nº12
ISSN 0870-7669 Junho
de 1988
Folha Informativa
do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"
REFORMA DO SISTEMA EDUCATIVO
O Centro de Matemática da Universidade de Coimbra (INIC) através da sua linha nº6 (História e Metodologia da Matemática), onde se integra o Projecto "Computação no Ensino da Matemática, promoveu uma série de debates sobre o futuro do ensino da matemática nos diversos graus de ensino, tendo como pano de fundo a reforma do sistema educativo. O debate tomou como ponto de partida os diversos documentos que a Comissão de Reforma do Sistema Educativo tem divulgado publicamente. Cada um dos debates, moderado pelo responsável da linha nº6, Prof. Dr. Jaime Carvalho e Silva, foi introduzido por um orador convidado, e o conteúdo desta intervenção juntamente com um resumo dos debates foi enviado à referida Comissão e publicado no "nonius".
O terceiro debate teve lugar no dia 23/3/1988, e teve como tema
Acesso ao Ensino Superior e Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo
É relativo a esse debate que publicamos a intervenção inicial do Prof. Dr. José Vitória, assim como um resumo do que foi dito no debate. Este resumo não representa de modo nenhum uma conclusão do debate, pretende apenas divulgar as posições expressas pelos diversos participantes.
Intervenção inicial do Prof. Dr. José Vitória
I. Acesso ao Ensino Superior
1. O documento em apreciação:
1.1 Tem uma parte introdutória bem formulada, onde expõe a filosofia de base dos autores; não esconde que o problema excede o âmbito do Ministério da Educação; liga o acesso (e a admissão) ao Ensino Superior às condições objectivas do nosso País e às condições subjectivas que determinam as escolhas dos candidatos.
Porém, quanto a mim, essas preocupações não aparecem de forma manifesta, operacionalizada, no Projecto de Diploma Legal que regerá a admissão dos alunos ao Ensino Superior.
1.2 Além duma parte introdutória e duma proposta de decreto-lei (sobre o acesso ao ensino superior), o documento apresenta três propostas de Despacho:
(Proposta de) Despacho A:
Determina que dentro das verbas atribuídas ao ensino superior seja cativada uma percentagem para permitir o alargamento do número de vagas para a primeira matrícula no ensino superior universitário;
(Proposta de) Despacho B:
Determina que seja feita programação, com definição de encargos, a prazo de cinco anos, da capacidade de acolhimento de alunos pelo ensino superior politécnico, a fim de serem atribuídos meios que permitam a expansão do número de vagas para primeira matrícula.
(Proposta de) Despacho C:
Determina que seja feita programação, com definição de encargos, a prazo de cinco anos, da capacidade de acolhimento de alunos pela Universidade Aberta, a fim de serem atribuídos meios para aumento do número de vagas para primeira matrícula no ensino superior.
1.3 Tem ainda uma nota final respeitando uma reestruturação do Gabinete Coordenador
do Ingresso no Ensino Superior, em que:
a) As sua actuais atribuições -- praticamente agente de colocação dos candidatos -- passariam em grande parte para o conjunto das secretarias das instituições de ensino superior.
b) As suas novas atribuições passariam a ser de: 1) Informação e Acolhimento; 2) Orientação; 3) Coordenação.
2. Na parte que antecede os projectos de Decreto-Lei e de Despachos, o documento:
2.1 Refere a complexidade do problema do acesso ao ensino superior em todo o mundo (porém, daí em diante, preocupa-se exclusivamente com Portugal e o resto da Europa -- Europa que, na óptica dos autores se resume à Europa Capitalista --; é claro: a Europa é também Socialista e lá também há preocupação com os problemas do Ensino!...).
2.2 Distingue os conceitos de acesso e de admissão, sendo o acesso ( do domínio da Sociologia da Educação) o que designa o processo pelo qual os candidatos ingressam como estudantes no ensino superior, considerando os mecanismos que conduzem os aspectos quantitativos e o conceito de admissão (do domínio da Política de Educação) e designa as regras e os procedimentos que determinam as formas de acesso e influenciam, por consequência os aspectos qualitativos.
2.3 Fala de sistemas selectivos e abertos e refere o que se verifica em vários países.
2.4 Aponta que a questão fulcral do acesso ao ensino superior é constituida essencialmente pela articulação entre o sistema escolar secundário e a formação superior, mas depende fundamentalmente da importância e do papel atribuídos a essa formação: manutenção do "status social", "ascensão social", mobilidade social, etc,... Daí mencionar os reconhecidos inconvenientes do numerus clausus e do seu anacronismo. Postula uma expansão progressiva do numerus clausus -- que diz ser conceito ultrapassado em Portugal e na Europa.
2.5 Quanto ao numerus clausus, como já referi, considera-o ultrapassado, faz o seu historial, e referem os autores que tal já se prefigurava antes de 1974, numa altura em que já, dizem, havia uma certa integração entre os ramos complementares do Ensino Liceal e Técnico.
3. O documento favorece abertamente uma expansão do numerus clausus -- tendo porém em conta o binómio expansão/qualidade.
Para isso:
3.1 Diz que tem de haver aumento de investimento -- o que pressupõe determinação política (pois há quem considere que o ensino superior já é privilegiado...)
3.2 Diz que o ensino secundário tem de ser terminal e ao mesmo tempo propiciador do prosseguimento de estudos.
3.3 Diz que tem que haver reestruturação do leque de cursos superiores (novos cursos, novos tipos de estabelecimentos de ensino,etc.)
3.4 É cauteloso no que se refere às Ciências e Tecnologias -- há que tomar precauções quanto ao estabelecimento de uma sólida e eclética base de conhecimentos (propõe formação de base alargada e posterior formação profissionalizante).
4. O documento mostra de modo transparente que os seus autores têm consciência dos custos sociais da não entrada de candidatos no ensino superior (porém, como já disse, isso não aparece reflectido no projecto de Decreto-Lei).
4.1 Os autores entendem que se deve ter em conta o contexto nacional e internacional, as previsões do mercado de trabalho, o desemprego de licenciados, etc.
4.2 Ao caracterizarem o problema fazem-no de forma bem escrita -- pelo que me limito a transcrever a página 39:
"Feita a análise do actual esquema de acesso ao ensino superior ele revela-se, indubitavelmente, desactualizado quanto à sua filosofia e objectivos de base e incorrecto quanto ao esquema de funcionamento. Por conseguinte, numa perspectiva temporal de extrema urgência e de elevada prioridade, deve ser adoptada uma estratégia de franca expansão do "numerus clausus", enquadrada em finalidades últimas de desenvolvimento e de justiça social e satisfazendo ao requisito de salvaguardar a qualidade dos estudantes admitidos em base tecnicamente adequada.
Face às considerações anteriormente apresentadas, verifica-se que a solução ideal para o acesso ao ensino superior ultrapassa o âmbito do Ministério da Educação. Porém, algumas propostas que se insiram exclusivamente no referido âmbito devem ser avançadas. Em termos esquemáticos, são as seguintes as características a que obedece a solução projectada:
FINALIDADES
- Contribuir para:
- Desenvolvimento (no plano nacional)
- Justiça (nos planos social e individual)
ESTRATÉGIA
- Expansão do "numerus clausus"
REQUISITOS
- Salvaguarda da qualidade dos estudantes admitidos
- Precisão técnica e adequação à selecção por mérito
- Urgência de lançamento e prioridade na atribuição de meios."
5. Quanto ao Projecto de Decreto-Lei sobre o Acesso ao Ensino Superior, do articulado retiro o seguinte:
5.1 Concursos:
São nacionais; há cursos e grupos de cursos com disciplinas comuns; os júris são nacinais; o concurso só é válido para o correspondente ano e leque de opções.
5.2 Júris:
Presidente: um professor universitário.
Responsáveis por júris de disciplinas: um professor universitário que escolhe uma equipa formada por professores do ensino superior e profissionalizados do ensino secundário.
Questões:
Q1: Para onde vão os candidatos que não entram?
Q2: Que pressupostos políticos subjazem a este documento? Vamos mesmo desenvolver-nos? Vamos ter independência na formulação do nosso destino colectivo, logo na escolha do nosso modelo de desenvovimento?
Q3: Com este projecto de Decreto-Lei vamos ter alunos:
motivados, não frustrados, empenhados?
Q4: Que vão fazer tais alunos, depois de diplomados?
RESPOSTA (a minha, claro): Que projecto político queremos para o nosso País? Quando o soubermos, encontraremos talvez as respostas. (Eu não as tenho!...)
Observação final
Cada universidade nada tem a dizer ao modo como selecciona os seus alunos.
Aqui pouco se difere do que existe:
- por exemplo no caso do nosso Departamento quase que bastava que um aluno não pudesse entrar com negativa a matemática!
Questões:
1. É exequível que cada Universidade faça as suas provas
de admissão?
2. É justo que cada Universidade escolha os seus alunos? Há discriminações
sociais?
II. Projecto de Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo
1. Este Projecto é:
Bastante detalhado, apresentando-se dividido em vários capítulos e secções, como segue, a traços largos:
Capítulo I: Princípios Fundamentais
Secção I: Enquadramentos e definições
Secção II: Atribuições do Estado
Capítulo II: Regime de Criação, de Funcionamento, de Concessão de Graus e de Extinção
Secção I: Requisitos de Criação e de Funcionamento
Secção II: Reconhecimento e Atribuição de Graus
Secção III: Constituição de Universidades e Institutos Politécnicos
Secção IV: Disposições Complementares
Secção V: Encerramento das Instituições e suspensão dos cursos
Capítulo III: Organização e Funcionamento das Instituições
Secção I: Orgãos Responsáveis Secção II: Regras Gerais
Secção III: Corpo Docente
Secção IV: Corpo Discente
Capítulo IV: Apoio Financeiro e Apoios de Cooperação
Capítulo V: Disposições Penais
Capítulo VI: Disposições Finais e Transitórias
2. O documento:
2.1 Considera demasiado restritivo colocar-se o Ensino Particular e Cooperativo como apenas de caracter supletivo do ensino público.
2.2 Aponta razões históricas para que, quase só o Estado, tenha responsabilidades pelo Ensino Superior; porém diz que o desenvolvimento moderno não se compadece com certas restrições pelo que -- no sua óptica -- se impõe ao Sector Particular e Cooperativo que desempenhe papel dinamizador criando instituições de qualidade de ensino e investi-gação, criando-se, assim, simultaneamente, condições que concretizem a espressão constitucional de "liberdade de aprender e de ensinar".
2.3 Procurou-se não só definir ou clarificar todo um quadro legal, como enunciar os grandes princípios que devem nortear a acção do Estado, e as iniciativas sociais no domínio do ensino superior privado, como uma componente do Sistema Educativo Português.
2.4 É cauteloso este Primeiro Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo:
Charneira entre uma realidade nem sempre exemplar e princípios gerais que têm um consenso de partida, mas que necessitam de ser testados na prática.
2.5 Propõe instituições que se dediquem de forma organizada e sistemática à investigação e ao ensino de nível superior; aponta regras que garantam a viabilidade da instituição (finanças, edifícios, salubridade,etc.)
2.6 Pressupõe para a criação de Instituições de Ensino Superior Particular e Cooperativo, princípios subjacentes como independência das instituições, e também a regra da qualidade de Ensino.
3. Como disse, o documento é bastante detalhado, diz quem pode propor-se à criação de Instituições de Ensino Superior Particular e Cooperativo (A palavra Cooperativo poucas vezes aparece, pois, logo nas primeiras páginas se diz: "Onde se lê 'Ensino Superior Particular' deve ler-se 'Ensino Superior Particular e Cooperativo' ").
4. A questão fundamental que se me põe é a seguinte:
É (ou devia ser) ou não o Ensino Público dominante? O Ensino Privado deve ou não ter apenas caracter supletivo do Ensino Público?
5. Com o presente projecto atingir-se-ia um completo liberalismo no tocante ao Ensino Superior.
Mais uma vez eu termino:
-- Trata-se de questão fundamentalmente política que a todos diz respeito.
(Um áparte: Para mim -- o ensino superior particular e cooperativo (pelos grandes meios que envolve) ficará em mãos poderosas que, parece-me, pouco se importarão com o dispositivo constitucional de liberdade de ensinar e aprender. Para mim, tal ensino é discriminatório quer para docentes quer para discentes (por diferentes razões) ).
Resumo das posições assumidas pelos participantes no debate
1ª parte - Acesso ao Ensino Superior
Os participantes manifestaram-se na generalidade contra o projecto apresentado, e sublinharam a contradição entre os considerandos iniciais (com os quais concordaram genericamente) e os texto do diploma proposto.
Os participantes consideraram que as diversas Faculdades deveriam ter uma grande intervenção na selecção dos alunos que admite coisa que nem sequer é aflorada no Documento em referência, o que muito estranharam.
Um dos participantes sublinhou que sendo o "numerus clausus" um mal necessário toda a gente deveria ter direito a estudar, pelo que deveria haver lugar para todos. Afirmou ainda que, concordando com a necessidade de um exame de admissão a nível nacional, deveria ser contabilizado o passado escolar do candidato (este último ponto foi referido por vários outros participantes). Afirmou ainda que o exame de admissão deveria ser elaborado por equipas mistas, mas os programas do ensino secundário deveriam ser adequados à entrada na Universidade.
Vários participantes consideraram que haveria que esclarecer a contradição entre o acesso ao ensino superior baseado no ensino secundário e o carácter terminal que o "Documento Frausto" atribui ao ensino secundário.
Um participante considerou que o principal problema do "numerus clausus" era o de o ensino superior ser a única alternativa para muitos milhares de jovens, o que "engarrafa" o "numerus clausus".
Um dos participantes considerou que haveria que desenvolver o ensino politécnico, pois além de ser um sector em carência no nosso País, seria o único modo de resolver minimamente o problema do "numerus clausus".
Vários participantes consideraram que o exame de admissão não se deveria limitar a uma mera avaliação conjuntural de conhecimentos mas que deveria constituir uma verdadeira "selecção/orientação", que incluísse também avaliação de características do candidato segundo objectivos ligados à profissão a que se dirige. Um dos participantes citou como exemplo o "exame de maturidade" na Bélgica que inclui entrevistas com professores e com pessoas ligadas ao mundo do trabalho; neste ponto um dos participantes lembrou que o número de técnicos de orientação e psicopedagogia actualmente existentes é insuficiente, mas que tal seria ultrapassado com um adequado investimento na formação.
Um participante considerou que é muito difícil que entrem todos no ensino superior (apesar de o documento apontar para isso), mas, entretanto, que alternativas há para quem não entra? Apontar-se-á para o encurtamento dos cursos? Recentemente, quando os cursos foram encurtados de 5 para 4 anos, a generalidade dos Departamentos e Faculdades manifestaram-se contra!
Outro partcicipante considerou que a dicotomia liceciatura/bacharelato é uma falsa dicotomia; considerou que o que interessa não é diminuir a duração dos cursos mas sim haver mais cursos e cursos mais alargados; o acesso deveria ser liberalizado garantindo-se que cada um atingiria o nível de que é capaz; considerou que a qualidade está ligada à discriminação, mas a selecção deveria estar tanto quanto é possível ligada à qualidade; considerou ainda que toda a gente deveria ter direito a estudar mas isso não implica que estudem todos o mesmo.
Os participantes consideraram que a formação científica de base deveria ser alargada(íssima) à semelhança aliás do que vem sendo defendido noutros países, nomeadamente no que diz respeito à base matemática dos diversos cursos (os de índole científica sobretudo, mas não só).
Um participante considerou mesmo que os diversos cursos deveriam ter uma formação de índole geral cada vez maior, até porque o mercado de trabalho está em constante mutação; afirmou que por exemplo o perfil de uma licenciatura em matemática é demasiado estreito não contemplando áreas como a filosofia das ciências e a epistemologia da ciência, que contribuem para dar uma formação mais sólida sobre a disciplina.
2ª parte - Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo
Os diversos participantes não exprimiram opiniões nem muito a favor nem muito contra o Documento em apreciação.
Os participantes exprimiram receios de as Universidades Privadas degradarem ainda mais o nível do Ensino Universitário, à semelhança do que aconteceu num futuro recento em Portugal e à semelhança do que acontece no Brasil.
Um participante referiu que o documento é extremamente miudinho no controle dos estabelecimentos de Ensino Superior Privado, com exigências que não faz, por exemplo, às Universidades estatais. Outro participante pôs a tónica sobre a prática desse controlo, nomeadamente expressando dúvidas sobre se as estruturas do Ministério da Educação terão capacidade de o efectuar.
Um participante considerou que as Universidades Privadas, mesmo supletivas das Universidades estatais, iriam introduzir uma dinâmica de competição com o ensino do estado, o que seria muito positivo.
Outro participante criticou o facto de a política recente de criação de cursos nas Universidades Privadas não atender às necessidades dos País e ser ainda mais criadora de desemprego de licenciados, nomeadamente com os cursos de história e direito. Será que assim vai continuar?
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