Parte Terceira

A cultura das Matemáticas em Portugal nos séculos XVII e XVIII


Período de decadência e suas causas
Cultura da Matemática no período de decadência (1600-1772)
O ressurgimento da cultura das Matemáticas em Portugal pela reforma da Univ. de Coimbra
A sorte da Ciência e da Filosofia em Portugal depois da morte de D. José I
Monteiro da Rocha
Anastácio da Cunha


Período de decadência e suas causas

Ao abrir o século XVII, Portugal estava sob o domínio de Castela e o povo português dormia e sonhava nas glórias do seu passado. No século XV, a fé levara os Lusos à exploração dos mistérios dos mares, a esperança e a coragem sustentara-os nas suas derrotas difíceis e perigosas por estes mares, a ciência guiara-os como farol para se não perderem na sua imensa vastidão. Depois, no século XVI, com o abatimento produzido pelas riquezas vindas do Levante e do Poente e com os erros funestos do segundo ramo da Dinastia de Avis, principalmente de D. João III, a fé começou a tornar-se fanatismo ou hipocrisia, a esperança e coragem começaram a transformar-se em misérias e desesperos, e a ciência e a filosofia começaram a emmudecer e a escravizar-se.

A-pesar-de tudo isto, na alma da maioria dos Portugueses daqueles tempos estavam, pelo menos latentes, virtudes dos antepassados que aclamaram D. João I. Uma delas era o amor a Pátria, que algumas vezes parecia extinto, mas estava apenas adormecido e despertava quando a viam em perigo. Foi o que sucedeu em 1640, ano em que, levantando-se enérgico e patriota, temperado na adversidade, expulsou o estranjeiro das terras dos seus Avós.

Agora, entrando no assunto especial dêste livro, vejamos o estado da herança em cultura matemática que o século XVI legou ao século XVII, sigamos esta cultura na sua continuação neste século e notemos as influências que tiveram na depreciação daquela herança os erros do, monarcas quinhentistas portugueses.

Aos períodos de formação e de brilho da história das Matemáticas em Portugal, respectivamente considerados na Primeira e na Segunda Parte dêste livro, seguiu-se um período de decadência que se estendeu até à fundação de uma Faculdade de Matemática na Universidade de Coimbra em 1772.

Esta decadência coincidiu com a decadência geral do país e as suas causas vinham actuando de longe, como vamos ver, enumerando-as.

Concorreu principalmente para a decadência da cultura científica em Portugal o êxodo dos Judeus no tempo de D. Manuel I. Este monarca protegeu as Matemáticas, criando uma cadeira de Astronomia na Universidade Portuguesa, que estava então instalada em Lisboa, mas ao mesmo tempo prejudicou gravemente tôdas as ciências, mandando sair do reino os seguidores de Moisés que não quisessem converter-se à fé cristã, obrigando assim numerosos membros de uma raça que naqueles tempos as cultivavam com mais sucesso a abandonar os seus lares e a ir estabelecer outros em terras onde caridosamente os acolhessem.

Saíram então de Portugal os mais dignos, os que não abjuraram das crenças de seus avós, e espalharam-se por diversos países, onde alguns se tornaram ilustres ou foram troncos de descendentes ilustres.

A esta causa da decadência da filosofia e das ciências em Portugal está ligada outra: a introdução no país por D. João III do Tribunal do Santo Ofício.

Esta instituição, com os seus fanatismos, com as suas denúncias, com os seus roubos, com as suas prisões, com as suas torturas, com os seus autos de fé, com as suas fogueiras, foi uma mistura de tragédia dolorosa e de baixa comédia, que durante cêrca de duzentos anos perturbou em Portugal tôdas as actividades e com elas o progresso geral do país.

Entraram neste caminho infernal o poder civil e o poder eclesiástico, sugestionados talvez pelo ideal da unidade religiosa na Península Ibérica, pela extinção nela do judaismo, e entrou nêle também o povo, que via os Judeus representar um papel preponderante na vida social e económica daqueles tempos.

Homens bons, homens sábios, varões beneméritos da Pátria e mesmo varões beneméritos da Religião cristã, foram vítimas da intolerância do terrível Tribunal.

Recordemos aqui, como exemplo, o Padre António Vieira, glória da Companhia de Jesus, glória do sacerdócio, glória de Portugal, que passou pelas prisões daquele Tribunal e foi por êle condenado a abjurar do que dissera em algumas passagens, consideradas pelos inquisidores como heréticas, das suas obras, a deter a sua pena douta e fecunda e a calar a sua voz protentosa. Depois, para não correr o risco de tornar a entrar nos cárceres da mesma, instituïção, valeu-lhe um Breve de Clemente X que o isentava da jurisdição dela.

O homem precisa de ciência que Ihe ilumine a mente, e de religião que lhe adoce o coração, mas a intolerância da Inquisição contrariava a liberdade de pensamento, de que precisa o filósofo, e a paz do coração de que precisa o crente.

Hoje os domínios da filosofia religiosa e da filosofia científica estão separadas, de modo que entre elas só podem dar-se conflitos sanáveis; não era, porém, o mesmo naqueles tempos, em que se entendia que a Ciência deve subordinar-se à Teologia. Aquela separação começaram a realizá-la filósofos do século XVII e proclamou-a, como arauto, no século XVIII, a grande Enciclopédia francesa.

A primeira tentativa fundamentada para aquela separação fê-la Galileu, defendendo o Sistema astronómico de Copérnico, que contrariava a passagem do Velho Testamento que se refere à paragem do Sol à voz de Josué. A Inquisição romana ouviu-o, prendeu-o, julgou-o e condenou-o a abjurar das suas ideas sôbre o movimento de rotação da Terra. Diz uma lenda que o grande físico, depois de abjurar, exclamou - E pur si muove (e contudo move-se). O grande condenado não poderia pronunciar tais palavras, mas pronunciou-as em nome dêle a ciência triunfante. A êste respeito ajuntemos, como nota, que por fim conciliaram-se a Religião e a Ciência, porque o grande conciliador S. Tomaz de Aquino tinha dado remédio para tais casos, considerando a interpretação da Bíblia sagrada como susceptível de progresso indefinido.

Se o facto que acabamos de narrar se desse em Portugal, o castigo de Galileu seria talvez mais duro. Os Pontífices Romanos reprovavam os excessos das Inquisições e em Itália eram ouvidos; mas na Ibéria, longe de Roma, não eram escutados e as Inquisições continuavam sempre na sua carreira lúgubre de perseguições e crimes.

Os Judeus que se converteram real ou aparentemente ao Cristianismo na ocasião da expulsão dos seus irmãos na raça, os chamados cristãos novos, eram espreitados por aquele Tribunal, que, para saber se cumpriam o seu juramento de fidelidade à lei de Cristo, procurava saber o que faziam, o que diziam e o que pensavam. Muitos morreram queimados nas fogueiras sinistras daquela instituïção por fidelidade à Religião de Moisés, como outrora na velha Roma muitos cristãos tinham ardido nas fogueiras acesas pelo paganismo por serem fiéis às doutrinas de Jesus.

Antes de D. João III as estrêlas do céu alumiavam lindamente as caravelas que iam pelos oceanos à descoberta de novas terras e à conquista de almas para o Deus dos cristãos; depois dêle, as fogueiras dos autos de fé acesas pelo fanatismo alumiavam simultaneamente a côrte, o clero, os nobres e o povo, reünidos em praças de Lisboa a observar a agonia de hebreus condenados por serem fiéis à lei moisaica.

Por isso, os cristãos novos tornaram-se medrosos e deixaram de manifestar o seu pensamento científico ou filosófico, receando cair na alçada do monstruoso Tribunal.

Mas a Inquisição não fêz menos dano à Religião católica do que à Ciência, porque a intolerância, com as suas curtas vistas, estreita o Reino de Cristo, a tolerância, com as suas vistas largas, dilata-o.

Demoramo-nos a falar do Tribunal do Santo Ofício, porque esta instituïção representou o papel primordial na depressão do pensamento português no período histórico que estamos a considerar.

Ainda no tempo de D. João III surgiu outro motivo para a decadência da cultura científica em Portugal, que vamos ver.

O sucessor de D. Manuel começou por proteger eficazmente esta cultura, transferindo a Universidade portuguesa de Lisboa para Coimbra, terra mais apropriada à meditação e ao estudo, melhorando a sua organização, com o auxílio do grande pedagogista André de Gouveia, que chamou da França, onde dera provas de alto valor, a Portugal, e chamando à regência das cadeiras professores notáveis pelo talento e sabedoria, quási todos escolhidos pelo próprio Gouveia. Mas em breve prejudicou êle próprio a sua obra, porque, receando talvez que pela escola entrasse no país o vírus herético que lavrava pelo norte da Europa, entregou o ensino universitário e depois todo o ensino nacional à Companhia de Jesus, que fôra recentemente fundada.

Esta Companhia tomou para si, desde a sua fundação, como uma das suas principais missões, a educação da juventude. Os frades menores de S. Francisco ensinavam pelo exemplo, os frades prègadores de S. Domingos ensinavam pelo púlpito, os filhos de Santo Inácio tomaram sôbre si o encargo de ensinar principalmente pela escola. Por isso começaram logo a estabelecer colégios em diversos lugares do velho Mundo e nas novas terras descobertas por portugueses e espanhóis e, continuando sempre no seu plano, ainda agora procuram espalhá-los por tôda a parte, e está nisto o seu principal papel e o principal motivo da sua fôrça.

Pouco tempo depois da fundação desta Ordem, D. João III pediu ao fundador alguns missionários para irem evangelizar na Índia, mas Santo Inácio só lhe pôde mandar dois, um dos quais foi o grande S. Francisco Xavier. Porém, anos depois, ainda em vida do mesmo monarca, o número de membros da Ordem era ja tão grande que puderam fundar em Portugal colégios e o seu prestigio na côrte subiu tão depressa que aquele monarca lhes concedeu, como dissemos, todo o ensino universitário e depois tôda a instrução nacional.

Ensinava-se naqueles colégios e na Universidade (mencionando sòmente o que convém aqui notar) elementos de Aritmética, de Geometria e de Astronomia e as doutrinas filosóficas e físicas de Aristóteles, e alguns dos seus mestres compuseram bons manuais para o ensino daquelas ciências e outros comentaram sàbiamente estas doutrinas, mas desprovidos de originalidade de espírito e fundamentalmente conservadores, presos às velhas doutrinas dos Peripatéticos e dos escolásticos medievais, não introduziram no país as descobertas que no campo da ciência e da filosofia se iam fazendo fora dêle.

Eram doutos e sabiam ensinar e ensinavam bem, mas só ensinavam a conhecer as obras do passado, não olhavam para o futuro, não ensinavam a progredir. Demais, o que principalmente os preocupava era a defesa do catolicismo contra as heresias e a divulgação da civilização cristã pelas terras de além-mar. Em Portugal era naturalmente êste o principal papel da sua instituïção e fêz ela grandes serviços ao nosso país e também a ela própria.

Por isso os fulgores da ciência e da filosofia de além dos Pirinéus só começaram a chegar a Portugal quando no século XVIII o Marquês de Pombal reformou amplamente os estudos portugueses.

Com a expulsão da Península hispânica dos seguidores de Moisés e de Mahomet tinha-se estabelecido nela a unidade religiosa e receiava-se talvez que, com a introdução das novas ideas filosóficas, viessem as heresias que lavravam além dos Pirinéus perturbar a paz religiosa. Parece que se tinha medo da ciência, da verdade, dos deslumbramentos de luz ! Tinha-se talvez receio de que a fé científica enfraquecesse a fé religiosa. Mas aquelas novas ideas filosóficas entraram e, em vez de enfraquecer a crença cristã, levantaram-na e firmaram-na, separando os domínios da ciência e da religião e modificando a interpretação, como já dissemos, de algumas passagens dos livros sagrados.

Convém aqui observar que a Companhia de Jesus, depois de tomar a direcção superior da instrução em Portugal, mostrou interessar-se pelo ensino da Astronomia e da Física.

O seu interêsse pela Astronomia era natural, não sòmente porque esta ciência tinha conquistado foros de nobreza pela elevação do seu objecto e pelas aplicações que tinha na Náutica, mas também pelas vantagens que poderiam tirar do seu conhecimento os missionários que a Ordem espalhasse por terras de Além-mar. Revelou-se aquele interêsse pela criação de uma cadeira para o ensino desta ciência no seu Colégio de Santo Antão, em Lisboa, pela publicação de alguns livros a ela consagrados por sábios da Ordem e pela publicação, sob o título de Planetário lusitano, pelo padre Eusébio da Veiga das primeiras efemérides astronómicas organizadas em Portugal, efemérides que se referem aos anos que vão desde 1757 até 1760.

Além disso, espalhada a Ordem por terras cientìficamente inexploradas, concorreram alguns dos seus membros para o progresso das ciências físicas e naturais com trabalhos notáveis nelas elaborados.

Na China, onde a Astronomia tinha tradições e era muito apreciada, fizeram alguns jesuítas portugueses observações astronómicas que conquistaram para êles a estima dos próprios imperadores(1).


(1) Ver: Francisco Rodrigues, Jesuítas portugueses astrónomos na China, Pôrto, 1925.

Nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (t. II, 1799) encontram-se numerosas observações de eclipses do Sol e da Lua feitas em Pequim pelo Padre André Rodrigues e nas Philosophical Transactions of the Royal Society of London (t. XXXVII, 1831) encontram-se observações dos Satélites de Júpiter feitas na mesma cidade pelo Padre André Pereira.

O interêsse da mesma Companhia pela Física, revelou-se principalmente pela publicação, no fim do século XVI da obra intitulada Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesus, de que anteriormente falámos. Mas, depois que no século XVII a Astronomia e a Física helénicas caíram, os Jesuítas portugueses ficaram como estonteados diante das novas ciências que as substituíram, como se ameaçassem a própria igreja católica, e continuaram a ensinar as velhas doutrinas astronómicas e físicas dos antigos mestres, convencidos certamente de que estavam apenas diante de uma crise das doutrinas escolásticas, diante de uma vaga destruidora que passaria.

Já Galiléu tinha feito os seus descobrimentos em Física e já Kepler tinha achado as leis dos movimentos planetários, e em Portugal continuava se ainda preso às doutrinas físicas e astronómicas de Aristóteles, Ptolomeu e Alpetrágio. Não se houviram cá nem os ruídos da queda das velhas doutrinas, nem os ecos dos aplausos aos triunfos dos que vieram substituir as que caíram.

É certo que a igreja católica favoreceu sempre directamente e por meio das suas congregações religiosas a cultura científica e filosófica, procurando somente evitar que prejudique o que há de essencial nas suas doutrinas; mas os Jesuítas de Coimbra não seguiram no ensino os progressos desta cultura.

Factos semelhantes se passaram na Espanha. Filipe II fundou uma Academia de Matemática em Madrid com o fim de preparar oficiais para o seu exército, mas esta escola nada contribuíu para o progresso desta ciência naquele país. Por isso foi extinta e o ensino dela entregue aos jesuítas do colégio de Santo Isidro; mas com isto não se obtiveram frutos melhores.

Nos colégios actuais da Companhia de Jesus são os assuntos científicos cultivados com sucesso e ensinados com proficiência, mas os Jesuítas do passado só se preocupavam geralmente com o fim para que tinha sido instituída a Ordem, isto é, com a defesa do vasto império pontifício romano contra as reformas heréticas que o ameaçavam na sua unidade dogmática e com a dilatação daquele império por terras de além-mar. O monopólio do ensino português pela Companhia de Jesus acabou quando o Marquês de Pombal reformou os estudos, mas antes disso já recebera, no reinado de D. João V, um grande golpe, porque se dera a outras congregações religiosas a faculdade de preparar alunos para a entrada na Universidade e tinha já sido êste ensino analisado e vivamente censurado pelo Padre Luiz Verney em um livro notável sôbre o Verdadeiro método de ensinar, que deu origem a vivas discussões, e já começava a despontar nas escolas portuguesas a aurora da nova filosofia científica.

Eram para a Companhia de Jesus os pronúncios de acontecimentos que se aproximavam e mais tarde haviam de arrastar a Escolástica e os seus mestres em Portugal. .

Outro facto que concorreu para a decadência da cultura matemática em Portugal foi o descrédito em que dia a dia ia caindo a indústria astrológica, um dos amparos da Astronomia, pelo progresso do espírito crítico-científico, que ràpidamente crescia desde o começo das grandes navegações e pela justa reprovação pela igreja católica dos vaticínios que se referissem à alma. Com tal descrédito perdeu muito a Astronomia, e com ela as Matemáticas, mas lucrou a Medicina, que a Astrologia asfixiara, separando a da experimentação e da observação, em que aquela ciência se deve fundar, para a levar a quimeras, que acabaram por se tornar ridículas. No fim do século XVI estava ainda tão viva a Astrologia que Manuel de Figueiredo e André de Avelar, em livros já aqui mencionados, lhe consagram longos capítulos; mas no fim do século XVII, com a queda da Física peripatética, declinou ràpidamente a crença nos vaticínios astrológicos.

Vejamos um último facto que concorreu para a decadência da cultura matemática em Portugal.

No reinado de D. Sebastião começaram a manifestar-se os primeiros sinais de decadência da navegação portuguesa, que no reinado anterior tinha atingido a sua máxima grandeza, e esta decadência continuou primeiramente com lentidão e depois ràpidamente. Com êste declinar da navegação decaíu também a cultura matemática em Portugal, por lhe faltar o estímulo que deu origem e impulso a esta cultura.

E como, além disso, a arte de navegar se foi tornando cada vez mais rotineira, os pilotos deixaram de procurar o ensino e os conselhos dos cosmógrafos, que assim quási se tornaram inúteis.

A estes motivos especiais para a decadência da cultura científica portuguesa, podemos juntar outro aplicável a diversas formas de actividade nacional.

A raça lusa estava cansada por uma actividade desmedida sustentada durante quási dois séculos, estava abatida e desmoralizada pelo excesso de riquezas vindas das suas colónias, esmagava-a a descomunidade do seu império, asfixiava-a o poder absoluto de monarcas incompetentes, abrasados todos por fanatismo religioso e um dêles ainda por fanatismo guerreiro.

Por isso esta raça perdera a fé no seu futuro e adormecera sôbre os louros colhidos.

Assim Portugal, depois de ter preparado a civilização moderna, estacionou e outros países da Europa passaram-lhe adiante.

Dissemos a êste respeito no discurso inaugural do Congresso do Pôrto das Associações Espanhola e Portuguesa para o Progresso das Ciências:

«Nos vôos da ciência que se realizaram no século XVII, não representaram papel importante nem espanhóis nem portugueses. Nas colectividades, como no homem isolado, aos períodos de agitação seguem-se outros de adormecimento e torpor, e a Península Ibérica fôra a alma da Europa no período brilhante das grandes navegações. Por isso não pôde resistir aos efeitos da depressão moral produzida pelas riquezas que vieram do Oriente e do esmagamento produzido pelo excesso de poderio, nem às influências sectaristas que por diversos modos a assaltaram. Mas, a-pesar-de tudo isto, como no declinar do que é sublime há sempre alguma coisa de grande, os dois povos puderam continuar com energia e pertinácia a obra colossal da colonização da América».

De facto, neste declinar, as energias que restaram ao povo luso continuaram a ser aplicadas por tradição e necessidade à exploração e defesa dos vastos territórios que conservaram na América, limitando a cultura das ciências matemáticas ao que era necessário para estes fins.

Poderá haver quem afirme que a raça lusa, guerreira e aventureira, não sentia atracção nem mesmo tinha aptidão para as ciências que exigem pensar profundo. O futuro mostrou que não é assim.

Depois que os estudos universitários foram reformados no século XVIII, apareceram, como veremos, muitos portugueses a cultivar com sucesso as Matemáticas.

Cultura da Matemática no período de decadência (1600-1772)

Expostos os motivos da decadência da cultura matemática em Portugal que se seguiu à morte de Pedro Nunes, tracemos agora a história desta cultura durante o período em que esta decadência se manteve.

Vimos anteriormente que foram consagrados à Astronomia e à Náutica os últimos trabalhos publicados em Portugal no século XVI. Depois no século XVII, foram ainda publicados outros livros sôbre estes mesmos assuntos. O ensino da arte de navegar estava tanto nas tradições nacionais que nunca se interrompeu completamente, mas o nível que atingiu neste período foi bem inferior àquele a que subiu no período anterior. Assim como o sólido, impelido por uma fôrça, continua a mover-se em virtude da velocidade adquirida, quando a fôrça deixa de actuar, e esta velocidade vai depois diminuindo em virtude das resistências que encontra, assim também o impulso dado à cultura da Astronomia e sua aplicação à Náutica antes da morte de Pedro Nunes continuou depois a exercer a sua acção, mas esta acção foi dia a dia enfraquecendo.

Distinguiram-se então no seu ensino Luiz Serrão Pimentel e seu filho Manuel Pimentel, cosmógrafos-mores do reino que publicaram a êste respeito obras de algum interêsse

Na cultura das Matemáticas consideradas sob o ponto de vista filosófico, isto é, independentemente das aplicações, é que se fêz sentir mais a decadência.

Pertencia à Universidade fazê-las progredir, e ela nada fêz para isso. Pelo contrario conservou fechada durante intervalos que somam cêrca de noventa anos a cadeira destinada a tais ciências.

Perdidos, como vimos, os dois principais incentivos para o estudo das Matemáticas no nosso país, a sua aplicação a Náutica e à Astrologia, nasceu depois outro com a aplicação delas à arte da guerra.

Foram com efeito criadas, ainda no tempo de D. João IV, para esta aplicação, uma Academia de Artilharia e uma Academia de Fortificação e foram depois estabelecidas em alguns regimentos Escolas com o mesmo fim. Mas estas modestas Academias e Escolas de ensino elementar nada concorreram para o progresso das ciências. Foram porem precursoras de outros institutos mais altos que se fundaram mais tarde para os mesmos fins no século XVIII, depois do ressurgimento da nossa cultura científica pela reforma dos ensinos universitários, como veremos.

Para uso das Escolas mencionadas, publicou Manuel de Sousa em 1764, sob o título de Novo curso de Matemática para uso dos oficiais de Engenharia e Artilharia, uma tradução em português do tratado publicado em França por Bélidor para os mesmos usos. Neste livro são consideradas a Álgebra, a Geometria de Euclides, a Geometria das cónicas e a Mecânica com muitas aplicações à Artilharia. No ensino da Geometria das cónicas e da Mecânica aplicam-se métodos analítico-geométricos elementares, sem a intervenção da Geometria analítica, pròpriamente dita, nem do cálculo dos infinitamente pequenos.

Diremos de passagem que, para se iniciar o estudo das Matemáticas, são indispensáveis incentivos económicos. Começa geralmente êste estudo na juventude para se obter uma posição social que dê meios para viver e continua-se depois com interêsse quando se pode avaliar o que nêles há de engenhoso. Como dissemos noutro lugar, os que se ocupam das ciências começam a estudá-las pelo que têm de útil, principiam a amá-las quando compreendem o que têm de belo, e apaixonam-se por elas quando sobem assaz alto para abranger o que têm de sublime.

Uma das coisas que mais impressiona o homem douto que lança olhar atento sôbre o Universo, é o papel que nêle representam os números. Uma conclusão que se pode tirar deste facto é que a ciência dos números deve ser a mais bela das ciências para o homem cultivar, porque deve ter belezas subjectivas correspondentes às harmonias que se observam no Cosmos. E tem-nas de facto, mas só os homens de génio as podem encontrar e só os homens doutos convenientemente preparados as podem compreender. Ora a missão do bom mestre é faze-las compreender e admirar.

Diz um matemático notável que a Matemática é a Música da razão. O conceito é feliz; mas, emquanto que a música dos sentidos se pode gozar sem saber tocar, não se pode gozar a Música da razão sem a conhecer profundamente.

Por isso, repito, para se começar o estudo das Matemáticas são necessários impulsos de ordem económica. Ora em Portugal estes impulsos davam-nos a Náutica e a Medicina astrológica; por isso, extintos estes impulsos, foi necessário esperar que nascessem outros. Isto desculpa um pouco os Jesuítas de as terem deixado ao abandono na Universidade de Coimbra, mas não inteiramente, porque também êles não procuraram aproveitar mestres que criassem o amor às ciências e chamassem ao estudo dos seus progressos as pessoas que quisessem conhecê-las.

No período de pobreza cientifica a que nos estamos referindo, apareceram em Portugal alguns escritos sobre Aritmética, Geometria elementar e Astronomia, mas são apenas trabalhos didáticos, mais ou menos bem compostos, sem originalidade apreciável, e que não concorreram para se introduzir as descobertas dos grandes matemáticos europeus.

Dormem nas estantes das bibliotecas; e não serei eu quem os irá acordar.

Revelam porém tais trabalhos nos portugueses daqueles tempos atracção para o estudo das Matemáticas e que, se não subiram mais alto, foi por falta de preparação conveniente.

E no estudo do Mundo físico que as Matemáticas tiveram sempre as suas mais belas aplicações, e por isso foi sempre aquele estudo a principal origem dos progressos daquelas ciências. Como já dissemos, a Natureza é um livro numèricamente escrito que a Matemática ensinou a ler. Por isso as ciências físicas e as ciências matemáticas caminham juntas, progridem juntas, vôam juntas. O físico recorre ao matemático, quando precisa para os seus estudos de resolver questões numérica, e, em compensação, fornece-lhe temas que o levam a estudar os domínios da sua ciência e a abrir e explorar domínios novos. A Matemática é ao mesmo tempo uma lógica maravilhosa que dirige o pensamento no estudo das harmonias do Mundo físico e uma língua luminosa de símbolos que exprime e fixa aquele pensamento. E, assim como a linguagem comum auxilia o raciocínio, fixando-o, assim também e mesmo com mais fôrça, a linguagem escolhida da Matemática auxilia o físico.

Mas em Portugal, nos tempos a que nos estamos referindo, não se procurava penetrar nos mistérios do Mundo físico e por isso também se não penetrou nos segredos do Mundo dos números. Estava-se preso a Aristóteles e considerava-se a Física como assunto fechado pelo grande filósofo. Liam-se, reliam-se e comentavam-se as suas obras e as dos Peripatéticos e Escolásticos que o seguiam, e escreviam-se sôbre elas monumentos de erudição artificial e subtil em fólios tão pesados como as doutrinas que encerram.

Assim, um povo que nos séculos anteriores marchara à frente da civilização mundial, tornara-se, por defeito de educação, ultra-conservador em política, em religião e em ciência. Tomara mêdo ao progresso!

Êste abatimento da instrução em Portugal deu-se em tôdas as ciências e obrigou alguns espíritos de eleição, ávidos de sabedoria, a fugir de um meio tão pobre em cultura e a ir buscá-la além dos Pirenéus, a países onde as ciências floresciam. Os mais distintos partiram e infelizmente ou nunca voltaram ou voltaram tarde.

Partiu e não voltou o médico Ribeiro Sanches, cuja fama voou até à Côrte dos Czares da Rússia, onde foi clínico da imperatriz Catarina. Era professor na Universidade de Évora e saíu de Portugal a rugir à Inquisição.

Partiu e não voltou João Jacinto de Magalháis, que se distinguiu nos assuntos da Física experimental de um modo tão notável que as maiores Academias da Europa lhe abriram as suas portas e os maiores sábios do seu tempo procuraram as suas relações. A Astronomia e a Arte náutica devem-lhe um trabalho importante sôbre instrumentos de reflexão, que foi muito elogiado no tempo em que apareceu(2).


(2) Veja-se: A vida e a obra de João Jacinto de Magalhãis, por Sousa Pinto, Pôrto, 1931.

Partiu e voltou, mas voltou tarde, Soares de Barros, que revelou aptidões tão notáveis para a Astronomia física nas observações que fêz da passagem do Mercúrio diante do Sol em 6 de Maio de 1753 e em trabalhos sôbre os satélites de Júpiter, publicados em 1755 nas Memórias da Academia de Berlim, que esta alta instituïção científica o admitiu no número dos seus sócios(3).


(3) J. J. de Barros e Vasconcelos: Observations et explications de quelques phénomènes vus dans le passage de Mercure audevant du Soleil observé a l'Hotel de Cluny, à Paris, le 6 Mai 1753 et leur application pour la perfection de l’astronomie, Paris 1753

Não nos deteremos a analisar estes trabalhos, a-pesar-da importância que tiveram porque o seu interêsse, o motivo do seu sucesso, está todo nos fenómenos luminosos que Soares de Barros estudou durante as observações, e por isso estão fora do programa desta obra. Pode consultar-se a êste respeito o Elogio de Soares de Barros, publicado por Stockler no t. I das suas Obras (Lisboa, t. 1, 1805).

Acrescentemos que o nosso astrónomo fêz os seus estudos na Inglaterra e França e neste último país viveu muitos anos, trabalhando com o notável astrónomo De Lisle.

Partiu e não voltou, o médico Jacob de Castro Sarmento, que viveu em Inglaterra, foi membro do Colégio dos Cirurgiões de Londres e subiu até sócio da Sociedade Real da mesma cidade. Ali compôs em português um comentário à teoria de Newton sôbre as marés, com o louvável fim de fazer conhecer em Portugal a doutrina do grande fundador da Mecânica Celeste. Mas, por uma contradição que surpreende, o mesmo autor ajuntou à sua sã doutrina física um prefácio com doutrinas de ciência astrológica, em que se fala da influência da Lua sôbre as fúrias dos maníacos, sôbre chagas, sobre fluxos de sangue, etc.

Partiu, estudou em França e Itália, neste país ensinou e voltou depois a Portugal, Manuel de Azevedo Fortes, que escreveu um livro notável sôbre aplicações da Matemática à Engenharia.

A nossa pobreza científica era naqueles tempos tão grande que, quando o Marquês de Pombal quis obter professores para o ensino das Matemáticas que fundou em Lisboa em 1761, viu se obrigado a ir buscá-los a um país estranjeiro.

Felizmente não aconteceu o mesmo quando mais tarde, em 1772, reformou a Universidade de Coimbra e estabeleceu nela o ensino daquelas ciências em Faculdade autónoma. Apareceram então, como por milagre, dois portugueses de muito mérito, José Monteiro da Rocha e José Anastácio da Cunha, que se encarregaram dêste ensino juntamente com dois italianos ilustres.

Acabou assim a longa noite que, para a Matemática portuguesa, começara nos fins do século XVI e raiou para ela a aurora de um novo período luminoso.

Já dissemos o que foi para as ciências o século XVII: século de linces que viam fundo e de águias que voavam alto, século das grandes generalizações e das hipóteses fecundas. Neste século, que apareceu como uma maravilha na história da filosofia natural, século em que as ciências brilharam na França, na Itália, na Alemanha, na Holanda e na Inglaterra com um esplendor que só teve semelhante nos tempos áureos da velha Hélada, Portugal esteve vivendo em escravidão profunda que só começou a dissipar-se quando começou a produzir os seus efeitos a reforma da Universidade de 1772. Então os maravilhosos mananciais que nas Matemáticas se tinham descoberto além dos Pirenéus, começaram a ser encaminhados para cá, ensinando-se as novas doutrinas e habilitando os alunos a continuá-las.

Então começam a aparecer na cultura da Matemática em Portugal a Álgebra moderna, a Geometria analítica e o Cálculo dos infinitamente pequenos, agora começam a aparecer na sua literatura citações de Galiléu, Descartes, Newton e Leibniz; de Mac-Laurin, dos Bernoullis e de D'Alembert; de Euler, Lagrange e Laplace.

Mas os efeitos perniciosos da escravidão em que se tinha vivido, continuaram a fazer-se sentir pelo motivo que vamos expor.

Os matemáticos do século XVIII encontraram diante de si vastos domínios do Mundo dos números abertos pelo génio prodigioso de Newton. Este incomparável geómetra e físico continuou com sucesso a obra algébrica de Viète e Descartes; abriu a dou trina das séries com a descoberta dos desenvolvimentos do bimónio, da exponencial, do seno, etc.; abriu, com o estudo das curvas de terceira ordem, a teoria geral das curvas algébricas; abriu, sob forma mecânica de Cálculo das fluxões, os imensos domínios da Análise dos infinitamente pequenos; fêz progredir a Óptica e a Acústica; continuou a constituição da Dinâmica, iniciada principalmente por Galiléu; e, com a descoberta maravilhosa da lei da atracção da matéria, subiu à constituição da Mecânica dos Mundos.

Emquanto isto se passava na Inglaterra, na Alemanha, outro homem de génio, Leibniz, reinventou o Cálculo dos infinitamente pequenos sob forma mais subjectiva, e os irmãos João e Jacob Bernoulli continuavam e aplicavam as doutrinas daqueles afamados geómetras.

Os matemáticos do século XVIII tiveram a boa sorte de colher os primeiros frutos da exploração dêstes domínios riquíssimos, mas deixaram ainda muito que colher aos que vieram depois.

Os matemáticos portugueses chegaram mais tarde, por falta de preparação, e por isso foram menos felizes. Encontraram já colhidos os frutos mais fáceis de colher, os frutos que pendiam nos ramos mais baixos da árvore e era preciso trepar a ela para aumentar a colheita.

Agora, ao terminar esta notícia sobre o terceiro período da história da Matemática em Portugal, o seu período de pobreza, ajuntemos ainda que este período coincidiu com um período de lutas, indecisões e desditas da nossa Pátria, que a explicam.

Depois da tragédia de Alcácer-Quibir, subiu ao trono português D. Henrique, Inquisidor, um fanático, um decrépito, ... uma sombra. Governaram depois as terras de nossos avós três monarcas estranjeiros, três reis castelhanos. Com a revolução de 1640, ocupou de novo o trono de Afonso Henriques um monarca português, D. João IV, e então o rei e o povo, unidos em um anelo comum de independência, bateram-se gloriosamente pela emancipação da Pátria e venceram. Seguiu-se no trono Afonso VI, um louco, depois Pedro II, um imoral, e por fim D. João V, monarca faustuoso e pródigo, que legou ao seu sucessor D. José uma nação arruinada.

Eis, em termos breves, o que foi politicamente Portugal no período que estamos a considerar.

De oito monarcas que acabamos de mencionar só um, D. João IV, ocupou bem o trono de Afonso Henriques. Isto dá-nos o motivo por que a decadência das ciências, cujas causas tinham começado a sua acção nos tempos de D. Manuel, se manteve cêrca de dois séculos.

Os reinados de Afonso VI e Pedro II foram de política baixa, o de João V de política de vaidade. Com o primeiro nada ganhou a ciência, com o segundo ganhou pouco.

O resurgimento da cultura das Matemáticas em Portugal pela reforma da Universidade de Coimbra

Entremos no quarto período da história da cultura da Matemática em Portugal, o período do seu resurgimento, tão ligado à reforma pombalina da Universidade de Coimbra, que convém deter-nos algum tempo a falar desta reforma.

D. João V, com as suas loucas despesas, legou ao seu sucessor, D. José I, como já dissemos, uma nação arruïnada. O erário estava vazio e o povo empobrecido. Lavrava a desorganização em tôdas as manifestações da actividade nacional. O comércio, a navegação, a agricultura e a indústria definhavam, a segurança era pequena em todo o país e a indisciplina lavrava perigosamente por todo êle. O faustuoso monarca pouco deixara de útil e muito deixara de estéril. Pelo que respeita a instrução, preso a um sonhar constante na grandeza da igreja nacional, só raros momentos de atenção prestara à cultura científica do seu reino.

Mas poucos anos depois de D. José ter subido ao poder, Portugal estava próspero, organizado e disciplinado. Quem fêz êste milagre?

O Grande Ministro, Sebastião José de Carvalho, depois Conde de Oeiras e mais tarde Marquês de Pombal.

Na sua formidável obra de organização do país, teve o culto Ministro cuidado especial com a instrução, convencido de que ela é a base primordial de todo o sólido progresso social.

Assim, começou por fundar em Lisboa um colégio destinado a ensinar as ciências aos nobres que se destinassem ao serviço militar, colégio a que já nos referimos.

Mas isto era pouco. Só beneficiava uma classe. O campo de visão do Ministro era largo e, subindo mais, lançou o seu olhar para a Universidade de Coimbra, que definhava, reduzida a uma instituição quási inútil, reformou as faculdades existentes e criou duas novas, destinadas ao ensino das ciências matemáticas e físicas, levantando-a assim a alturas a que nunca antes subira.

Depois para se valorizarem os estudos, começaram os empregos públicos a ser dados a quem tinha preparação científica para bem os desempenhar, e o país começou a prosperar.

Para se avaliar esta reforma, o documento melhor que se possue é o Estatuto então elaborado, e por isso vamos falar dêste documento célebre na História da Pedagogia, da Filosofia e da Ciência portuguesa, considerando principalmente os artigos que se referem às ciências matemáticas e físicas.

Quem visita o Arquivo da Universidade de Coimbra vê nêle um grosso volume escrito com excelente caligrafia, ricamente encadernado e metido em luxuosa saca de prata. Êste volume é o manuscrito do Estatuto com que o Marquês de Pombal dotou aquela Universidade e que êle próprio levou a Coimbra quando ali foi inaugurar, em sessão soleníssima realizada na Sala dos Actos Grandes, a mencionada reforma. Depois foi o conteúdo daquele volume impresso, a-fim-de se vulgarizarem as suas disposições. Não é(4) êste Estatuto um simples código de preceitos a seguir nas diversas faculdades universitárias, como o são ordinàriamente os documentos desta natureza. É uma Dissertação notável sôbre o ensino das ciências, primorosa no fundo e na forma, é um monumento de sã pedagogia e elevada filosofia, escrita em linguagem vernácula e elegante, onde tôdas as disposições são nitidamente explicadas e justificadas, e onde se dão conselhos preciosos aos alunos e preceitos salutares aos mestres.


(4) Panegíricos e Conferências, pág. 92-93.

Na parte dêste documento que se refere às Faculdades de Matemática e Filosofia há disposições muito notáveis tendentes a atrair os alunos para o estudo das ciências que elas ministram e para regular êste estudo.

Para atrair os alunos reservam-se-lhes profissões em que apliquem o que aprenderam, obrigando a apresentar aos candidatos a estas profissões diploma de formatura.

Criam-se pela primeira vez prémios para estimular os alunos na luta contra as dificuldades das ciências e instituem-se honras, com remunerações correspondentes, para os doutores que se tornem notáveis por publicações de trabalhos de valor.

Aconselha-se aos professores e discípulos que associem ao ensino e ao estudo das ciências o da sua história. Por êste meio dá-se vida às teorias e eleva-se o espírito, obrigando-o a olhar para o alto, para os génios. Recordarei aqui, de passagem, que hoje há em algumas universidades europeias cadeiras especiais para o ensino da história das ciências. Nas universidades portuguesas não existe cadeira alguma com êste destino, mas nos, nos cursos que professámos durante mais de meio século nas Universidades de Coimbra e Pôrto, tivemos sempre o cuidado de acompanhar, quanto possível, cada doutrina da respectiva história, e notámos quanto isto interessava aos alunos.

Recomenda o mesmo Estatuto que à educação teórica se junte a educação pratica, determinando que os mestres obriguem os alunos a numerosos exercícios, que esclareçam as doutrinas ensinadas e os preparem para as aplicações que no futuro tenham de fazer delas, e ainda que proponham aos mais distintos questões próprias para desenvolver a faculdade de inventar em alguns que a natureza tenha dotado de imaginação mais viva. A respeito desta recomendação do Estatuto pombalino, convém observar que nêle está a indicação dos Seminários matemáticos modernos, escolas de investigação matemática, que tantos serviços prestam nas universidades onde foram até hoje criados.

São muito notáveis as passagens do mesmo Estatuto consagradas a Filosofia das Matemáticas (5). Encontram-se nelas notas profundas sôbre a estrutura destas ciências sôbre a sua divisão em ramos harmònicamente ligados, sôbre os seus conceitos mais subtis, sôbre os princípios gerais que lhes servem de fundamento, sôbre a importância que têm para a educação do espírito, sôbre o seu papel no estudo do Mundo físico, etc. O que a êste respeito diz, concorda de um modo tão notável com as ideas modernas, que parece escrito por um sábio dos nossos dias.


(5) Panegíricos e Conferências, pág. 98.

O Estatuto com que o Marquês de Pombal dotou a Universidade de Coimbra é um monumento que tem perto de dois séculos e todavia parece moderno.

O seu principal autor foi Monteiro da Rocha, que não só compôs os capítulos que se referem às Faculdades de Matemática e Filosofia, mas inspirou os autores dos outros capítulos, e por isso se observa nas suas disposições perfeita unidade. Verney, com o seu Verdadeiro método de ensinar; foi um precursor a êste respeito de Monteiro da Rocha; Ribeiro Sanches, que vivia nesse tempo em Franca, foi um útil conselheiro.

A Faculdade de Matemática fundada pelo Marquês de Pombal tinha quatro cadeiras respectivamente consagradas à Álgebra e Cálculo infinitesimal, à Geometria, à Mecânica e à Astronomia.

Os alunos iam completar os seus estudos das ciências físicas e naturais na Faculdade de Filosofia também então criada. Para o ensino ser eficaz, não bastavam as prelecções dos mestres, era ainda necessário pôr nas mãos dos discípulos livros apropriados a completar o que ouviram.

Antes da criação da Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra, as obras de Álgebra publicadas no nosso país estavam tôdas escritas no estilo anterior à reforma de Viète. Em Geometria analítica e Cálculo dos infinitamente pequenos nada se tinha publicado em língua portuguesa. Foi por isso necessário, para ter livros de texto, verter para português ou latim alguns livros usados em França, porque a língua francesa estava então pouco divulgada em Portugal. Assim, o tratado de Aritmética de Bezout foi traduzido por Monteiro da Rocha em português em 1773 e esta tradução foi reimpressa diversas vezes, sendo a última em 1826. Para o ensino da Geometria adoptaram-se os Elementos de Euclides, que haviam já sido traduzidos em português por Angelo Brunelli; para a cadeira de Álgebra e Cálculo infinitesimal traduziu Monteiro da Rocha do francês para português os Élements d’Analyse mathématique de Bezout (tradução de que foram publicadas edições em 1774, 1793, 1801 e 1818), e para uso dos estudantes de Mecânica traduziu o mesmo professor, sob o título de Tratado de Mecânica, a obra consagrada a esta ciência pelo padre francês Marie (tradução de que foram publicadas edições em 1775, 1785 e 1812) e o Tratado de Hidrodinâmica de, Bossut (1775). Na cadeira de Astronomia adoptou se o tratado de Lalande, porque os livros que tinham sido publicados cm Portugal sôbre esta ciência, escritos para uso da Náutica, não satisfaziam ao programa da cadeira.

A primeira obra consagrada à Geometria analítica e Cálculo infinitesimal de autor português foi a de Anastácio da Cunha e tem por título, Princípios Matemáticos. Adiante a analisaremos cuidadosamente. Mas êste livro era pouco próprio para o ensino elementar, e por isso continuaram-se a usar como compêndios durante muitos anos livros franceses. Para uso dos alunos que quisessem aperfeiçoar os seus conhecimentos em Análise matemática, traduziu Nogueira da Gama em 1798 a bela obra de Lagrange: Théorie des fonctions analytiques e a interessante obra de Carnot: Méthaphysique du Calul infinitésimal.

Consideremos agora o Estatuto pombalino sob o ponto de vista filosófico. Desde a entrega dos ensinos universitários à Companhia de Jesus, a Escolástica dominava em tôdas as cadeiras. O Estatuto pombalino expulsou-a das cadeiras que lhe não pertenciam.

A Igreja Católica, depois de se organizar, pretendeu sistematizar as suas doutrinas, unindo em todo perfeito a Filosofia de Aristóteles e a religião cristã; mas, com isto, só conseguiu diminuir o sentimento desta religião e levar a Teologia a um formalismo sêco, subtil, dogmático e estéril.

Os teólogos modernos separam a filosofia do natural da filosofia do sobrenatural, o domínio da ciência do domínio da religião, evitando assim nas almas dos crentes conflitos do cérebro com o coração, da mente com a fé.

Os escolásticos de Coimbra estavam ainda na fase medieval, quando corria o século XVIII, quando além dos Pirenéus se tinha já substituído na Física, à filosofia das causas dos fenómenos e dedução lógica dos seus efeitos, a ciência do modo como os fenómenos se passam, das suas medidas e das suas relações, quando além dos Pirenéus se vinham substituindo nesta ciência as hipóteses estéreis, sintetizando-a em hipóteses fecundas, quando nos centros cultos do estranjeiro já brilhavam com esplendor o espiritualismo de Descartes e seus discípulos e o positivismo de Galileu e Francisco Bacon.

O comentário dos conimbricenses à obra de Aristóteles, obra já aqui mais de uma vez mencionada, classificado pelo Dr. Joaquim de Carvalho, autoridade nestes assuntos, como monumento de erudição e subtileza, com influência no pensamento de Descartes(6) foi a última grande manifestação da Escolástica medieval, que em Portugal se manteve até meados do século XVIII.


(6) Sessão inaugural do Instituto de Altos Estudos, Coimbra, 1932.

Ora, com a reforma dos estudos da Universidade portuguesa em 1772, começou a filosofia moderna a iluminar, livre de prisões teológicas, as Faculdades destinadas ao ensino das ciências em que a observação e as experiências representam um papel essencial, e as obras dos mais notáveis escolásticos, especialmente as da Águia de Aquino, suprimida nelas a parte científica que caira com o desabar da Física de Aristóteles e dos Sistemas astronómicos de velha Hélada, passaram a iluminar com a sua filosofia, a sua moral e a sua sociologia cristãs, a Faculdade de Teologia, então reorganizada pelo douto Bispo de Coimbra D. Francisco de Lemos, ao qual fôra confiada a composição da parte do Estatuto universitário consagrada a esta Faculdade.

Das doutrinas do genial Enciclopedista de Stagira, que dominara tôda a filosofia durante cêrca de vinte séculos e que fôra um como profeta em três religiões diversas, ficou a sua filosofia racional e a análise profunda do pensamento humano.

A subordinação da Ciência à Teologia, que não era estranhável na Idade Média, quando a Ciência estava cheia de hipóteses, mais ou menos arbitràriamente postas, era agora inadmissível, depois dos estudos e descobertas feitas depois da Renascença. Por isso separaram-se-lhes os estudos por diferentes Faculdades.

Com a reforma da Universidade de Coimbra, de que acabo de me ocupar, deram-se em Portugal, em pleno regime absoluto, os primeiros passos para a separação dos domínios da ciência e da religião e para a futura libertação política do país.

A sorte da Ciência e da Filosofia em Portugal depois da morte de D. José I

Morto D. José, em 1777, o Marquês de Pombal foi deposto do poder por D. Maria I, mas a sua obra era tão forte que subsistiu e foi mesmo em alguns pontos continuada. Está neste caso a sua reforma dos estudos, que foi depois completada com a criação de escolas técnicas e com a fundação da Academia das Ciências de Lisboa.

A Náutica estava tanto nas tradições nacionais que as duas primeiras escolas técnicas criadas tinham o estudo da navegação nos seus programas. Foram elas a Academia Real de Marinha e a Academia Real dos Guarda marinhas. Foi seu fundador Martinho de Melo, que com o Marquês colaborara e com êle aprendera.

A primeira destas escolas preparava para a carreira naval e ainda para diversas carreiras militares e civis e ensinavam-se nela, em curso de três anos, as Matemáticas puras e aplicadas e a arte de navegar. Na outra, mais elementar e mais especial, ensinavam-se, também em curso de três anos, as ciências náuticas e militares de que carecem os oficiais da armada e a parte indispensável das ciências auxiliares para o estudo daquelas. A arte naval, que tivera em Portugal uma situação privilegiada, antes da sua decadência política, passara depois a florescer noutros países, onde, com os seus progressos, apresentara aos matemáticos novos problemas, que eram estudados principalmente na primeira das escolas mencionadas, onde eram também estudadas as doutrinas matemáticas da balística a que leva à arte do artilheiro.

Para instruir os oficiais dos exércitos de terra, criou-se ainda em Lisboa em 1790 uma Academia real de fortificação, artilharia e desenho.

Na Universidade criou-se um curso de Hidrodinâmica, continuação da Mecânica dos sólidos, organizou-se o Observatório Astronómico de modo a servir simultaneamente para o ensino dos alunos e para indagações científicas, fundaram-se as Efemérides astronómicas, directamente calculadas, sem o intermédio das que eram publicadas por outros países, desdobrou-se a cadeira de Astronomia em dois cursos, um de Astronomia esférica e outro de Astronomia newtoniana, e no estudo das Matemáticas puras subiu-se até ao ponto de se poderem estudar os assuntos neste último curso pelo famoso tratado de Mecânica Celeste de Laplace.

Em um facto porém se sentiu na Universidade a falta do Marquês de Pombal. À sua Faculdade de Matemática foi roubado, pela Inquisição, Anastácio da Cunha que, iniquamente condenado, nunca mais lhe foi restituído.

Também no reinado de D. Maria I foi fundada em 1779 a Academia das Ciências de Lisboa, por influência de seu tio o Duque de Lafões. A fundação desta Academia foi uma conseqüência da reforma pombalina dos estudos universitários, que criando uma ciência portuguesa, tornou necessária a existência de uma alta corporação que julgasse do mérito dos trabalhos que produzisse e publicasse os que o tivessem, encorajando assim e favorecendo as investigações científicas.

Os efeitos benéficos da reforma da Universidade e da criação desta Academia fizeram-se sentir depressa. Pouco tempo depois, já em Portugal se ensinavam doutrinas de Newton, Mac-Laurin, D'Alembert, Euler, Lagrange, Laplace etc., e sôbre elas se escreviam memórias. Ia-se nas Matemáticas atrás dos outros países, porque se chegara mais tarde, mas não se ia tão atrasado como era de esperar em quem chegara tão tarde. Publicaram-se ainda neste século XVIII dois volumes da colecção de Memórias da Academia das Ciências de Lisboa onde se encontram escritos notáveis sôbre diversos assuntos de Matemáticas puras e aplicadas e, sob os auspícios desta Academia publicou-se um livro de João Ferreira Cangalhas, intitulado Opúsculos de Aritmética Universal (Lisboa, 1795), onde o autor se ocupa de numerosas questões relativas à teoria dos números primos e de Análise indeterminada do primeiro e do segundo grau, livro que ainda hoje pode ser lido com proveito. Ainda no mesmo século publicou Anastácio da Cunha a obra Princípios matemáticos, de que adiante falaremos.

Subindo agora mais alto, consagremos algumas palavras à história do pensamento em Portugal no século a que nos estamos referindo, continuando o que dissemos a êste respeito quando falámos do Estatuto pombalino.

Antes do govêrno do Marquês de Pombal, as fronteiras de Portugal eram como uma barreira fiscal proteccionista fechada ao progresso europeu, para que não viesse perturbar o sono do país, e tão fechada que era quási impossível o contrabando filosófico; depois quis se novamente cerrá-la, mas já não foi possível evitar o contrabando, porque os emigrados políticos o faziam e o fêz o próprio tio da Raínha, Duque de Lafões, que ilustrara o seu espírito em meios de alta cultura do estranjeiro e lhe inspirou, como dissemos, a fundação da Academia das Ciências de Lisboa.

Penetraram assim em Portugal as ideas filosóficas dos redactores da célebre Enciclopédia francesa do século XVIII, ideas que tinham sido combatidas com rancor além dos Pirenéus por católicos intolerantes e cuja entrada no nosso país se pretendia evitar. Foi um belo acto de tolerância o da Academia das Ciências de Lisboa admitindo nesses tempos no seu seio como sócio correspondente o maior dos enciclopedistas, o grande D'Alembert, que se tinha imortalizado com a resolução de altos e difíceis problemas de Mecânica Celeste e com a redacção do maravilhoso discurso filosófico-científico que abre a referida Enciclopédia. E mais belo foi ainda, digamos de passagem, o acto de tolerância do Pontífice Bento XIV, que, deslumbrado pela glória do celebre matemático e filósofo francês, permitiu que se lhe abrissem as portas do Instituto de Bolonha, que então estava subordinado à sua autoridade.

Com as novas ideas filosóficas transpuseram também as fronteiras portuguesas as ideas políticas, da Revolução francesa, que mais tarde deram aqui origem, como em todos os outros países europeus, a graves perturbações sociais.

Esta revolução foi uma mistura de duas revoluções, uma filosófica e outra política, diferentes na origem, nos fins e na forma, que coincidiram. A primeira tinha em vista emancipar o pensamento filosófico do pensamento religioso e só foi violenta quando a Inquisição interveio; a segunda foi algumas vezes feroz e deu os sucessos de 1793 em França. Deu origem a esta última a miséria em que o povo vivia no meio do conforto e mesmo luxo das classes privilegiadas; foi o vulcão que irrompeu quando as leis naturais o determinaram.

Tem-se atribuído à Filosofia responsabilidade nos desastres produzidos pelas revoluções que nos séculos XVIII e XIX se deram em diversos países, para a implantação do regime liberal. Não há nada mais injusto. À Filosofia cabe, sim, a honra de ter fixado o, direitos do povo, que êste mal conhecia, e de ter lembrado aos que o dirigem deveres esquecidos. À Filosofia cabe a honra de combater as desigualdades de uma sociedade cheia de privilégios para as classes altas e de durezas para as classes populares. À Filosofia cabe a honra de combater a faculdade absurda de os monarcas poderem dispor livremente da vida e dos bens dos seus súbditos...

A Filosofia representa a verdade, independentemente de quem a proclama e do modo como a proclamam, e falou ao povo que trabalhava e sofria e falou às classes privilegiadas e estas classes não a atenderam. Então as revoluções estalaram, os privilégios desapareceram, fixaram-se os direitos e deveres dos monarcas, os governos absolutos desabaram. Para isto foi necessário sacrificar muitas vidas, que se não sacrificariam se os privilegiados da sorte tivessem escutado os rugidos do vulcão. O povo venceu, porque tinha a protegê-lo a verdadeira filosofia, representante da razão.

Em Portugal as ideas de libertação do pensamento e de libertação política conquistaram adeptos entre as classes doutas, a-pesar-de serem combatidas pelo Govêrno, por meio do feroz intendente da polícia Pina Manique e pela Inquisição, que o Marquês de Pombal enfraquecera, mas que reviveu com o advento ao trono de D. Maria 1, nova encarnação do espírito fanático de D. João III. Homens ilustres nas ciências ou nas letras foram perseguidos ou tiveram de fugir do país para evitar perseguições. Recordemos o Padre Correia da Serra e o Doutor Avelar Brotero, botânicos eminentes, que tiveram de emigrar, e Anastácio da Cunha, que o Tribunal do Santo Oficio arrastou da sua cadeira de professor na Universidade à prisão de um convento.

Postas estas ideas gerais sôbre a história do pensamento científico e filosófico durante o período que vai desde a reforma pombalina dos estudos até ao fim do século XVIII, entremos agora no objecto especial dêste livro, falando dos matemáticos que floresceram no referido período. Alguns outros que dividiram os seus trabalhos por êste século XVIII e pelo século XIX serão considerados na secção seguinte desta obra para não fragmentarmos o que temos de dizer sôbre êles.

Monteiro da Rocha

Monteiro da Rocha foi objecto de uma conferência que pronunciámos há anos na Academia das Ciências de Lisboa, publicada depois nos nossos Panegíricos e Conferências. Vamos reproduzir aqui a parte essencial desta conferência, com algumas modificações de espaço a espaço.

Monteiro da Rocha começou tarde a escrever trabalhos de investigação matemática. Tinha 48 anos de idade quando apresentou o primeiro. Gastara muito tempo primeiramente em estudos teológicos e depois na organização dos estudos universitários e na tradução de livros para uso dos alunos da nova Faculdade de Matemática, e, além disso, entrara no Mundo dos números sem guia, munido apenas de pequenos roteiros, e tivera êle próprio de procurar os caminhos. Chegou por isso tarde às alturas dêste Mundo, mas não tão tarde que o não pudesse enriquecer com trabalhos preciosos, como vamos ver.

Depois da descoberta da lei da atracção universal, alguns astrónomos, colocando-se no ponto de vista geométrico, continuaram a estudar os movimentos dos astros por meio de observações regularmente continuadas; outros, colocando-se no ponto de vista mecânico, ocuparam se da dedução por meio da Análise matemática das conseqüências da aplicação da lei de gravitação aos diversos Planetas, Satélites e Cometas. Monteiro da Rocha está no primeiro do grupo de astrónomos a que acabamos nos referir: foi um astrónomo prático.

A primeira memória que escreveu é consagrada à determinação das órbitas parabólicas dos cometas, e foi apresentada à Academia das Ciências de Lisboa em 1782, pouco tempo depois da sua fundação, Academia de que êle foi um dos primitivos membros.

É bem sabido que o primeiro geómetra que se ocupou dêste problema foi Newton, o qual deu dois métodos geométricos para o resolver, que são obras primas de invenção, mas conduzem a resultados insuficientemente aproximados. Outros métodos mais exactos foram depois dados por Euler, Lambert e Lagrange em memórias extremamente notáveis, mas estes métodos, sendo aliás modelos de elegância analítica e de interêsse teórico, são astronòmicamente imperfeitos por motivo da dificuldade de suas aplicações. O primeiro processo prático que se deu para resolver o dito problema foi publicado em 1787 por Olbers.

Ora, êste processo, que se tornou clássico, não difere essencialmente daquele que encerra a Memória de Monteiro da Rocha, Memória que tinha sido apresentada à Academia das Ciências de Lisboa em 1782, antes de aparecer a de Olbers, mas cuja publicação tinha sido retardada até 1799, ano em que saíu o primeiro volume da colecção de Memórias desta Academia. Esta coincidência dos métodos empregados pelos dois astrónomos foi notada pelo Prof. Duarte Leite em um artigo que a respeito do trabalho do astrónomo português publicou nos Anais científicos da Academia Politécnica do Pôrto (t. X), onde se mostra também que os dois métodos estão ligados ao de Lambert pelo belo teorema descoberto por Euler em 17447 que liga o tempo empregado pelo astro a descrever um arco de parábola ao comprimento da sua corda e aos vectores dos pontos extremos, teorema empregado por Lambert, Olbers e Monteiro da Rocha

Monteiro da Rocha e Olbers devem pois figurar juntos na história da Astronomia, como sendo os primeiros inventores de um método prático para a determinação das órbitas parabólicas dos cometas.

Ajuntemos que o astrónomo português fez aplicação do seu método ao Cometa de Halley.

Outra Memória importante de Monteiro da Rocha que julgamos dever considerar aqui, é consagrada principalmente à predição dos eclipses do Sol.

Empregavam-se no século XVIII, para esta predição métodos gráficos fáceis que davam os tempos dos contactos do Sol e da Lua em um lugar dado da terra com um êrro inferior a um minuto e métodos analíticos que davam estes tempos com um êrro inferior a um segundo. Os métodos de Lahire, Lacaille, Séjour e Lalande, os mais usados nesse tempo, estavam no último caso.

O método de Séjour, o mais analítico e o que conduz a resultados mais aproximados, foi o ponto de partida das investigações de Monteiro da Rocha. Mas o método dado pelo astrónomo português é mais simples do que o do astrónomo francês, e esta simplicidade resulta do modo como aquele considerou as paralaxes, e da circunstância de referir o Sol e a Lua ao Equador, emquanto que Séjour refere um dêstes astros ao Equador e o outro à Eclíptica.

Mas, nas questões desta natureza, para julgar do valor de um método, não basta reconhecê-lo teòricamente, é necessário ainda tê-lo aplicado. Ora um sábio português, que foi Director do Observatório Astronómico de Coimbra, Dr. Rodrigo Ribeiro de Sousa Pinto, que aplicou durante muitos anos o método de Monteiro da Rocha ou cálculo das eclipses que figuram nas Efemérides publicadas por êste Observatório, diz, em um opúsculo sôbre o cálculo destas Efemérides, que as fórmulas dadas por Monteiro da Rocha são as mais simples e as mais elegantes de tôdas as que conhecia.

Do mesmo modo, Delambre, que analisou o trabalho de Monteiro da Rocha e o comparou ao de Séjour em uma longa notícia que deu daquele na Connaissance des temps para 1807, diz que as fórmulas de Monteiro da Rocha são mais simples do que as de Séjour e que o astrónomo português, aplicando o seu método aos eclipses considerados pelo astrónomo francês, obteve os mesmos resultados por caminhos muito mais curtos.

O trabalho de Monteiro da Rocha, de que acabamos de falar, foi publicado pelo astrónomo em Suplementos aos volumes das Efemérides do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra, correspondentes a 1804 e 1807 e foi depois reünido a outros trabalhos astronómicos do mesmo autor, e notas do tradutor, publicado em 1808 em língua francesa por Manuel Pedro de Melo em um volume intitulado Mémoires sur l’Astronomie pratique.

Nos cinco primeiros volumes daquelas Efemérides encontram-se alguns outros trabalhos de Monteiro da Rocha de muito interêsse para a prática desta ciência. Não os mencionaremos aqui para não fatigar. Acrescentaremos porém ainda que Monteiro da Rocha foi o fundador destas Efemérides que têm continuado a ser publicadas até agora e que os volumes que apareceram no seu tempo, muito bem feitos, como disse Delambre, são notáveis não só pelo valor das memórias que nêle publicou o nosso astrónomo, como também por conterem algumas Tábuas de muita utilidade, que não vinham então nas publicações análogas dos outros países.

Os trabalhos puramente matemáticos de Monteiro da Rocha são menos importantes do que os seus trabalhos astronómicos.

O primeiro daqueles trabalhos é consagrado ao problema de medição do volume do líquido contido em um tonel, cheio ou não, sem o despejar; problema de utilidade industrial proposto por Kepler na sua Estereometria.

Este problema só pode ser resolvido por aproximação e, entre as soluções que se deram dêle antes de Monteiro da Rocha o considerar, a melhor é uma que o Padre Pesenas publicou nas «Memórias da Academia das Ciências de Paris».

O tonel pode ser considerado como um sólido de revolução indifinível geomètricamente e para medir a sua capacidade, substitui-se-lhe um sólido de revolução geomètricamente definido aproximadamente igual em volume. Esta substituição tem sido feita de vários modos que Monteiro da Rocha enumera e examina. Em todos o sólido que substitue o tonel tem de comum com êle as secções extremas e a secção média. O nosso matemático emprega um novo sólido, que tem de comum com o tonel não só as secções mencionadas, mas ainda duas novas secções equidistantes daquelas. A solução que assim obtém é mais aproximada do que as que tinham sido dadas anteriormente, mas menos simples. Por isso Monteiro da Rocha, para facilitar a sua aplicação, julgou dever calcular uma Tábua que a torna muito prática, tanto no caso de se querer medir a capacidade total do tonel como a de uma parte dêle.

Outro trabalho notável sôbre matemáticas puras de Monteiro da Rocha é o que tem por título Aditamento à regra de Fontaine para resolver por aproximação problemas que se reduzem às quadraturas. Foi publicado em 1797 no volume II das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa.

Neste trabalho revelou o nosso matemático mais uma vez a finura do seu espírito e a sua habilidade prática dando um modo notável de avaliar a convergência da fórmula de Fontaine, esclarecendo-o com exemplos bem escolhidos e tirando da sua doutrina novas regras, mais convergentes do que a de Fontaine, para a solução do problema considerado. É uma memória cheia de doutrina sã sôbre a convergência das expressões em que intervém o infinito, que chega a surpreender por ser escrita nos tempos em que se tratavam tais questões com pouco cuidado e que pode ainda hoje ser lida com proveito.

Convém consagrar aqui algumas palavras, como entre parêntesis, a uma memória que, a-pesar-do seu pequeno mérito, levou Monteiro da Rocha a compor aquela de que acabamos de falar.

A Análise e a Geometria auxiliam-se mutua mente, mas há questões do domínio desta última ciência em que o matemático se lança inconsideràvelmente nas asas da primeira e, voando, procura encontrar por fórmulas complicadas resultados a que esta leva por caminho simples.

Esta observação aplica-se a uma memória do Dr. Coelho da Maia, professor na Universidade de Coimbra, que foi premiada pela Academia das Ciências de Lisboa e publicada nas suas colecções (t. 1, 1797) sob o título de Método de aproximação de Fontaine.

Não mencionaremos aqui esta memória pelo que vale, mas por motivo de uma polémica a que deu origem. Coelho da Maia obteve, por meio de cálculos aterradores, pela extensão, cheios de desenvolvimentos em série desprovidos de rigor, a fórmula de Fontaine mencionada, mas nada acrescentou de notável a respeito da sua convergência. Ora Anastácio da Cunha deu duas demonstrações geométricas muito simples desta fórmula e censurou a Academia das Ciências não sòmente por ter posto a concurso uma questão tão simples, mas também por ter premiado uma memória tão medíocre. Respondeu-lhe indirectamente Monteiro da Rocha, autor do tema posto a concurso na memória anteriormcnte considerada, defendendo o tema proposto o qual exigia o estudo das condições de convergência da fórmula. O tema ficou assim bem defendido, mas não a corporação que premiou a Memória, porque o autor dela não estudara suficientemente esta parte difícil da questão. Estudou-a, como dissemos, Monteiro da Rocha que teve pois responsabilidade em ver premiada uma memória que o não merecia, mas, em compensação, compôs sôbre o mesmo assunto outra digna de prémio.

Terminada a análise dos escritos científicos de Monteiro da Rocha, consagremos algumas palavras à apreciação geral da sua obra científica, reproduzindo o que a êste respeito dissemos nos nossos Panegíricos e Conferências: «Monteiro da Rocha não concorreu de um modo eficaz para o progresso do Mundo dos números. O seu talento tinha principalmente uma feição prática. Não criou teorias, resolveu problemas mais ou menos difíceis.

«Cada vez que tinha de resolver uma questão, meditava-a profundamente até encontrar a solução mais fácil e levava o seu estudo até aos últimos promenores numéricos. Assim, ocupou-se do problema das órbitas parabólicas dos cometas e deu a primeira solução pratica dêste problema; ocupou se do problema da predição dos eclipses e deu um método mais fácil para o resolver do que os outros processos empregados no seu tempo; ocupou-se da medida dos tonéis e deu uma solução que excede em aproximação e não é inferior em simplicidade à melhor das que tinham sido dadas anteriormente; ocupou-se da regra de quadratura de Fontaine e deu pela primeira vez as condições para se aplicar com confiança». Temos terminado a descrição e crítica das principais obras de Monteiro da Rocha; vamos agora dizer algumas palavras sôbre a sua vida.

Monteiro da Rocha nasceu em 1734 em Canavezes, aldea situada entre Douro e Minho, e pertenceu à Companhia de Jesus, na qual entrou no Brasil, na Baía, em 1752, mas que abandonou em 1759, com outros membros da mesma ordem, jovens como êle, numa ocasião em que as casas que a Companhia possuía naquela cidade brasileira, foram cercadas por fôrças militares.

O seu talento revelou-se primeiramente na freqüência da cadeira de Filosofia no Colégio da Baía e depois na freqüência das cadeiras de Direito Canónico da Universidade de Coimbra.

Mais tarde, o Marquês de Pombal, informado do seu valor por D. Francisco de Lemos, Bispo de Coimbra, chamou-o a colaborar na reforma da Universidade, e, quando esta reforma foi posta em execução foi encarregado da regência da cadeira de Mecânica.

Não sabemos como aprendeu as Matemáticas; provàvelmente estudou a Aritmética, a Geometria elementar e os princípios de Astronomia no Colégio da Baía, onde foi educado, e depois continuou a caminhar sem mestre no estudo dos outros ramos daquelas ciências e no aperfeiçoamento dos conhecimentos que recebera naquele Colégio.

Os homens de talento invulgar, como êle era, deixam depressa atrás os seus professores e continuam sós no seu caminho.

Na composição do Estatuto da Universidade revelou-se como um grande organizador, no ensino naquela Universidade revelou-se como um grande professor, nas observações e cálculos astronómicos revelou-se como astrónomo insigne e nas memórias que publicou revelou-se como sábio de elevado mérito. Foi um grande exemplo de actividade intensa, larga e fecunda.

Exerceu o ensino até 1804, ano em que se jubilou, e morreu em Ribamar, perto de Lisboa, em 1819.

Anastácio da Cunha

Anastácio da Cunha tem sido apreciado de modos diferentes pelos matemáticos que têm falado dos seus trabalhos científicos, uns louvando-os com calor, outros apoucando-os. Para formar sôbre êle o nosso juízo, resolvemos há anos fazer um estudo cuidadoso dos escritos que deixou. Espusemos os resultados dêste estudo em uma conferência que pronunciamos em 1925 no Congresso de Coimbra das Associações Espanhola e Portuguesa para o Progresso das Ciências, resultados que vamos aqui resumir. .Mas, antes disso, vamos dar uma breve notícia sôbre as condições em que viveu, o que é indispensável para bem se julgar a sua obra.

Anastácio da Cunha nasceu em Lisboa em 1744 e foi educado no Convento dos Padres do Oratório de Nossa Senhora das Necessidades, onde teve por mestre o Padre Teodoro de Almeida, que escreveu uns Recreios filosóficos, muito apreciados no seu tempo.

Em 1762, aos dezoito anos de idade, na ocasião da guerra entre Portugal, Espanha e França assentou praça no Regimento de Artilharia do Pôrto, então aquartelado em Valença, onde recebeu a sua instrução em Matemática, fazendo-se admirar pelo talento e pela facilidade com que por si mesmo, sem auxílio de mestre, adquiriu rapidamente conhecimentos extensos sôbre assuntos elevados desta ciência.

Anos depois, em 1773, o Marquês de Pombal, quando reformou a Universidade de Coimbra, tendo conhecimento dos seus méritos, nomeou-o professor da Faculdade de Matemática desta Universidade, comunicando esta resolução ao Reitor em duas cartas muito honrosas para o nomeado e ordenando que se lhe conferisse o grau de Doutor com as formalidades do estilo

Foi-lhe nessa ocasião distribuída a cadeira de Geometria, que regeu com muito brilho até I de Julho de 17781 em que, tendo o grande estadista deixado o govêrno da nação, foi vilmente denunciado ao Tribunal do Santo Ofício como livre pensador.

Anastácio da Cunha tinha convivido durante a sua residência em Valença com alguns oficiais estranjeiros protestantes muito ilustrados, que tinham enfraquecido a sua primitiva fé religiosa.

Por isso o referido Tribunal condenou-o a três anos de reclusão no mosteiro em que fôra educado, seguidos de cinco anos de deportação em Évora, fundando a sentença em factos que a Igreja Católica de hoje, com a sua tolerância ilustrada, não condena.

Esta sentença foi lida em Auto de fé celebrado em 11 de Outubro de 1778 na Igreja do Palácio da Inquisição, ao qual o nosso geómetra assistiu vestido de hábito ridículo de penitente e com uma vela de cera amarela na mão.

Não chegou porém o infeliz matemático a cumprir completamente as penas a que fôra condenado. Por motivo do seu bom comportamento, foi-lhe perdoada uma parte delas. Mas ficou em completa pobreza, porque não lhe foram restituídos os bens que lhe tinham sido confiscados e não foi reintegrado no lugar de professor da Universidade de Coimbra. Valeu-lhe nesta situação aflitiva o Intendente de Polícia, Diogo de Pina Manique, que, tendo fundado a Real Casa Pia do Castelo de S. Jorge, destinado ao ensino dos órfãos, o chamou para director deste estabelecimento. Nesta casa passou os últimos anos da sua vida, a pensar, a escrever e a ensinar, quanto o permitia o estado precário da sua saúde, abatida por tantos desgostos, e nesta casa faleceu em I de Janeiro de 1787, no dia seguinte àquele em que emendara as últimas provas dos seus Princípios matemáticos.

Começamos por falar da vida atribulada de Anastácio da Cunha, para que se possa conhecer o motivo dos defeitos de redacção do livro que acabamos de mencionar, e para que estes defeitos sejam desculpados.

Os Princípios matemáticos, impressos no intervalo de 1782 a 1787 são o único livro que Anastácio deixou acabado e é por êle que temos de avaliar o poder do seu espírito. Foi escrito para uso dos alunos do Colégio de S. Jorge, mas não é como livro didático que temos de o considerar. Isto só teria vantagem no tempo em que foi publicado Para o avaliar hoje, temos de nos colocar no ponto de vista filosófico, para averiguar se merece ficar registado, e com êle o nome do autor, na História da Matemática em Portugal. É com êste critério que vamos examiná-lo.

Quando se percorre pela primeira vez êste livro, nota-se com surprêsa que o autor, no pequeno espaço de trezentas páginas, sobe desde as primeiras noções da Aritmética e da Geometria até aos famosos problemas de máximos e mínimos considerados por João Bernoulli e Euler e para os quais Lagrange inventou o Cálculo das variações, passando pela Teoria das equações, pela Análise algébrica, pelas Trigonometria plana e esférica, pela Geometria analítica e pelo Cálculo diferencial e integral

Estudando-o depois detidamente, nota-se que êste largo espaço é percorrido, lògicamentc, com demonstrações, como é de esperar, curtas, mas contendo tôdas as peças silogísticas necessárias para lhes dar rigor. Nota-se também que o autor emprega ordinàriamente, quer trate das questões relativas a linhas, quer trate de questões relativas a números, os métodos sintéticos dos antigos matemáticos gregos. Não deduz, em geral, as proposições; enumera-as primeiro e demonstra-as depois pelos meios mais curtos, sem procurar saber como foram ou como poderiam ser descobertas, reduzindo algumas vezes a demonstração à forma de simples verificação. Não ensina a investigar, limita-se, como faziam ordinàriamente os antigos geómetras helenos, a demonstrar proposições obtidas por outra arte.

Se tivessemos de considerar esta obra sob o ponto de vista pedagógico, deter-nos-íamos um pouco na critica dêste método; mas, conservando-nos no ponto de vista em que nos colocámos, só diremos que o autor conseguiu assim dar-lhe, pela originalidade da exposição, um interêsse especial.

No primeiro exame da mesma obra, vê-se também com surprêsa que o nosso geómetra misturou as doutrinas de que trata, sem atender à sua divisão em ramos, dando à exposição um aspecto de desordem, mas na qual as proposições estão lògicamente encadeadas, de modo que cada uma tem anteriormente aquelas de que depende. Nesta desordem aparente há um certo encanto, pela variação dos assuntos e meios de os tratar. Ao examinar esta disposição das doutrinas, temos a impressão de que o autor propôs a si mesmo o problema de expor as matérias de um curso regular de Matemáticas puras lògicamente e no mínimo espaço, evitando repetições e tratando cada doutrina, quer seja elementar, quer não, no lugar em que dispunha de meios para mais ràpidamente a estudar.

Feitas estas considerações gerais passemos a analisar sucintamente o modo como são expostas algumas das doutrinas que a obra encerra.

Eram os Elementos de Geometria de Euclides adoptados como livro de texto para o estudo desta ciência na Universidade de Coimbra, quando Anastácio da Cunha ali ensinou e foram o molde dos livros que consagrou a esta ciência nos seus Princípios matemáticos, que parece ter começado a compor nesta ocasião, molde que alterou em muitos pontos, modificando demonstrações e ligações de teoremas, sem alterar o que nêle há de fundamental, com o fim de abreviar e simplificar a exposição das doutrinas ou de aperfeiçoar ainda em alguns pontos a sua estrutura lógica. Daremos alguns exemplos destas modificações em uma nota no fim dêste livro.

Na parte do livro consagrada à Análise ha duas questões de que vou ocupar-me com alguma demora, porque é nelas que melhor se revela a finura de espírito do autor: quero referir-me ao capítulo em que trata da teoria das séries e da teoria dos números irracionais.

Nas páginas que consagra à primeira teoria, começa Anastácio da Cunha por tratar das séries de termos positivos, e dá de um modo preciso e exacto o critério para a sua convergência, que imediatamente aplica à progressão geométrica decrescente.

Depois, para julgar da convergência de cada série dada, manda comparar os seus termos com os desta progressão.

Esta doutrina equivale ao teorema hoje clássico: «se a razão de dois termos consecutivos de uma série tende para um limite, inferior à unidade, quando a ordem dêles tende para o infinito, a série é convergente». Anastácio da Cunha não enuncia êste teorema, que foi mais tarde apresentado por Cauchy, mas a sua doutrina resolve a questão da convergência da série proposta nos mesmos casos em que o teorema enunciado a resolve.

Esta doutrina é depois aplicada pelo nosso matemático em diversos lugares da sua obra para demonstrar a convergência de algumas séries que emprega.

Na teoria do desenvolvimento das funções em série foi menos feliz. A sua demonstração da fórmula de Taylor tem o vício das que tinham sido apresentadas antes dêle e não difere delas essencialmente. É bem sábido que só mais tarde deu Lagrange a primeira demonstração rigorosa por meio da consideração do resto da série. Mas devo assinalar uma aplicação que faz desta fórmula no desenvolvimento do seno da soma de dois arcos, que o leva a demonstrar simultâneamente e no pequeno espaço de uma página os teoremas da soma do seno e do coseno e os desenvolvimentos em série inteira destas funções.

A esta doutrina das séries está ligada a dos números irracionais representados por potências de expoente fraccionário ou irracional, que constitue a parte mais notável da obra do nosso matemático. Esta doutrina era exposta no século XVIII de um modo mal fundamentado, que não podia satisfazer um espírito, como o de Anastácio da Cunha, educado no culto do rigor do grande geómetra lógico de Alexandria. Mas como constituir uma doutrina geral e rigorosa das potências ? Conseguiu-o com um golpe de audácia para o seu tempo: definiu os números irracionais que têm a mencionada origem por meio da série exponencial de base qualquer, que tinha sido obtida no século anterior por Newton pelos meios imperfeitos da Álgebra do seu tempo, e, empregando operações sôbre séries, demonstrou que os números assim definidos gozam das propriedades fundamentais das potências dos números inteiros.

Esta doutrina de Anastácio da Cunha abre de um modo notável as doutrinas modernas sôbre os números irracionais, e o nome do seu autor merece figurar na sua história entre os precursores dos analistas que mais tarde se ocuparam dêles.

Na parte dos Princípios matemáticos consagrados à Análise e à Geometria dos infinitamente pequenos, nota-se que os princípios tão subtis desta doutrina são estabelecidos com um rigor que não se encontra nos outros livros empregados no século XVIII para o seu estudo. Bastaria introduzir na exposição a palavra limite, que Anastácio da Cunha, prêso à tradição grega, não quis empregar, tornar explícitas algumas condições incluídas nas demonstrações e dar à intuïção geométrica um papel menos intenso, para reduzir a doutrina do nosso geómetra , forma moderna.

Menos elogios merecem as passagens da obra consagradas à teoria geral das equações, que é pobre e desordenadamente exposta.

Ao terminar esta análise do livro de Anastácio da Cunha, direi emfim que o autor procurou apresentar explicitamente os postulados em que se funda, na Geometria e na Análise, notando, entre êles: 1.º Aquele a que actualmente se dá o nome de postulado de Arquimedes, implicitamente usado por Euclides na sua teoria da proporcionalidade e explicitamente enunciado por Pedro Nunes na exposição que fêz da mesma doutrina na sua Álgebra; 2.° A propriedade das funções contínuas de passar por zero quando mudam de sinal, demonstrada mais tarde por Cauchy; 3.° A regra dos sinais na multiplicação. A respeito dêste último postulado, notarei que Monteiro da Rocha censurou Anastácio da Cunha por ter colocado esta proposição entre os postulados da Álgebra, mas é certo que no tempo em que viveram não se tinha dado ainda uma teoria lógica assaz clara dos números negativos.

Os Princípios matemáticos são a única obra que Anastácio da Cunha deixou impressa. Depois da sua morte, um antigo discípulo publicou um manuscrito encontrado entre os seus papéis, intitulado Ensaio sôbre os princípios da Mecânica, onde se apresentam algumas ideas sôbre as noções fundamentais desta ciência tão próximas das que actualmente se adoptam, que lastimamos não ter escrito obra desenvolvida sôbre tal assunto.

Notaremos neste Ensaio a separação da Mecânica geométrica, fundada em postulados determinados, da Mecânica física, e a concepção do paralelogramo das fôrças, ou, em outros termos, o princípio da independência da acção das fôrças, não como uma lei natural, mas como uma hipótese. É de notar que êste conceito é análogo ao de Poincaré sôbre os postulados da Geometria, e que a idea de separar a Mecânica física da Mecânica racional não é só hoje adoptada, mas foi estendida à Geometria. Os postulados da Geometria racional e da Mecânica racional são limites dos postulados de Geometria física e de Mecânica física.

Acabamos de analisar a obra matemática de Anastácio da Cunha e por esta análise vê-se que o seu autor foi principalmente um lógico distinto.

Os matemáticos do século XVIII, preocupados em fazer frutificar e aumentar a grande herança legada pelos geómetras do século anterior, desenvolvendo para isso as grandes invenções por estes feitas, não prestaram atenção à parte lógica das suas demonstrações, quebrando a tradição da forma rigorosa dos raciocínios dos geómetras gregos. Estava reservado aos matemáticos do século XIX a volta a esta tradição, com a análise crítica das doutrinas dos seus antecessores, de modo a precisar rigorosamente as condições para a aplicação de cada teorema obtido. Anastácio da Cunha é no século XVIII um dos precursores dos geómetras que no século XIX realizaram esta obra considerável da organização lógica dos novos domínios que se tinham aberto no Mundo dos números e os seus trabalhos e o seu nome devem figurar na história brilhante desta organização.

Não se julgue, pelo que acabamos de dizer, que a sua obra é irrepreensível sob o ponto de vista lógico. Não poderia ser. Não seria possível a um só homem escrever no século XVIII uma obra perfeita, sob aquele ponto de vista, a respeito de todos os assuntos fundamentais considerados na obra do nosso geómetra. A revisão lógica dêstes assuntos foi obra de muitos matemáticos eminentes do século XIX ao matemático português cabe a honra de ter sido um dos que primeiro se ocuparam dela.

Não falaremos aqui nem das obscuridades nem dos defeitos de redacção e disposição das doutrinas que se encontram em alguns lugares dos Princípios matemáticos. Isto só teria importância se quisessemos analisar esta obra sob o ponto de vista pedagógico. Estes defeitos serão certamente desculpados por quem atender as circunstancias em que o autor passou a sua vida agitada, e ao seu temperamento nervoso e volúvel, que o levava a não se demorar no aperfeiçoamento da redacção dos assuntos.


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