Em Setembro de 1985 realizou-se na Universidade de Coimbra o VII Congresso do Grupo de Matemáticos de Expressão Latina. Como o nome sugere, este Grupo pretendia enquadrar matemáticos que se exprimissem em línguas latinas, nomeadamente em francês. Numa das sessões especializadas, o programa anunciava uma comunicação em… latim. Com a sala cheia, a comunicação foi apresentada, e no fim houve mesmo uma pergunta da assistência também em latim. Foi um momento raro de ironia, que ainda hoje recordo com gosto (o texto da comunicação foi enviado para as actas do congresso[1]). Este acabou por ser o último congresso do G.M.E.L., e foi a última tentativa de que tive conhecimento de uma política de afirmação de uma língua alternativa ao inglês no campo da Ciência internacional.
Hoje o inglês é sem discussão a língua de comunicação universal, e portanto é-o também no campo da Ciência. A razão é a óbvia, e está à vista de todos: a predominância dos EUA em todos os planos – económico, comercial, científico, na cultura popular de massas (cinema, música, informática, Internet, o chamado soft power), no próprio vigor da projecção e circulação de ideias.[2]
Quem quer ser ouvido internacionalmente na área das Ciências só pode hoje exprimir-se numa língua. Em Matemática, Física, Química, Biologia – as áreas do conhecimento menos ligadas à contingência cultural, geográfica ou histórica – todos os artigos de investigação são em inglês, e mesmo a comunicação de portugueses com franceses, italianos, e até espanhóis, se faz em inglês.
Nessas áreas, é frequente encontrar aulas em inglês no 2º ciclo (de Bolonha), por exemplo nos países nórdicos. Entre nós há cada vez mais teses de doutoramento em inglês, sobretudo a pensar em membros estrangeiros do júri.
Apesar de tudo isto, a língua portuguesa está viva nas áreas científicas. O português está vivo em Ciência porque se faz Ciência em Portugal, no ensino e na investigação.
As línguas criam termos nas áreas em que as culturas respectivas estão activas. Se numa área do conhecimento uma língua é apenas uma língua de tradução, essa área acabará por desaparecer nessa língua. Em português existem as palavras para ensinar e investigar os temas científicos,[3] e há uma actividade consciente e continuada – formal e informal – de estabelecimento de uma terminologia científica portuguesa completa e actualizada.[4] Uma das maneiras de concretizar essa actividade é através da publicação de livros de referência (com efeito reforçado quando esses livros têm um percurso no Brasil). Esta situação é análoga à que se observa nos países europeus que não são de expressão inglesa.[5]
A
vitalidade de uma língua é a vitalidade da cultura respectiva. E
uma cultura pode sempre render-se,
ou achar que há assuntos que são só para outros.[6]
A subserviência linguística – tão clara em certos “fazedores
de opinião” da nossa praça – pode traduzir subserviência
mental.
O
português teve também um papel como língua de conhecimento na
História. Os séculos XV e XVI, em particular, foram momentos
singulares de conhecimento do mundo, em que Portugal produziu
língua que outros importaram. Um exemplo notável é o da ciência
náutica, mas mesmo Pedro Nunes (1502-1578), cuja obra teve real
impacto na Europa, publicou muito em latim. Em séculos
posteriores, temos vários casos de importantes cientistas cuja
obra teve repercussão internacional escassa – ou atrasada – por
terem divulgado os seus trabalhos em português. Como exemplos,
destaco os matemáticos José Anastácio da Cunha (1744-1787), José
Monteiro da Rocha (1734-1819) e Daniel da Silva (1814-1878). Com
Gomes Teixeira (1851-1933) ganha-se maior consciência da
importância da publicação nas línguas de comunicação
internacional.
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Sem nenhuma originalidade, conjecturo que o problema do português é uma das principais dificuldades da Escola. Muitas vezes se fala na Matemática como a disciplina mais problemática da Escola portuguesa, mas esse lugar parece-me ser ocupado pelo Português, porque tudo depende do domínio da língua. Suspeito de que muitas dificuldades na Matemática – em todos os níveis, até no ensino superior –, e em outras disciplinas, são de facto dificuldades de linguagem, de compreensão e de expressão.[7]
Os problemas com a leitura e a literacia existem também noutros países. No Reino Unido, por exemplo, existe há anos uma forte polémica sobre a melhor maneira de ensinar a ler, e sobre estratégias para melhorar a literacia.[8]
Emerge assim a seguinte questão: como levar os jovens portugueses a ler? O gosto parece ser importante, assim como uma não excessiva insistência em regras formais, sobretudo se essa insistência for prematura. Uma boa maneira de reforçar a competência numa língua é ler bons textos nessa língua, investindo na absorção das regras pelo convívio com elas.
Se o gosto é importante, como levar os jovens a gostar de ler (e, já agora, de escrever)? Parece-me residir aí um problema de fundo da sociedade portuguesa. De novo sem originalidade: a chave está nos primeiros anos da escola, nas prioridades que aí são adoptadas, na qualidade – e no gosto pela língua! – de quem ensina.
Para terminar, e em resumo: sem linguagem não há conhecimento, sem uma boa qualidade do português não há conhecimento nem ensino em Portugal.[9]