nº4
ISSN 0870-7669 Abril
1987
Folha Informativa
do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"
A MÁQUINA CALCULADORA ELECTRONICA(*)
por T. R. Kennedy Jr.
(*) Relatório do «United States Information
Service» (Secção de Imprensa), do qual
foi gentilmente cedida uma cópia à Gazeta de Matemática pelo
Prof. Mauro Picone,
Director do «Istituto per le Applicazioni del Calcolo», de Roma.
O Ministério da Guerra dos Estados Unidos tornou recentemente conhecido aquilo que foi um dos mais importantes segredos da guerra, uma máquina maravilhosa que permite efectuar cálculos matemáticos até agora demasiado difíceis ou laboriosos, com velocidades que podem obter-se unicamente com dispositivos electrónicos. Os peritos que viram funcionar pela primeira vez esta máquina, declararam que ela é o instrumento com o qual será possível reconstruir completamente sôbre novas bases as questões científicas.
Estes instrumentos, foi dito entre outras coisas, poderão revolucionar a engenharia moderna, introduzindo uma era nova no campo dos projectos industriais, e eliminar a maior parte do lentíssimo e custoso desenvolvimento por tentativas que era actualmente necessário na planearão das máquinas mais complicadas. Até hoje as subtis dificuldades matemáticas têm muitas vezes forçado os autores dos projectos a aceitar para os seus problemas soluções que não são as melhores, com custos mais elevados e um mais lento progredir da técnica.
A nova maravilha de velocidade electrónica, que se chama «Eniac», elimina virtualmente o tempo necessário para realizar tais estudos. Os seus inventores asseguram que ela é capaz de resolver um problema matemático num tempo mil vezes inferior àquele até agora exigido. O «Eniac», conhecido mais exactamente por «integrador e calculador numérico electrónico», não tem nenhuma peça mecânica em movimento: nada me move dentro das suas 18 mil válvulas termiónicas e ao longo dos seus vários quilómetros de fio-a não ser os pequeníssimos electrões.
Há contudo aparelhos mecânicos associados à máquina que traduzem ou «interpretam» a linguagem matemática do homem em termos compreensíveis pelo «Eniac» e viceversa. O «Eniac» foi inventado e aperfeiçoado por dois jovens cientistas da Escola Moore de engenharia electrotécnica da Universidade de Pennsylvania. São eles o Dr. John William Mauchly, de 38 anos, professor de física e «dilettante» de meteorologia, e o seu assistente J. Presper Eckert Jr., de 25 anos, que dirigiu a execução do projecto. Êles foram também assistidos por muitos outros professores da escola.
Naquele período, a arma de artelharia do Exército dos Estados Unidos procurava uma máquina capaz de preparar um grande número de dados balísticas necessários para a compilação das tábuas de tiro das novas armas de ofensiva destinadas ao ultramar. Sem as tábuas de tiro as peças não podiam ser usadas com eficácia.
O capitão H. H. Goldstine, matemático adido ao serviço técnico da artelharia, teve notícia do projecto do Dr. Mauchly, falou dêle ao coronel Paul N. Gillon do polígono de Aberden (Maryland), obteve deste o apoio entusiástico, e o projecto poude assim ir avante com o auxílio do Estado. Trinta meses depois a máquina estava completa e em função, e executava com facilidade aquilo que só homens treinados no cálculo podiam fazer com grande fadiga. O «Eniac» será brevemente instalado em Aberden de modo permanente.
O «Eniac» resolveu em duas horas um «dificílimo problema de «guerra» que foi introduzido no seu complicado circuito apenas a máquina foi completada. O mesmo trabalho teria normalmente ocupado 100 hábeis calculadores por um ano inteiro.
Esta máquina capaz de resolver tão difíceis problemas pertence àquela categoria que os peritos de cálculo numérico chamam dos calculadores «digital». Fundamentalmente, ela não faz nada mais do que somar, subtrair, multiplicar e dividir. Ela pode efectuar estas operações gerando impulsos eléctricos cuja frequência, rigorosamente controlada, é de 100.000 impulsos por segundo, e executa uma operação em cada vinte impulsos, conseguindo por isso executar, por exemplo, 5.000 adições por segundo.
Visto que todos os problemas matemáticos, por mais abstrusos e complicados que sejam, podem ser resolvidos com as quatro operações (1), desde que haja bastante tempo disponível, o «Eniac» pode abreviar este processo, eliminando o factor tempo, e dar uma resposta a qualquer problema. Assim afirmam os inventores.
Mas esta máquina pode fazer ainda muito mais. Ela é dotada da faculdade humana da «memória» para executar uma sucessão de operações na ordem necessária. Ela tem mesmo elementos de «controle» e pode, dentro de certos limites, determinar automaticamente a sucessão conveniente das operações. Ela pode por exemplo confrontar dois números e, segundo a grandeza deles escolher um dos dois procedimentos possíveis.
Como primeira coisa, ela recebe os dados iniciais do problema de uma série de cartões perfurados de maneira a indicar as «condições iniciais e aos limites do problema». Um dos «cérebros» do «Eniac» encarrega-se de realizar esta operação. Quando o problema foi fixado mediante perfurações sobre cartões, estes são introduzidos através duma fenda num «dispositivo de leitura». Agora não temos mais do que sentar-nos e esperar os resultados. Algumas vezes será necessário esperar muito tempo; mas o «Eniac» resolve a maior parte dos problemas em poucos segundos.
Um elemento chamado «Master programmer» vigia todo o cálculo e assegura que seja levado a termo.
O «Eniac» compõe-se de quarenta painéis da altura de cêrca de três metros, todos cobertos de manípulos e quadrantes. Premindo os manípulos, acendem-se luzes róseas de lâmpadas de néon sobre numerosos painéis que apresentam impressos os números próximo das lâmpadas. O espaço para as demonstrações práticas no qual é instalado o «Eniac» é de cêrca de dez metros por vinte e é ocupado quási inteiramente pela máquina. O Dr. Arthur W. Burks da Escola Moore que dirigiu a demonstração prática, explicou que as quatro operações fundamentais da aritmética permitem resolver quási todos os problemas desde que sejam desenvolvidas com rapidez suficiente. «Prestem atenção, podem não se aperceber sequer da operação», disse o professor premindo um botão para elevar o número 97376 à potência de expoente 5000. A maior parte dos presentes não se apercebeu sequer do que se passou: a operação foi resolvida num abrir e fechar de olhos.
Para demonstrar a extrema velocidade do «Eniac»> o Dr. Burks desta vez reduziu a velocidade da operação da máquina de mil vezes e repetiu o problema. Se os observadores tivessem tido a paciência de esperar 16 minutos e um têrço, eles teriam podido ler a resposta sobre os indicadores de néon. A operação sucessiva foi uma multiplicação: 13975 por 13975; o produto apareceu imediatamente: 195.300.625. Num décimo de segundo foi obtida uma tábua de quadrados e de cubos; depois uma tábua semelhante de senos e cosenos. Todo o trabalho foi realizado e os resultados foram impressos numa grande fôlha, antes que a maior parte dos visitantes tivesse passado duma sala à outra.
Foi depois introduzido no «Eniac» um difícil problema que teria exigido várias semanas de trabalho da parte de um hábil calculador: o «Eniac» resolveu-o em quinze segundos.
Todos os problemas devem primeiro que tudo ser decompostos nos seus elementos essenciais, registados sobre cartões perfurados e feitos passar através dum dispositivo chamado «leitor», construído pela «International Business Machines». O «leitor» traduz a linguagem matemática naquela própria do «Eniac» e vice-versa; feito isto, a máquina está pronta para entrar em acção. Os valores numéricos que pertencem à vasta categoria das «constantes» são interpeladas todas as vezes que seja necessário. Para isto, o «Eniac» faz intervir quatro espécies de «memória».
Normalmente o «Eniac» efectua operações com números de dez algarismos, mas pode com igual facilidade operar com números até vinte algarismos chegando assim a resultados de dimensões astronómicas.
Na construção da máquina foram empregadas mais de duzentas mil horas de trabalho; ela contém mais de meio milhão de soldaduras e custa cerca de 400 milhares de dólares. Ela absorve para o próprio funcionamento uma quantidade de electricidade três vezes superior àquela exigida pelo funcionamento de uma das maiores instalações radio-transmissoras dos Estados Unidos.
Até há três anos o «Eniac» era sómente uma ideia; hoje êle representa a maior maravilha das aplicações electrónicas. O Dr. Mauchly, tornou-se professor catedrático da Escola Moore em 1941, na esperança de vir a realizar o seu projecto e a revolucionar a arte de efectuar cálculos complexos com grandes números. Ele admitia, por exemplo, que se pudesse vir a fazer qualquer coisa que permitisse a previsão do tempo a longo prazo.
No campo das actividades da paz, o Dr. Mauchly prevê não só a possibilidade de efectuar cálculos para a previsão do tempo a longo prazo, mas ainda cálculos para aviação, turbinas a gás, válvulas termoiónicas para microondas, televisão, instalações para a produção de energia, projécteis dotados de velocidade superior à do som, além de estudos cada vez mais rigorosos sobre o movimento dos planetas.
Segundo o que afirmou Goldstine, os cientistas do passado efectuaram montanhas de cálculos, que poderão agora ser em grande parte facilmente levados a termo com o auxílio das máquinas calculadoras electrónicas. Ele salientou como a resolução das equações do movimento, que no passado constituía um obstáculo quase insuperável, e os estudos sobre os aviões e foguetes a alta velocidade sejam «sómente alguns dos campos numerosíssimos que obterão grande vantagem do cálculo electrónico».
O sr. Eckert, por sua vez, previu uma época na qual, tendo à disposição as velocidades de que são capazes os aparelhos electrónicos, se poderão prontamente resolver para fins práticos aqueles problemas que têm sido até hoje irresolúveis porque exigiam a vida inteira dum homem para a sua resolução:
«A velha era está declinando: aquela nova das velocidades electrónicas está-se aproximando, e nós poderemos começar a tratar os problemas científicos, baseando-nos sobre novas concepções».
Tradução do italiano de J. Sebastião e Silva
(1 ) Na sua fase final, bem entendido, porque a primeira parte da resolução (aquela pròpriamente conceptual), nada tem que ver com a execução material de operações aritméticas (nota do T.)
NOTA
O relatório precedente fala de uma nova maravilha de técnica - uma daquelas prodigiosas criações humanas que tocam as raias do inverosímil. Devemos, todavia, sublinhar que, ao publicar este relatório, tivemos como principal objectivo pôr em evidência um facto que muita gente parece ainda obstinada em não reconhecer: o papel fundamental da Matemática no mundo de hoje e de amanhã.
Há ainda em Portugal quem pregunte: «Para que serve a Matemática?» E é também frequente ouvir entre nós esta outra pregunta: «Pois ainda há que descobrir em Matemática?»
Ora a verdade é que, na época em que vivemos, a Técnica está pondo à Matemática problemas cada vez mais difíceis, que a obrigam a um desenvolvimento contínuo, a uma incessante renovação de métodos e a imprevistas ampliações de domínios. Parece ultrapassada aquela fase de Matemática característica do século passado -a fase dos belos teoremas, das belas propriedades, das elegantes demonstrações - em que o investigador, à maneira dos gregos, fazia a matemática pela matemática, com preocupações de puro artista.
Hoje as necessidades são outras, e o homem não tem já tempo para se deter em locubrações platónicas, voltando as costas à realidade. De resto, é sobretudo tornando-se útil que a Ciência se torna bela. O que não quere dizer que deva cessar por completo a actividade puramente especulativa: ela conduz, por vezes, a resultados concretos imprevistos. Mas para tudo há uma justa medida, e é fora de dúvida que um completo alheamento da realidade conduz, a la longue, a uma completa esterilidade.
Em compensação, que riqueza de sugestões, que impulsos vigorosos, nos vêm a cada passo do mundo empírico! «La physique» dizia Poincaré, «ne nous donne pas seulement 1'occasion de résoudre des problèmes ; elle nous aide à en trouver les moyens, et cela de deux manières: elle nous fait pressentir la solution; elle nous suggère des raisonnements». E mais adiante: «Deviner avant de démontrer ! Ai-je besoin de rappeler que c'est ainsi que se sont faites toutes les découvertes importantes ?»
«A Matemática é uma ciência experimental» -proclamou HEAVISIDE, ao lançar o cálculo simbólico. E, se houve exagêro na sua posição, ela foi contudo utilíssima como reacção à atitude dos matemáticos sérios que o criticavam. Que importava que o seu método não estivesse sancionado pela teoria - se a prática lhe vinha dar razão? O aperfeiçoamento lógico era certamente necessário: era mesmo indispensável. Mas êsse aperfeiçoamento veio depois, a pouco e pouco, com amplas repercussões em todo o edifício matemático.
Vem ainda a propósito falar aqui do «Istituto per le Applicazioni del Calcolo» de Roma, interessantíssima criação do Prof. Picone - a quem devemos a possibilidade de publicar aqui o relatório precedente. Numa actividade de mais de vinte anos, têm sido resolvidos neste Instituto inúmeras questões provenientes dos mais variados domínios da Ciência e da Técnica: electrotecnia, hidráulica, aeronáutica, construções navais, economia, estatística, actuariado, biometria, agronomia, etc., etc. Ali o matemático encontra sempre um rico manancial de ideas que não se encerram de nenhum modo num estreito círculo utilitário - que podem ser o ponto de partida para investigações de longo fôlego. E assim é que, a par duma «équipe» de hábeis calculadores, o Prof. Picone tem podido formar um escol de investigadores que se contam entre o que há de mais prometedor na moderna geração matemática italiana.
Os institutos dêste género estabelecem um contacto com a realidade, em virtude do qual a produção matemática é apreciada não semente do ponto de vista da veracidade ou falsidade, mas sobretudo do ponto de vista do seu maior ou menor valor efectivo, em relação a nós, homens, que criamos os símbolos para que êles nos sirvam, e não para que êles se tornem fins a si mesmo. Pretende-se muitas vezes ter resolvido um problema, apresentando um processo de resolução que depois, passando à prática, se revela inaplicável pela massa astronómica de cálculos que requere. Abundam assim, na Análise clássica, as elegantes demonstrações de existência, que bem magra satisfação podem dar a quem não queira permanecer eternamente numa atitude contemplativa.
Todavia a máquina calculadora electrónica vem modificar enormemente êste estado de coisas, multiplicando por mil, segundo se diz, as possibilidades humanas de efectuar cálculos numéricos. Dêste modo, muitos procedimentos considerados até hoje corno inexequíveis passam a ter viabilidade - o que vem abrir à Ciência o à Técnica perspectivas inimagináveis.
Infelizmente, o anterior comunicado fala sobretudo de aplicações bélicas da máquina electrónica - e foi na verdade a guerra que criou o «Eniac», como foi ela que criou a bomba atómica. Mas o mesmo comunicado refere-se a várias outras possíveis aplicações do «Eniac», que nada têm que ver com a guerra.
Uma última conclusão nos parece lícito tirar daqui: a necessidade premente de arejar os nossos métodos e programas de ensino, tornando-os adequados ao espírito da época.
Entrámos numa nova era, que é, feliz ou infelizmente, a era atómica. E devemos abrir os olhos, fazer um esforço sério de adaptação, se não quizermos ficar para sempre agarrados a sombras, no mundo do passado.
JOSÉ SEBASTIÃO e SILVA
Extraído de "Gazeta de Matemática", nº 32, 1947.
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