Origem da cultura das Matemáticas em Portugal
A cultura das Matemáticas começou em Portugal mais tarde do que na Espanha e, como neste país, foi a Astronomia, com as doutrinas da Aritmética e Geometria que no seu estudo outrora se aplicavam, o ramo daquelas ciências que primeiro foi regularmente cultivado. Não conhecemos, com efeito, documento algum que se refira à cultura de tais ciências no nosso país antes do século XV. Para contar, usava-se a numeração romana; e provavelmente as operações numéricas necessárias para os usos ordinários da vida, faziam-se pelos meios herdados dos Romanos pelos povos latinos. A numeração indiana, introduzida pelos Árabes na Península Ibérica, parece não ter sido empregada em Portugal antes do mencionado século. Nos fins dêle foi, em especial, usada no Almanach perpetuum do judeu espanhol Abraão Zacuto, impresso em Leiria em 1496, e depois nos Regulamentos para as navegações, então organizados, de que em breve falaremos. Nas terras da Espanha cristã vizinhas da Espanha muçulmana apareceu êste sistema de numeração certamente mais cedo, mas em 1535 estava ainda tão pouco divulgado na Península, que Francisco Faleiro, judeu português, em uma obra sôbre a arte de navegar, impressa neste ano em Sevilha, entendeu dever consagrar algumas páginas ao ensino da numeração indiana. Em Portugal, os únicos vestígios, anteriores ao século XV, que parecem indicar alguns conhecimentos matemáticos, são os monumentos em pedra, então construídos, que revelam nos arquitectos que os projectaram e levantaram, a posse de algumas noções, talvez empíricas, de Geometria e de Mecânica. Pelo que respeita à Astronomia, é natural que pelo menos alguns rudimentos desta ciência tenham atravessado nos referidos tempos a fronteira que separa Portugal da Espanha, trazidos por astrólogos judeus, que se espalharam por tôda a Península. Durante a dinastia afonsina, isto é, no período que vai do século XII ao século XV, não houve em Portugal cultura científica propriamente dita. Os monarcas desta dinastia dedicaram tôda a sua atenção e actividade, primeiramente à formação do seu reino, conquistado palmo a palmo aos mouros desde o Minho ao Algarve, e depois à organização dêste reino e sua defesa das ambições dos Estados vizinhos, e ainda à defesa da autoridade real contra prelados e nobres ávidos de poderio e riquezas. Dos serviços da instrução não tiveram que ocupar-se. Já dissemos que desde séculos estavam tais serviços em todos os países cristãos a cargo do clero, que a dava em escolas anexas a algumas catedrais, em alguns mosteiros e em universidades do estado que êle próprio dirigia. Ensinava-se nestes institutos, quando muito, a modesta ciência dos latinos do oriente; a ciência dos árabes levou tempo a infiltrar-se naqueles países, por motivo do ódio da Cristandade aos seguidores de Maomet. Em Coimbra houvera, antes da fundação da monarquia portuguesa, uma escola episcopal, fundada por D. Paterno; depois os Cónegos regrantes de Santo Agostinho fundaram outra no seu Mosteiro de Santa Cruz; e por fim, a coroar tudo isto, fundou D. Deniz em Lisboa a primeira Universidade portuguesa, de que aquelas escolas tinham sido precursoras e em cuja fundação intervieram prelados e monges. Na nossa primeira Universidade, eram ensinadas as Humanidades, as Leis, o Direito canónico e a Medicina. Mais tarde foram-lhe agregadas cadeiras de diversas ciências, e, ora em Lisboa, ora em Coimbra, com períodos de brilho e outros de decadência, foi ela em Portugal a mãe de todo o ensino superior. Pelo que respeita às Matemáticas, enquanto a Espanha tinha na Universidade de Salamanca uma cadeira de Astronomia, que fundara Afonso X, D. Deniz, seu neto, não dotou a Universidade portuguesa com cadeira alguma destinada ao ensino daquelas ciências. Era de facto cedo para criar um tal ensino. Ainda se não conhecera no pais suficientemente a utilidade dêle; conheceu-se mais tarde e então entraram elas aqui por via de Toledo e Salamanca, como veremos. O mesmo rei D. Deniz organizou, pela primeira vez, com o auxílio de um genovês muito perito na arte de navegar, uma armada, para a defesa dos portos do reino das incursões dos piratas da Mauritânia. Assim foram os portugueses levados à prática da arte náutica, que mais tarde, associada à ciência, havia de ser a base da sua glória nos mares. A primeira dinastia terminou por um monarca pusilânime, que deixou de si memória deplorável; mas, a-pesar-disso, legou à seguinte um povo viril e patriota, cujo carácter se vinha formando desde os tempos de Afonso Henriques; um povo que se amotinou contra as fraquezas de D. Fernando e torpezas de Leonor Teles; um povo que aclamou com entusiasmo e defendeu com heroísmo o Mestre de Aviz; enfim, um povo que, dirigido por chefes enérgicos e animados por altos ideais, subiu depois a uma grandeza que foi o assombro do mundo. Em conclusão, durante a dinastia afonsina formou-se e organizou-se Portugal, nasceu a sua Universidade nasceu a sua marinha, preparou-se a sua ciência. Início da cultura das Matemáticas em Portugal por influência da Náutica A história da cultura das Matemáticas em Portugal está estreitamente ligada, no seu princípio, à história da Náutica, e começou quando D. Henrique, o Navegador, fundou a célebre estação naval de Sagres, a-fim-de preparar êsses marinheiros e pilotos que, animados por uma fé viva em Deus e na Pátria, sugestionadora de heroísmos, penetraram audazmente para sul e poente no Oceano misterioso a descobrir terras para o seu Rei e a conquistar almas para o seu Deus. Naquele Promontório sagrado, o grande filho do Mestre de Aviz, longe da côrte, quási isolado do Mundo, estudava as obras astronómicas e geográficas de Cláudio Ptolomeu e, auxiliado pelo catalão Jácome de Malhorca, que, segundo o célebre cronista João de Barros, era muito perito na fabricação de bússolas e no traçado de cartas de marear, dirigia a preparação das expedições que de lá partiam por ordem sua a explorar os segredos dos mares (1).
Existia naqueles tempos na Catalunha e nas Baleares uma navegação comercial considerável e, para a auxiliar, havia em Malhorca cartógrafos afamados. Não se pôde ainda saber com segurança qual dêles veio a Portugal auxiliar D. Henrique. O que a êste respeito maior número de probabilidades reúne, é o judeu Jafuda Cresques, apelidado o Judeu das Bússolas, que viveu naquela ilha até 1394 e depois, convertendo-se ao Cristianismo, trocou o nome primitivo pelo de Jaime (sinónimo de Jácome) e ausentou-se da ilha. Logo no começo das suas explorações das praias ocidentais de África, reconheceram os pilotos de D. Henrique a necessidade de se internarem no mar, para ir, longe da costa, procurar ventos favoráveis às suas derrotas. E por isso que na história das navegações portuguesas, aparecem como primeiros troféus as descobertas da Madeira e dos Açores, prólogo, escrito pelos Lusos, ao poema da descoberta da América por Colombo, e depois as descobertas das ilhas do Ocidente africano, prólogo ao poema da descoberta, pelos nossos navegadores, das terras de Santa Cruz. Ora, para orientar as naus no mar-alto, era necessário pedir aos astros, de tempos a tempos, por meio da ciência astronómica, a indicação do lugar onde se estava. Assim, para completar o papel da Estação de Sagres, precisava D. Henrique de criar uma escola onde se ensinasse a Astronomia com as doutrinas de Aritmética e Geometria de que aquela ciência depende. Existia naqueles tempos em Portugal, como anteriormente dissemos, uma Universidade, que estava instalada em Lisboa e fôra fundada por D. Deniz, mas não havia ainda nela cadeira alguma destinada ao ensino das Matemáticas. D. Henrique fundou uma, onde os aspirantes a pilotos aprendiam o que a respeita destas ciências precisavam conhecer. No modo de cultivar as Matemáticas, havia diferenças essenciais entre a Escola muçulmana de Córdova e Sevilha, a Escola cristã de Toledo e a Escola nascente portuguesa. Na primeira Escola, havia uma certa cultura da Aritmética, da Álgebra e da Geometria, como ciências autónomas; na segunda, tôda a cultura matemática girava à roda da sua aplicação à Astronomia; na terceira, esta cultura era ainda mais reduzida, pois que girava à roda do que na Astronomia era aplicável à Náutica. Só no século XVI começou em Portugal, como veremos, o estudo das Matemáticas sob o ponto de vista puramente teórico. O ideal que inspirou D. Henrique na fundação da Escola portuguesa de ciência astronómica é bem diferente do que animara Afonso X na fundação da Escola de Toledo. O ideal do rei castelhano era puramente filosófico; o do infante lusitano era utilitário. O espírito científico nasceu entre os Lusos mais tarde e subiu alto, mas foram as navegações, com os problemas que lhes propuseram e com os novos aspectos que lhes apresentaram dos fenómenos da natureza, que criaram aquele espírito. D. Henrique, depois de se cobrir de glória com seu Pai e seu irmão D. Duarte em Seuta, e de cair desastradamente em Tânger, quis ir bater os muçulmanos nas longínquas paragens da Índia e ordenou que as suas naus navegassem para o sul, à procura de passagem para os mares do Oriente (2). Era uma emprêsa audaz, mas o Infante tinha têmpera de herói e confiava no heroísmo da gente lusa. Não conseguiu levar aquelas naus a esses mares. Faltou-lhe tempo. Mas, ainda no século em que viveu, o velho mundo recebeu com pasmo a notícia de que uma armada lusa abordara às praias de Calecute.
Na alma do Infante português ardiam duas paixões que a dominavam: o amor a Cristo e a Portugal, o ódio ao Islam, que os ameaçava a ambos. Foram estas paixões que o levaram primeiramente a Marrocos, para aí combater a raça odiada, e depois a Sagres, para aí preparar as navegações que haviam de levar os portugueses a combatê-la na Ásia. Com efeito, os muçulmanos ameaçavam a Europa por oriente e sul e, para destruir a fonte do seu poder, era preciso ir aniqüilar na Índia o seu comércio com a Europa, que lhes dava as rendas de que precisavam para manter os seus temíveis exércitos. Para isso, era necessário ir ali por mar, circundando a África. Ora nenhum povo estava em condições mais favoráveis para realizar êste feito heróico do que o luso, por motivo da viveza da sua fé religiosa, da sua coragem e da posição geográfica que ocupava. D. Henrique não podia deixar de acolher com agrado tal plano, porque o ódio ao Islam, que o levara a Seuta e a Tânger, se avivara com a derrota sofrida nesta última cidade e porque certamente tinha sempre na mente, a atormentá-lo, a lembrança pungente dos sofrimentos de seu irmão D. Fernando, o santo prisioneiro de Fez, que não pudera resgatar sem sacrificar a glória da tomada de Seuta. Devemos notar aqui que, quando D. Henrique começou a ocupar-se da náutica, possuía já Portugal uma considerável navegação costeira e uma importante marinha de guerra, destinada a defender aquela navegação e os portos do país dos ataques dos piratas da Mauritânia, que começara a ser organizada, como já dissemos, no tempo de D. Deniz, e dispunha também, para dirigir as naus, de marinheiros experientes e valorosos. Nos tempos anteriores à fundação da Estação de Sagres, os nautas afastavam-se pouco da costa e, quando o faziam, fixavam a posição do navio pelo rumo (isto é pelo ângulo constante formado pela direcção do seu movimento com os meridianos que ia cortando) e pelas distâncias percorridas. Nas viagens novas, os pilotos colhiam estes elementos, que os que vinham depois aproveitavam. Mais tarde empregaram-se para o mesmo fim os rumos e as latitudes. Em cada um dêstes dois meios de regular o movimento do navio, dois números determinam a sua posição no mar relativamente ao lugar de onde partiu. Não sabemos em que época o segundo modo de navegar substituiu o antigo, que era menos prático e não era apropriado à navegação no mar alto; o que sabemos é que já tinha sido indicado por Afonso-o-Sábio no seu Libro de las Partidas (onde diz que com o astrolábio, a bússola e a carta náutica se podem dirigir com segurança os navios no mar), que foi empregado por Diogo Gomes em 1642, no mar da Guiné, e que êste célebre navegador se serviu, para determinar as latitudes, do método que as deduz da altura meridiana da Estrêla polar, altura que mediu por meio de um quadrante graduado. É natural que tenha sido empregado pelos pilotos de D. Henrique desde a ocasião em que, começando a internar-se no Oceano, precisaram, para se orientar, de recorrer aos astros. Este modo de determinar as latitudes era conhecido desde a antigüidade, assim como o instrumento com que Diogo Gomes observou a estrêla mencionada, e estavam assinalados nos Libros del saber de Afonso-o-Sábio, que o Infante certamente conhecia, porque existia um exemplar desta obra na biblioteca da côrte. D. Henrique morreu em 1460. Morreu solteiro e pobre. Tinha dado a Portugal, com o seu coração, todos os seus esforços e todos os seus haveres. Tinha gasto tudo na preparação das expedições e tinha ainda gasto nelas as rendas da Ordem de Cristo, de que era Grão-Mestre. Alcançara a glória de ser o génio criador e o primeiro organizador das navegações maravilhosas dos Lusos e, com a sua energia inteligente e pertinaz e com a sua fé sugestionadora, fizera dos seus marinheiros heróis. Portugal, reconhecido, venerou e glorificou sempre a sua memória e o seu nome figura aureolado nas páginas da Epopeia dos Lusíadas. Para uso das navegações por distâncias e rumos, tinham-se primitivamente construído cartas náuticas, onde os lugares eram representados por pontos, os rumos pelas direcções dos segmentos da recta que ligam aqueles lugares e as distâncias pelos comprimentos dêstes segmentos, referidos a uma escala arbitràriamente escolhida. São estes os antigos portulanos. Mas estas cartas não serviam para a navegação por latitudes e rumos, e assim foi-se levado a recorrer às cartas rectangulares de Marino de Tiro, usadas por Ptolomeu, em que os meridianos e os paralelos da esfera são representados por dois sistemas de rectas paralelas eqüidistantes, referidas a uma escala arbitrariamente escolhida, sendo as rectas de um dos sistemas perpendiculares às do outro, modificando-se porém aquelas cartas do modo que vamos ver. Nas cartas de Marino, cada lugar da esfera é representado no plano, relativamente a uma recta que corresponde ao Equador (ou a um Paralelo fundamental), por duas coordenadas, uma das quais corresponde ao comprimento do arco do meridiano do lugar considerado compreendido entre êste lugar e o Equador (ou entre o lugar e o Paralelo fundamental) e a outra ao comprimento do arco do Eqüador (ou do arco do Paralelo fundamental) compreendido entre o Meridiano do lugar e o Meridiano principal, referidas à mesma escala. Marino não adoptara para base da sua carta o Equador, que estava fora da parte da Terra que então se julgava habitável; adoptara o Paralelo de Rodes. Suprimindo neste gráfico de latitudes e longitudes as rectas que representam os meridianos (ou considerando-as apenas como indicadoras do rumo norte-sul), marcando nêle um ponto correspondente a um lugar especial da esfera, que se tome para origem dos rumos, e tirando por êste ponto as rectas correspondentes às direcções dos raios da Rosa dos Ventos no lugar da esfera que representa, obtém-se o gráfico de latitudes e rumos empregado nas navegações dos séculos XV e XVI sob a designação de carta náutica ou carta hidrográfica, no qual cada lugar da esfera é representado pelo ponto de intersecção da recta correspondente ao seu paralelo com o que representa o seu rumo relativamente à Origem dos rumos na esfera. A sobreposição dêste gráfico de latitudes e rumos ao gráfico de latitudes e longitudes de Marino, de modo a obter uma carta de latitudes, longitudes e rumos, só é possível aproximadamente, como adiante veremos. Tem-se afirmado que D. Henrique, conhecendo o sistema de Marino para a representação da esfera por meio do Tratado de Geografia de Ptolomeu, onde aquele sistema é desenvolvidamente analisado, o fêz reviver para uso da náutica. Mas o distinto escritor espanhol D. António Vera, na sua Historia de la Matematica en España, publicada recentemente, dá notícia de uma carta de latitudes e rumos construída em 1413 pelo cartógrafo malhorquino Matias de Vila Destes, e portanto anterior à fundação da Estação de Sagres. Poderia pois ter sido êste sistema de cartas indicado ao Infante por Jácome de Malhorca, quando veio auxiliá-lo em Sagres. Por outra parte, o nosso Garção Stockler tinha já falado desta carta, em 1819, no seu Ensaio histórico, e considerara-a como falsificada na data pelo motivo que vamos dizer. Tanto o historiador português como o historiador espanhol encontraram a notícia da referida carta num livro de notícias sôbre alguns conventos da Espanha, escrito pelo Padre Joaquim Vilanova, o qual diz que a vira na Cartuxa de Val de Cristo, perto de Segorbe. Ora, na menção que êste escritor faz de lugares registados na carta, inclui as ilhas de Cabo Verde, que em 1413 ainda não tinham sido descobertas. Para explicar êste facto, Vera atribui-o a lapso do Padre Vilanova, enquanto que Stokler o atribue a falsificação cometida pelo desenhador, com o fim de fazer passar a carta por mais antiga do que realmente era. Para se resolver difinitivamente a questão, seria necessário examiná-la, mas infelizmente isto não é possível, porque, segundo disseram mais tarde os monges do mosteiro mencionado, foi roubada pelos franceses quando invadiram a Península, e depois nunca mais se soube dela. Outra carta malhorquina célebre, do mesmo sistema, a de Gabriel Valseca, só apareceu em 1439, quando já começara o período de brilho das navegações portuguesas, e então já êste sistema de cartas seria certamente conhecido em Sagres. Entre as cartas planas rectangulares célebres do século XV, figura também a que o italiano Toscanelli remeteu em 1474 a um cónego da Sé de Lisboa, que tem a singularidade, para nós notável, de estar referida ao Paralelo de Lisboa. Qualquer que seja porém a origem da introdução em Portugal dêste sistema de representação da esfera, o certo é que aos portugueses cabe a honra de serem os primeiros a empregá-lo com regularidade nas navegações e de aperfeiçoarem as cartas registando nelas novos lugares da Terra, melhorando a colocação de pontos que nela representam lugares já registados, etc. Assim foram, entre êles, progredindo as navegações com as cartas e as cartas com as navegações, de tal modo que, no século XVI pôde Pedro Nunes escrever no seu Tratado em defensam da carta de marear as palavras seguintes:
Depois acrescenta:
Voltaremos a falar das cartas náuticas, com mais precisão e desenvolvimento, quando nos ocuparmos das obras de Pedro Nunes. Não sendo o modo de orientação das naus por meio da Estrêla polar aplicável quando os portugueses quiseram navegar para além do Equador, D. João II encarregou os seus cosmógrafos de procurar uma solução para o problema da determinação da latitude em qualquer lugar do globo terrestre, os quais aconselharam para êsse fim a observação da altura do Sol na sua passagem pelo meridiano do lugar e o emprêgo de um método exposto nos Libros del saber de Astronomia de Afonso X. Êste método determina a latitude, quando é conhecida aquela altura e a declinação do Sol no dia da observação. Para medir a altura dos astros, aconselharam os mesmos cosmógrafos o astrolábio, instrumento de origem grega, muito empregado pelos Árabes para diversos fins e minuciosamente descrito na mencionada obra do Rei castelhano, no qual suprimiram tôdas as peças que não eram necessárias para aquela medida. Assim, os astrolábios luxuosos e complicados descritos nos Libros del Saber foram reduzidos a um humilde instrumento de madeira, mas por meio deste humilde instrumento, os astros e a bússola puderam dizer à nau a direcção em que devia seguir para levar o nauta ao pôrto do seu destino. O método para a determinação das latitudes de que acabamos de falar, foi aplicado na náutica lusitana pela primeira vez pelo judeu José Vizinho, cosmógrafo e médico de D. João Il, em uma viagem que, para o experimentar, fêz à Guiné em 1485. Entre as aplicações que depois se fizeram dêle, ficaram especialmente assinaladas a que fêz Vasco da Gama na ilha de Santa Helena, quando aí abordou na sua primeira viagem a Índia, e a que fêz Mestre João, médico-astrólogo da armada de Pedro Álvares Cabral, em 1500, na ocasião de esta armada aportar a terras de Santa Cruz. Como obteve José Vizinho a tábua de declinações do Sol de que depende a aplicação do referido método ? Provàvelmente por meio de Abraão Zacuto, professor em Salamanca. De facto, Zacuto tinha composto em língua hebraica, cêrca do ano de 1477, uma obra com o título de Composição Magna, onde eram expostos numerosos assuntos de Astronomia e onde era dada uma colecção de tábuas astronómicas, que compreendia as que são necessárias para determinar as declinações do Sol em cada ano. Ora, José Vizinho tinha relações com Zacuto, que fôra seu mestre, e poderia por isso obter uma cópia das tábuas de que precisava. Mais tarde, em 1492, Zacuto veio pala Lisboa, onde ocupou o cargo de cosmógrafo do Rei, e então publicou em Leiria, em 1496, sob o título de Almanach perpetuum celestium motuum, a sua colecção de tábuas com explicações para as usar traduzidas em latim por José Vizinho. Êste Almanach foi depois a origem de tôdas as tábuas de declinação do Sol que os pilotos levavam nas naus. Vê-se pelo que acabamos de dizer, quanto foram estreitas as relações entre o astrónomo espanhol e o cosmógrafo português, relações que tiveram como conseqüência ficarem os seus nomes gloriosamente ligados na história da Náutica lusitana. É interessante notar aqui que o Almanach perpetuum foi um dos quatro primeiros livros publicados em Portugal depois da invenção da imprensa e o primeiro no que respeita às Matemáticas. É um livro hoje raro, e por isso Joaquim Bensaúde fêz reproduzir em 1915 pela fotogravura um exemplar que existe na Biblioteca de Augsburgo, na Alemanha, e a tradução em castelhano dos Cânones (regras para o seu uso), que existe na Biblioteca Pública de Évora. E ajuntarei ainda que a Compilação Magna de Zacuto foi traduzida em castelhano por João de Salaya, professor na Universidade de Salamanca, e que o manuscrito desta tradução, existente na Biblioteca desta Universidade, foi recentemente publicado na Revista da Academia das Ciências de Madrid por Cantera Burgos, como suplemento a uma notícia sôbre Zacuto, notável pela abundância de informações e rigor da crítica. Convém por fim notar que um dos inspiradores de Zacuto na composição desta obra foi, segundo êle diz, o astrónomo judeu Jehuda Iben Verga, que nasceu em Lisboa em 1447 e depois se retirou para a Espanha. Compôs êste judeu tábuas astronómicas, um tratado de Astronomia e um tratado sôbre instrumentos para a observação dos astros. Os regulamentos das antigas navegações portuguesas foram reünidos em um livro intitulado Regimento do astrolábio, do qual se conhecem dois exemplares, pertencentes a duas edições diferentes: um, mais antigo, encontrado por Joaquim Bensaúde na Biblioteca Nacional de Munich, e outro, mais completo e mais perfeito, encontrado por Luciano Cordeiro na Biblioteca Pública de Évora. Contêm ambos os exemplares as regras para a determinação das latitudes por meio das passagens meridianas do Sol e por meio da Estrêla polar, uma tábua para o cálculo das distâncias percorridas e dos desvios em longitude no movimento do navio por cada rumo da Rosa dos ventos e uma lista de latitudes, preciosa para aqueles tempos, dos principais lugares por onde os nossos primeiros navegadores passaram, lista que no Regimento de Munich se estende até ao Equador e no de Évora até terras da Ásia. O segundo exemplar encerra, além disto, as regras para conhecer as horas da noite por meio da Ursa menor e para conhecer as horas das marés. Contêm ainda os dois livros um pequeno tratado da esfera celeste para instrução dos pilotos e uma carta dirigida pelo sábio geógrafo alemão Monetário a D. João II, carta que nada diz sôbre prática da navegação e que certamente ali foi colocada para levantar o espírito dos marinheiros, fazendo-lhes saber quanto as navegações portuguesas eram admiradas no estrangeiro e as esperanças que nelas se tinham. O exemplar de Munich contém no fim uma tábua de declinações do Sol para um ano bissexto, expressas em graus; o exemplar de Évora contém uma tábua das declinações do Sol, expressas em graus e minutos, para um período de quatro anos que vão de um bissexto ao seguinte; tábuas que foram calculadas por meio do Almanach de Zacuto, onde se dão regras para se passar das tábuas de declinação do Sol referidas ao período de quatro anos que vai de 1473 a 1476, escritas neste Almanaque, para as que se referem a outro período qualquer do mesmo número de anos. Como a declinação do Sol varia lentamente de ano para ano, as tábuas de declinação do primeiro Regimento continuavam a servir para alguns anos e as do segundo para alguns períodos de quatro anos, com aproximação cada vez menor, até que eram substituídas por outras, calculadas por meio do referido Almanaque. As doutrinas das duas edições do Regimento do astrolábio foram aperfeiçoadas depois por alguns cosmógrafos, que compuseram novos Regimentos náuticos, e Pedro Nunes mostrou que, das regras dadas nos primitivos para determinar as latitudes por meio da Estrêla polar, só são exactas as duas que se referem às suas passagens pelo meridiano do lugar da observação. Os dois livros de que acabamos de falar, são documentos preciosos para a história das navegações portuguesas, e por isso Joaquim Bensaúde as incluiu na sua magnífica colecção de reproduções fac-similadas de obras preciosas relativas àquelas navegações. As duas mencionadas edições do Regimento do astrolábio foram publicadas no século XVI, mas outras tinham já sido de-certo compostas para as viagens realizadas nos fins do século XV, que talvez não tenham sido divulgadas para conservar o segrêdo das nossas navegações, ordenado por D. João II. !Encanta observar que, com tão modestos Regimentos e com humildes astrolábios de madeira, puderam marinheiros audazes percorrer a vastidão dos mares, e descobrir nêles numerosas terras, e fixar rotas para ir de praia a praia, e, circundando a África, navegar até à Índia, e, seguindo para ocidente, descobrir as Américas, e, subindo mais em audácia, realizar o glorioso feito da circunnavegação do Mundo ! Aqueles livros devem ser sagrados para os portugueses, porque fazem evocar a memória dos primitivos conhecimentos em ciência da navegação dos nossos avós. As listas de latitudes que encerram são documentos històricamente preciosos e são ainda troféus de glória a recordar terras inexploradas das costas da África, da América e da Ásia banhadas por mares que as nossas caravelas percorreram em viagem triunfal. Dizia Renan que a civilização do povo helénico apareceu como um milagre na história do Mundo. Este conceito pode aplicar-se à gente Lusa. Pequeno em extensão como a Grécia, Portugal foi, como ela, berço de heróis, que em longa viagem pelos oceanos navegaram até à Índia, onde Alexandre Magno tinha levado por terra os seus exércitos, e, dilatando mais as suas conquistas do que o herói macedónico, constituíram um império mais vasto do que todos aqueles que até então se tinham visto. Infelizmente, na filosofia e na ciência, a nossa gente só pôde seguir os mestres daquele povo, sem lograr imitá-los. Podemos porém acrescentar que, até aos meados do século XVI, não ficámos em cultura científica atrás dos outros povos que foram beber a sua ciência nas fontes heleno-árabes. Alguns historiadores têm atribuído um papel essencial na fundação da Astronomia náutica a um fidalgo alemão, Martin Behaim, que no tempo de D. João II veio a Lisboa e que se dizia discípulo do célebre Regiomontano. Afirmam êles que Behaim ensinou aos portugueses o método para determinar as latitudes pela observação da altura meridiana do Sol e que, para o poderem aplicar, trouxe de Nuremberg as tábuas astronómicas do seu mestre. Esta versão sôbre a origem do saber dos Lusos em Astronomia náutica, foi divulgada pelos alemães com certo orgulho, mas não foi por êles inventada; a sua origem é portuguesa. Dois dos nossos escritores quinhentistas, Gaspar Correia, nas Lendas da Índia, e João de Barros, nas Décadas, falaram das origens daquele saber. O primeiro atribuiu-o a Zacuto, o segundo a Behaim. O primeiro era inculto e não foi atendido; o segundo era douto e foi ouvido. Ficou pois assente a segunda versão, que, ao começar o século XIX, a pena ilustrada de Garção Stockler fortaleceu no seu Ensaio histórico e a pena poderosa de Humboldt espalhou por todo o mundo. Mas recentemente tudo isto mudou. Enquanto que nem um único vestígio aparece do uso das tábuas de Regiomontano na Náutica portuguesa, do emprêgo das tábuas de Zacuto aparecem sinais evidentes nas duas edições do Regimento do astrolábio encontradas em Munich e Évora. Com efeito, as tábuas do Sol de Regiomontano e Zacuto diferem entre si, porque os dois astrónomos adoptaram para valor da obliqüidade da Eclíptica números diferentes: ora, as tábuas de declinação do Sol dadas no Regimento do astrolábio estão em desacôrdo com as tábuas das Efemérides do primeiro e harmonizam com as tábuas do Almanaque do segundo. Ao terminar estas considerações, é justo acrescentar que se deve ao mencionado historiador da fundação da Astronomia náutica, Joaquim Bensaúde, o ter terminado completamente com a lenda da intervenção da ciência germânica na náutica lusitana, que o geógrafo inglês Ravenstein tinha já anteriormente combatido, mas não conseguira extinguir. Parece que Behaim era apenas um fidalgo ilustrado que, em vez de nos trazer ciência astronómica, levou de Portugal para o seu país ciência geográfica, com a qual compôs uma carta esférica representativa do mundo então conhecido, que se encontra em Nuremberg, e um códice, escrito em latim, fruto de narrativas que lhe fêz Diogo Gomes, códice que foi depois reproduzido em Portugal por Valentim Fernandes. Em conclusão, a Astronomia náutica é obra ibérica e a sua origem está nos Regimentos das navegações portuguesas. Resultou da colaboração de Zacuto com José Vizinho e é uma aplicação das doutrinas de origem greco-árabe contidas na obra de Afonso X. A Escola astronómica de Toledo foi um foco de luz que iluminou a nossa Península inteira e foi ainda ao longe iluminar a Alemanha. Portugal recebeu luz directa desta Escola; não precisou de receber de além Reno luz reflectida por meio de Regiomontano e Behaim. A ciência daquele grande geómetra e astrónomo só influíu na ciência portuguesa no século XVI, porque nas suas obras bebeu Pedro Nunes alguns dos seus conhecimentos, como veremos. Quando morreu D. Joao II, estava fundada a ciência da navegação pelos astros e estava mesmo já experimentada, como vimos. Este grande monarca, que fechou com chave de ouro o primeiro ramo de uma dinastia que com chave de ouro fôra aberta, legou ao seu sucessor, além desta ciência, obra dos seus cosmógrafos, e de terras descobertas pelos seus pilotos, o Tratado de Tordesilhas, que regulava a divisão entre Portugal e Castela novas terras que se descobrissem, evitando assim conflitos entre estes dois países, prejudiciais à civilização do Mundo; e legou-lhe ainda os planos das grandes viagens que depois se fizeram, marinheiros experimentados para as executar e capitães valentes para assegurar o domínio dos portugueses nas terras que descobrissem. D. Manuel, herdeiro afortunado de tudo isto, aumentou a herança, mas infelizmente os seus sucessores não puderam conservá-la. Têm sido os antigos portugueses algumas vezes considerados como simples aventureiros audazes. É um êrro. O povo luso revelou nas suas prodigiosas navegações coragem heróica, pertinácia inexcedível, inteligência viva e notável saber técnico para construir e manobrar as naus e para as dirigir nos mares pela bússola e pelos astros. «Não iam a acertar, diz Pedro Nunes, mas partiam os seus mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de Astrologia e Geometria, que são as cousas de que os cosmógrafos hão-de andar apercebidos, segundo diz Ptolomeu no primeiro livro da sua Geografia». Antes de passarem aos mares do oriente estudaram o regime dos ventos no Atlântico e navegaram nêle, ora perto ora longe da costa, segundo o que mais convinha em cada ocasião(3).
Os navegadores que iam primeiro informavam os que iam mais tarde das observações que tinham feito e de que estes podiam aproveitar-se. Assim como na terra há estradas para ir de lugar a lugar, também no mar há caminhos, determinados pelas correntes marítimas e pelo regime de ventos, para se ir de praia a praia. Ora, os nautas portugueses foram os primeiros a estudar estes caminhos no que respeita ao Atlântico. Tôdas as expedições lusas desde o seu início em Sagres até ao século XVI foram sàbiamente organizadas e correctamente executadas. Depois é que apareceram mercadores ambiciosos, aventureiros por interêsse, a trazer à Europa produtos da Índia em navios mal construídos, excessivamente carregados e rotineiramente dirigidos, muitos dos quais naufragaram. A confirmar a arte e ciência com que navegavam os Portugueses, menciona Pedro Nunes no Tratado em defensam da carta de marear o facto de as cartas das nossas navegações darem para valor da diferença de longitude entre as Canárias e o Cabo Gardafui, chamado pelos antigos Aromata, o mesmo valor, oitenta e três graus, que Ptolomeu tinha obtido por meio de medidas feitas por viajantes em terra. Para fazer sobressair a importância desta coincidência, o grande cosmógrafo diz que os Portugueses não foram àquele Cabo por terra, mas por mar, «navegando com tamanhos rodeios como se fazem em tão comprido caminho como é o da Índia, e passando tantas tormentas e diversidade de tempos, que ora os lançam para uma parte, ora para a outra, ora havendo vista da terra e muitas vezes não a vendo e lançados tanto ao mar como convém para passar o Cabo da Boa Esperança e poderem tornar a cobrar o norte»; e acrescenta depois, em conclusão: «as navegações de Portugal são as mais certas e melhor fundadas do que nenhumas outras». Aceitando esta conclusão, lastimamos que o seu autor não nos tenha deixado o registo da série de medidas que fez para chegar à coincidência inesperada que mencionámos. Agora, antes de continuar esta doutrina é justo que consagremos uma recordação a êsse hebreu sem pátria que se chamou Zacuto. Há quem diga que êste astrónomo veio para Portugal quando os judeus foram expulsos da Espanha e há também quem afirme que viera antes disso, chamado por D. João II. 0 certo é que foi cosmógrafo dêste monarca e que colaborou com os cosmógrafos portugueses, iluminando-os com a sua ciência astronómica na preparação das navegações lusitanas. Dissemos, quando falámos da Sintaxe astrológica de Ptolomeu, que a Astrologia judiciária prestou grandes serviços à ciência dos astros, dando aos astrónomos os meios de que careciam para viver. No caso actual, aproveitou estes serviços a náutica portuguesa porque o Almanach perpetuum de Zacuto não teria sido talvez composto se não aproveitasse aos astrólogos. Depois da morte de D. João II, passou Zacuto a ser astrólogo de D. Manuel, que o encarregou de compor o horoscópio da viagem de Vasco da Gama à Índia, quando esta viagem estava em preparação, mas a sua demora neste cargo não foi longa, porque teve de sair de Portugal com os seus irmãos na raça, nas crenças e na desdita, quando o referido monarca mandou expulsar do seu reino os judeus que não abjurassem da sua fé religiosa. Muitos dêstes infelizes, para não sairem da pátria adoptiva, abjuraram, mas continuaram a adorar em segrêdo o seu Jehová, como os cristãos tinham adorado, também em segrêdo, nas catacumbas o seu Jesus. Os outros partiram e foram os mais felizes. Um destes foi Zacuto. De nada lhe valeram os serviços que fizera às nossas navegações com as suas tábuas e com o seu ensino. Expulso primeiramente da Espanha, onde nascera, e depois de Portugal, a nova pátria que adoptara, lá foi seguindo na sua peregrinação até Tunis e depois até à Síria, onde foi procurar nos islamitas de Damasco a tolerância religiosa que não encontrara entre os cristãos da Ibéria . Comove pensar na grandeza de alma e na viveza de fé dêste judeu célebre, que, não querendo ser apóstata nem hipócrita, deixou a Península, onde nasceu, e vai à aventura como o Ashavero da lenda, procurar a paz aonde Jehová o levar. Deixou em Portugal uma filha, casada com Pedro Anes, a quem D. João III, reparando a ingratidão de seu pai, doou mais tarde algumas terras. Como eco da sua passagem por Tunis, ficou a notícia, dada pelo notável astrónomo italiano Ricci de que ali se encontrou com o célebre hebreu e dêle recebeu lições. Os continuadores de Zacuto e José Vizinho na obra de aplicação da Astronomia à Náutica Depois de Zacuto e José Vizinho, ocuparam se com sucesso da arte e da ciência de navegar Duarte Pacheco Pereira e João de Lisboa, em obras que foram recentemente publicadas, e Francisco Faleiro, em um livro impresso em 1535 em língua castelhana. Vamos aqui reproduzir, com ampliações e melhoramentos, o que a respeito dêstes portugueses célebres escrevemos nos nossos Panegíricos e Conferências. Duarte Pacheco era descendente de Diogo Pacheco, um dos assassinos de D. Ines de Castro, e foi uma das maiores figuras da Epopeia marítima lusitana. Estavam nêle associados o alto espírito do filósofo, a sagacidade do diplomata, a valentia do guerreiro e o ânimo do nauta, cujas funções variadas exerceu. Negociou hàbilmente o tratado de Tordesilhas, explorou as costas da Guiné, atravessou o Atlântico em missão secreta que lhe confiou D. João II e foi um dos heróis das conquistas da Índia celebrados por Camões. Deixou-nos num livro notável, intitulado Esmeraldo de situ orbis, os roteiros das viagens que realizou, com a descrição dos regulamentos de navegação de que fêz uso, as coordenadas geográficas que mediu, as observações que fêz sôbre regime das marés, e, espalhados por todo o livro, conceitos de sã filosofia sôbre o estudo da natureza, alvores de uma filosofia científica, livre do escolasticismo então dominante, apropriada aos novos horizontes abertos nas ciências pelas navegações por novos mares e pelas observações de novos fenómenos do mundo. Na parte desta obra relativa aos Regimentos náuticos, nota-se uma modificação importante nas regras para a determinação das latitudes por meio da observação da altura do Sol ao meio dia, que devemos aqui assinalar. Na edição do Regulamento do astrolábio existente na Biblioteca de Munich, anteriormente citado, vêem-se oito regras para aquela determinação, correspondendo quatro ao caso cm que o observador está ao norte do Equador e quatro ao caso em que está ao sul desta linha. Ora, Duarte Pacheco, navegando nos mares equatoriais, teve algumas vezes dificuldade em destinguir se estava ao norte ou ao sul da referida linha. Foi por isso levado a organizar um novo regimento para a solução do problema mencionado, que fôsse independente da situação do observador a norte ou a sul do Equador. Este novo regimento, formado por três regras, que se podem desdobrar em seis considerando separadamente os casos em que o Sol está ao norte ou ao sul do Equador, foi adoptado pelo autor da edição do Regimento do astrolábio existente na Biblioteca de Évora. Para o aplicar basta conhecer os dias do equinócio. O manuscrito que Duarte Pacheco deixou do Esmeraldo só foi divulgado pela imprensa em 1892. O Dr. Luciano Pereira da Silva consagrou a êste livro e ao autor uma notícia notável, publicada na História da Colonização do Brasil de Malheiro Dias, obra já por nós citada. João de Lisboa foi ao mesmo tempo insigne como cosmógrafo e como marinheiro. Pensou e escreveu nas naus em que navegou, que foram o seu observatório. A obra que nos legou, sob o título de Livro da marinharia, é uma colecção notável de escritos relativos a vários assuntos de ciência e arte de navegar, entre os quais assinalaremos um que se refere aos seus estudos sôbre a declinação da agulha magnética e outro que se refere ao emprêgo na náutica da constelação do Cruzeiro do Sul. Esta obra só foi divulgada pela imprensa em 1903. Este marinheiro cosmógrafo merece figurar na história da Geografia física como autor da primeira série de observações regulares para o estudo da distribuïção sôbre a superfície da Terra das linhas de igual declinação magnética, estudo que abriu com a determinação da linha de declinação nula (a que chamou meridiano vero), mostrando que esta linha passa nos Açores, entre a ilha de Santa Maria e a ponta da ilha de S. Miguel, nas ilhas de Cabo Verde, por cima da ilha de S. Vicente, e entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo Frio. Para realizar as suas observações de declinação magnética, empregava um aparelho rudimentar, que se reduzia a uma bússola em cuja caixa estavam abertas duas fendas verticais estreitas, situadas na direcção do diâmetro do prato da bússola que passava pelo zero da escala. Para fazer as observações enfiava a Estrêla polar pelas duas fendas na ocasião da sua passagem pelo meridiano. A agulha magnética marcava-lhe então a declinação pedida. Nos mares austrais empregava um processo análogo, recorrendo às estrêlas da constelação do Cruzeiro do Sul. Na parte da obra de João de Lisboa relativa aos regimentos náuticos, nota-se uma modificação importante nas regras para a determinação das latitudes pela observação da altura meridiana do Sol que devemos também aqui mencionar. Nos .astrolábios então usados o quadrante em que se lia a medida das alturas estava dividido em graus e a origem da divisão estava no diâmetro que se colocava horizontalmente. Ora, João de Lisboa propôs fazer-se aquela medida em meio limbo do instrumento dividido em cento e oitenta partes iguais, e dispostas de modo que as partes correspondentes à origem da divisão e a cento e oitenta fiquem no diâmetro horizontal e na direcção norte-sul. Mostrou que, observando as alturas do Sol com um instrumento assim graduado e orientado, o regimento da determinação das latitudes por meio dêste astro se reduz a duas regras muito simples. Contém ainda o Livro da Marinharia uma longa lista de terras, com a indicação do rumo a seguir para navegar de qualquer delas para as outras e com a indicação do regime das marés na foz de alguns rios. E contém finalmente as indicações habitualmente dadas nos Regimentos de navegação daqueles tempos, as tábuas de declinação do Sol para quatro anos sucessivos e outras quatro tábuas de distâncias do Sol ao Polo para os mesmos anos, aproveitáveis no cálculo das latitudes pelas novas regras que apresentou. Francisco Faleiro era um judeu, natural da Covilhã, que, com seu irmão Rui, acompanhou Fernão de Magalhães, quando êste se retirou para a Espanha, e que foi depois Director da Escola Náutica de Sevilha, onde publicou em língua castelhana uma obra intitulada Tratado de la esfera y del arte de marear. Como o título indica, o livro tem duas partes: a primeira consagrada à descrição da esfera celeste, a segunda ao estudo da arte de navegar. Nos quatro capítulos da Primeira Parte são expostas fantasias de Física peripatética, admetidas naqueles tempos, e quimeras astrológicas em que Faleiro parece acreditar; nos outros capítulos são descritas a Esfera celeste e os seus movimentos de um modo elementar e simples, apropriado aos pilotos. Serviu de modêlo a esta parte do livro o tratado De sphera de Sacrobosco, mas Faleiro ficou atrás do célebre monge inglês. A Segunda Parte do livro é mais importante do que a primeira e serviram-lhe em parte do modêlo, para a compor, os Regimentos das navegações portuguesas de que anteriormente falámos, mas os assuntos comuns são nela melhor expostos do que naqueles Regimentos. Entre as doutrinas novas que encerra, notam-se uma colecção de preceitos práticos para dirigir os navios no mar e a descrição e uso de um instrumento para determinar a declinação da agulha magnética. O instrumento a que acabamos de nos referir, mais perfeito do que o de João de Lisboa há pouco mencionado, reduz-se a um prato circular graduado, que se coloca horizontalmente, a uma agulha magnetizada que se move à roda do centro do prato e a um fio de arame tendo a forma de semi-círculo com diâmetro igual ao do prato, que se coloca verticalmente e de modo que a sua projecção sôbre o prato passe pelo seu centro e pela origem da sua divisão. Colocando êste instrumento de modo que o fio de arame fique no meridiano do lugar, a sua sombra ao meio dia é uma recta que faz com a direcção da agulha um ângulo igual a declinação magnética. Surpreende ver nesta obra de ciência duas páginas consagradas à Astrologia, onde se fala da influência de Saturno sôbre os melancólicos, de Venus sôbre os fleugmáticos e de outras quimeras bebidas na Sintaxe astrológica de Ptolomeu. É que, no tempo em que foi escrita, estava muito enraizada no espírito do povo inculto e mesmo de muitas pessoas cultas a crença na influência dos astros sôbre o que se passa na terra, quer no domínio físico, quer no domínio animal e vegetal. Não há que estranhar; tinham sido sumos sacerdotes de tais crenças Aristóteles e Ptolomeu. Este livro de Faleiro é muito raro, e por isso Joaquim Bensaúde o fêz reproduzir pela foto-gravura na sua Collection de documents para a história das navegações portuguesas. Convém assinalar também neste lugar o Reportório dos tempos de Valentim Fernandes, tradução em português de um livro, com o mesmo título, escrito em castelhano por André Ly de Saragoça, mas aumentada, melhorada e adaptada pelo tradutor às conveniências do nosso pais. Contém êste livro, além de informações úteis ao clero para fixar os dias das festas móveis, ao agricultor sôbre as épocas para as sementeiras, e aos astrólogos para os diversos fins da sua indústria, informações interessantes sôbre a história das divisões do tempo e os regulamentos que os pilotos precisavam conhecer para navegar, tirados dos Regimentos náuticos anteriormente mencionados. Teve êste livro onze edições, sendo a primeira de 1518. A edição de 1563 foi reproduzida pela fotogravura na Collection de documents para a historia das navegações portuguesas publicada por Joaquim Bensaúde e forma o tômo sétimo desta preciosa colecção. Os regulamentos náuticos desta edição foram extraídos da edição do Regimento do astrolábio existente em Évora e as tábuas de declinação do Sol que se encontram nêle, foram extraídas do Almanaque de Zacuto pelo aritmético Gaspar Nicolas, de que brevemente nos ocuparemos. Não há nas obras e regulamentos náuticos mencionados nas páginas anteriores invenções de Matemática que a história desta ciência tenha de registar. Os seus autores, práticos insignes, empregaram instrumentos e métodos antigos que fizeram reviver e frutificar, simplificando os instrumentos e traduzindo os métodos com grande acêrto em preceitos práticos. Estes métodos e aqueles instrumentos encontravam-se nas obras dos geómetras e astrónomos gregos, árabes e judeus, principalmente nas obras de Ptolomeu e nos Libros del saber de Astronomia de Afonso X. No primeiro período da historia das Matemáticas em Portugal, o período da sua formação, que acabamos de considerar, o Infante D. Henrique entre os pilotos de Sagres e D. João 11, no meio dos seus cosmógrafos, fazem lembrar Afonso X de Castela entre os seus astrónomos em Toledo. Mas entre aqueles grandes portugueses e o sábio monarca castelhano há diferenças essenciais. Afonso X quási se esqueceu do seu reino, prêso pela intensidade do seu amor às ciências; D. Henrique e D. João, patriotas e cristãos fervorosos, procuraram tirar delas proveito para a dilatação dos domínios de Portugal e da cristandade. Estes olhavam para os mares tenebrosos e procuravam penetrar nos seus segredos; Afonso olhava para o alto, para o infinito, e procurava desvendar mistérios do Cosmos. O monarca e o infante português pediam ao astrolábio que lhes ensinasse a navegar na amplidão dos oceanos; o rei espanhol pedia-lhe que lhe ensinasse o caminho que os astros seguem nos seus complexos movimentos na imensidade dos céus. Mas, trabalhando para Portugal e para a Cristandade, D. Henrique e D. João trabalharam também para as ciências. Como dissemos em outro lugar, «as grandes viagens do século XV e XVI tiveram sôbre as ciências influência notável. A Astronomia, que na Idade-Média se aplicava só à indústria astrológica, teve na Náutica uma aplicação sã e digna. Traçou-se nas linhas gerais o mapa da Terra. Observaram-se as correntes marítimas. Notou-se o regime das mares em vários portos. Com a agulha de marear estudou-se o magnetismo terrestre. Observaram-se novos fenómenos físicos e novas formas de fenómenos conhecidos. Viram-se no Céu novas constelações e na Terra novas raças, novos animais, novas plantas e novas formas de vida». Com estas observações começaram os Portugueses a estender o estudo da Natureza para além dos limites a que o tinham levado os Helenos e os Árabes com observações feitas sòmente no velho mundo. |