NONIUS
nș4 ISSN 0870-7669 Abril 1987
Folha Informativa do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"

A PROPÓSITO DE UMA NOTA
por José Sebastião e Silva

Na nota que publiquei no último número da Gazeta de Matemática como comentário ao artigo sobre a máquina calculadora electrónica fui levado, por excesso de vigor na defesa dum ponto de vista, a fazer afirmações demasiado esquemáticas, que não traduzem exactamente a minha maneira de pensar sobre o assunto, e que vou procurar agora corrigir, para que não dêem origem a interpretações erradas.

Primeiro que tudo, convém precisar que a fase dos belos teoremas, das belas propriedades, etc. a que nessa nota me referia, não se estende propriamente a todo o século passado, nem dele é exclusiva. Por outro lado, eu não queria de nenhum modo dar a entender que essa fase tivesse sido pouco fecunda. A verdade é que poucos períodos da história da matemática se podem comparar a esse, em abundância e em variedade de produção. Simplesmente - o é sobre este ponto que eu desejo insistir - uma análise mais profunda dos factos levaria a concluir que as premissas para tão frutuosa actividade tinham sido criadas anteriormente, a partir de questões concretas, mais ou menos ligadas a fins práticos. Qualquer coisa de semelhante ao que se verificou no período helénico, que me serviu de termo de comparação - em que, renegando platònicamente a sua origem humilde como «arte de medir terrenos», a geometria se lançou nos etéreos espaços da especulação pura. E quem é que não reconhece a importância da obra então realizada ? Todos nós sabemos que a ciência moderna é, na sua estrutura nacionalista, um produto do génio grego. Todavia nós devemos pensar que, se porventura, há cinco mil anos, o homem não tivesse tido necessidade de talhar e medir terrenos nas margens do Nilo, talvez os filósofos gregos não tivessem encontrado matéria para as suas magníficas especulações. O certo é que, esgotada a seiva que lhe dera vida, a geometria de PITÁGORAS e de EUCLIDES acabou por se estiolar no seco abstractismo medieval e foi preciso esperar pelo aparecimento da álgebra - forma evoluída daquela «grosseira» arte de contar, própria de comerciantes e de mesteirais - para que a geometria pudesse ressurgir, sob novos aspectos e com novas energias.

Mas também não devemos encarar a evolução da ciência com espírito unilateral. É indiscutível que, reciprocamente, sem o trabalho do cientista puro, mesmo guiado por ideais platónicos, os progressos da técnica teriam sido impossíveis.

Entre duas tendências opostas oscila o pensamento através dos séculos - tendências que na idade média se chamaram realismo e nominalismo, e noutras épocas se chamam racionalismo e empirismo. No decurso da história, ora é uma, ora é a outra destas atitudes que predomina. Aquela fase da matemática a que eu então me referia, corresponde, de certo modo, ao período áureo do nacionalismo científico, que encontrou a sua melhor definição nas célebres palavras de LAPLACE sobre a possibilidade de prever o futuro e de reconstituír o passado, a partir do conhecimento do «estado actual do universo». Hoje, porém, nós atravessamos, na história da ciência, uma zona de viragem, que se prolonga já desde o fim do século passado: os esquemas clássicos tiveram de ser abandonados, novos modelos estão a ser propostas para interpretar os dados da experiência(1). No início do seu famoso livro sobre as funções de linha, VITO VOLTERRA cita uma curiosa interrogação feita por Poincaré ao abordar o estudo da questão dos quanta: «Les lois physiques ne seront-elles plus susceptibles d'être exprimées par des équations différentielles ?». No mesmo livro, VOLTERRA refere-se aos fenômenos em que a memória do passado se conserva e em que portanto o presente dependerá de toda a história de modo que, sendo o tempo contínuo, o presente dependerá duma infinidade de elementos ou de variáveis que são as que individualizam os factos passados; e introduz, para o estudo desses fenômenos, as equações por ele chamadas integro-diferenciais, às quais por sua vez aplica o conceito do função de linha.

 

A fundação da análise funcional, depois ampliada em análise geral, marca o início duma nova era em matemática. O que há de particularmente curioso em tudo isto é que, para resolver questões concretas, seja necessário subir cada vez mais em abstracção. E é precisamente este elevado grau de abstracção que desorienta o leigo, fazendo-o crer que se trata dum afastamento da realidade. De resto, a análise geral é precedida e acompanhada duma intensa actividade crítica e de profundas investigações no campo da lógica pura, as quais, se não constituem propriamente actividade criadora, são hoje no entanto condição sine qua non para que se possa criar alguma coisa de sólido e de potente. É claro que, sendo assim tão elevado o grau de abstracção, mais do que nunca se torna necessário não perder de vista os problemas concretos que deram origem aos conceitos abstractos, de contrário ir-se-à cair fácilmente na pura fantasia.

 

O sentimento estático será ainda e sempre um poderoso guia da investigação; e uma das principais preocupações do professor deve ser precisamente, a de estimular nos seus alunos esse sentimento, fazendo-os aperceberem-se da beleza de certas proposições e da elegância de certos raciocínios. Mas tal não basta ou melhor: tal é uma condição necessária, mas não suficiente, para que o ensino resulte eficaz .

Porque a matemática não é apenas a «música da razão»...

 

(1) Vem a propósito citar que, ainda há pouco tempo, se tratou nos Estados Unidos da constituição de um grupo de insignes matemáticos com o objectivo de estudar os problemas postos pelas novas descobertas sôbre a energia atómica.

 

Extraído de "Gazeta de Matemática", nș 33, 1947.

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