nas línguas de comunicação internacional.

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         É bastante óbvio que um uso correcto e proficiente da língua é essencial para a boa aprendizagem de qualquer área, e em particular da Matemática: em Matemática o raciocínio é fundamental, e sem linguagem correcta não há raciocínio.

        Sem nenhuma originalidade, conjecturo que o problema do português é uma das principais dificuldades da Escola. Muitas vezes se fala na Matemática como a disciplina mais problemática da Escola portuguesa, mas esse lugar parece-me ser ocupado pelo Português, porque tudo depende do domínio da língua. Suspeito de que muitas dificuldades na Matemática – em todos os níveis, até no ensino superior –, e em outras disciplinas, são de facto dificuldades de linguagem, de compreensão e de expressão.[7]

        Os problemas com a leitura e a literacia existem também noutros países. No Reino Unido, por exemplo, existe há anos uma forte polémica sobre a melhor maneira de ensinar a ler, e sobre estratégias para melhorar a literacia.[8]

        Emerge assim a seguinte questão: como levar os jovens portugueses a ler? O gosto parece ser importante, assim como uma não excessiva insistência em regras formais, sobretudo se essa insistência for prematura. Uma boa maneira de reforçar a competência numa língua é ler bons textos nessa língua, investindo na absorção das regras pelo convívio com elas.

        Se o gosto é importante, como levar os jovens a gostar de ler (e, já agora, de escrever)? Parece-me residir aí um problema de fundo da sociedade portuguesa. De novo sem originalidade: a chave está nos primeiros anos da escola, nas prioridades que aí são adoptadas, na qualidade – e no gosto pela língua! – de quem ensina.

        Para terminar, e em resumo: sem linguagem não há conhecimento, sem uma boa qualidade do português não há conhecimento nem ensino em Portugal.[9]

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[1] Rodolfo Salvi, De existentia solutionum debilium periodicarum quoad systema Navier-Stokes in dominio cum finibus pendentibus periodice a tempore, Actas do VII Congresso do Grupo de Matemáticos de Expressão Latina, vol. II, 185-188, Coimbra, 1985.

[2] O intelectual francês Bernard Henri Lévy, em entrevista recente sobre os EUA, disse mesmo, entusiasticamente: “Não é que tenham melhores intelectuais, mas possuem melhores universidades e uma discussão pública com choque de opiniões que já não existe em França, ou em Portugal, por exemplo. Há qualquer coisa de esfíngico nas nossas posições enquanto na América dá-se uma intensa circulação de ideias e opiniões. As teses mais importantes dos últimos anos nasceram lá.” (Diário de Notícias, 29 de Abril de 2007)

[3] Mau seria que um país em que se fala a sexta ou sétima língua do mundo não fosse capaz de gerar tais terminologias.

[4] Uma curiosa excepção na actualidade encontra-se no jargão económico-financeiro, em que se observa um exemplo de imposição de uma língua em função do dinamismo da respectiva cultura numa área específica (basta olhar para os jornais, cheios de expressões como private equity, debt swaps, hedge funds).

[5] No âmbito da União Europeia, há uma base de dados terminológica inter-institucional (http://iate.europa.eu/), que permite procurar correspondentes dos mais variados termos entre as 23 línguas da União.

[6] Que inventen ellos, disse uma vez certo famoso filósofo espanhol.

[7] Outra dificuldade central é o ambiente social em que a Escola está imersa, e respectivas consequências no plano da indisciplina, do desinteresse pelo conhecimento, etc.

[8] Problemas e insucessos na Estratégia Nacional para a Literacia no Reino Unido levaram à demissão da Secretária (isto é, Ministra) da Educação Estelle Morris em 2002.

[9] Estou grato a António Ribeiro Gomes (Universidade de Coimbra), F. R. Dias Agudo (Academia das Ciências) e Renato Correia (Parlamento Europeu) por algumas informações que amavelmente me disponibilizaram.